sexta-feira, novembro 04, 2022

A Madeira tem um problema de violência chamado “bloom”

 

“Eu já mostro o que tenho ali escondido atrás da porta para o caso de apanhar alguém dentro de casa.” Dúlio Freitas está cansado e vive em sobressalto por causa do negócio de bloom que se faz às claras duas portas acima, no Caminho de São Roque, um lugar pacato e com vista para a baía do Funchal. O bloom trouxe os consumidores que, de noite ou de dia, andam abaixo e acima e deitam mão a tudo o que lhes possa render uns euros para comprar a dose. E é por isso que Dúlio, antigo marinheiro, tem uma catana escondida atrás da porta. Há uns meses foi assaltado, levaram umas peças de coleção e umas cadeiras que tinha no quintal. “Foi para a droga, as cadeiras foram parar ao quintal do vizinho.” O mesmo vizinho a quem a polícia apreendeu nove quilos que se supõe ser alfa PHP, uma substância considerada droga desde 2021 e que é conhecida na rua como “bloom”. O produto, apreendido em julho, foi enviado para Lisboa para análise, mas o movimento na rua não se alterou. Antes da chegada do resultado das análises que provam que aquilo é ou não é droga pouco se pode fazer: a meio de setembro, numa sexta-feira de manhã, as pessoas que moram no Caminho de São Roque acordaram com tiros, no que terá sido um ajuste de contas entre rivais. A polícia fechou a rua, fez buscas e, após ter sido presente ao juiz, o autor dos tiros regressou a casa. E tudo voltou ao normal: gente a chegar de táxi, a pé, em carros roubados — os moradores também já viram carros de alta cilindrada —, a negociar pelas brechas do portão de ferro do nº 58.

E Dúlio não teve outro remédio senão instalar um sistema de videovigilância. “Foram mais de mil euros, mas o pior é que, por causa disto, perdi os meus clientes, um casal de ingleses que há 20 anos passa férias aqui, no andar de cima. Ligaram-me de Inglaterra a dizer que não ficavam aqui por causa da droga. Eu não ia mentir, não ia negar a verdade.” Há droga mesmo que, em termos legais, não seja bem droga. Ou melhor, só é droga depois de testar positivo no Laboratório de Polícia Científica, em Lisboa. O resultado pode demorar sete meses a chegar.

As substâncias alteram o comportamento de quem consome, que fica viciado e é capaz de tudo para conseguir a dose seguinte. Pedro Gomes, o presidente da Junta de São Roque, faz o que pode para acalmar os moradores e tenta explicar à reportagem do Expresso que a freguesia é um lugar seguro, mas não pode negar o alarme social nem o volume de queixas que recebe por dia. Foi um compromisso que saiu do encontro de moradores, Governo Regional e PSP depois da manhã de tiros: a junta anota as reclamações e todos os dias encaminha-as para a esquadra do Funchal.

“Uma senhora telefonou a queixar-se de que lhe apanharam as uvas todas.” O presidente da junta folheia as páginas das queixas para dar exemplos. “Há outra a quem levaram uns vasos de orquídeas e de sapatinhos. E esta aqui é por causa de umas garrafas de gás que estavam no quintal e levaram durante a madrugada.” Os furtos, em si, não têm muito valor, “o problema é que estas pessoas já têm alguma idade e toda esta situação está a provocar alarme so­cial”. É que, além dos furtos, do barulho durante a noite, muitos consomem ali mesmo, “nas veredas e becos”.

UMA QUESTÃO INSULAR

O problema, no entanto, não se resume a São Roque, e diariamente há queixas de roubos, agressões, consumo e notícia de pessoas alteradas na via pública um pouco por toda a cidade, de tal forma que a Câmara do Funchal decidiu colocar portões em dois becos, a pedido dos moradores. A estratégia para minimizar os impactos do consumo das drogas sintéticas incluiu ainda uma intervenção em 12 casas devolutas, cujos acessos foram fechados. “Não estamos a fechar a cidade”, garante o presidente da câmara. Pedro Calado admite que a medida não resolve o problema.

“A questão de base é a não-criminalização de quem trafica e de quem usa este tipo de substâncias, esse é que é o problema. Estamos apenas a tentar salvaguardar a segurança de todos os cidadãos.” A solução passa por alterar a lei e apenas a Assembleia da República tem competência para a mudar, mas enquanto isso não acontece o município quer lançar uma campanha de prevenção nas escolas. “Temos de evitar que estes jovens entrem nos consumos e por estes caminhos. É um trabalho para toda a sociedade, mas passa por mudar a lei. Como está, o criminoso está sempre à frente.”

E na Madeira são evidentes os estragos físicos e os danos mentais que o consumo das novas substâncias psicoativas provocam. Os internamentos compulsivos devido a psicoses tóxicas somavam 120 até ao fim de setembro, apenas na Casa de São João de Deus, a instituição de saúde mental que acolhe e trata homens adultos. Os números confirmam o que se vê ao fim do dia na Avenida do Mar. Os grupos de consumidores circulam misturados com os turistas a passeio, os jovens de skate e as pessoas que aproveitam para correr na marginal.

A LEI

O problema está à vista e esbarra sempre no mesmo: a lei. A Lei da droga em Portugal tem uma tabela anexa que tipifica as substâncias ilegais — as drogas —, mas as novas substâncias mudam muito. Entre 2005 e 2021 entraram na Europa 840 novas substâncias, uma parte produzida na Ásia, outra em laboratórios nos Países Baixos, Bélgica e Polónia. E basta apenas mudar uma molécula na composição para deixar de estar na tabela. Exemplo disso são os dois canabinoides sintéticos mais comuns e conhecidos por “gorbi” e “maligna”. Têm quase a mesma composição, mas o gorbi está na lista de drogas; a maligna, não.

O vazio legal e o tempo que leva a obter resultados dão a quem comercia­liza a sensação de não estar a cometer um crime. E se se juntar ainda o facto de na Madeira ser mais simples encomendar estas substâncias pela internet e receber em casa como uma encomenda postal normal e colocar no mercado a preços mais baixos do que as drogas ‘clássicas’, então estão criadas as condições para o que os médicos e as polícias constatam: a Madeira é a região onde mais se consome drogas sintéticas, com impactos devastadores nos consumidores e com aumento nos números de violência.

Dario Sanguedo, comissário da PSP, é o oficial que mais trata e estuda o fenómeno no Comando Regional da Madeira. “Desde 2019 que as estatísticas mostram que o problema está a crescer. Só em 2022 — e até 31 de agosto — foram feitas 36 apreensões e foi desmantelada uma rede que fazia entregas ao domicílio e só comercializava este tipo de substâncias, uma espécie de Uber da droga.” Quatro pessoas ficaram em prisão preventiva, mas a investigação demorou um ano e quando se fez a operação final já havia resultados das análises feitas no Laboratório de Polícia Científica em Lisboa.

Foi um passo para tentar conter o fenómeno, que, como explica o comissário, coloca mais um desafio à PSP. “Somos os primeiros a chegar quando há uma pessoa alterada na via pública e não temos formação. Já tivemos casos de indivíduos que se atiram contra as paredes, que se mutilam e ficam em carne viva e cheios de sangue. E depois são violentos com a família, com quem se cruze com eles.” Só no primeiro semestre deste ano, na zona do Caniçal, em Machico, três homens ficaram em prisão preventiva por violência doméstica. Todos eram consumidores de bloom.

A única boa notícia neste quadro é que a PJ decidiu abrir uma extensão do Laboratório de Polícia Científica no Funchal. A comarca da Madeira cedeu um espaço no Palácio da Justiça, as antigas instalações da PJ. A ideia é ter resultados das análises mais céleres, que permitam uma intervenção mais rápida das polícias (Expresso, texto da jornalista Marta Caires e fotos do jornalista Gregório Cunha)

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