sábado, novembro 19, 2022

O time-sharing, a Madeira dos anos 70 e o ‘olho Pestana’

 

Meio século depois, o hotel quase falido no Funchal que herdou do pai transformou-se num grupo presente em 16 países. Mas nem tudo foi fácil. Dionísio Pestana chegou à Madeira em 1976, para tomar conta do hotel que o pai tinha criado quatro anos antes. Para tentar salvar o negócio. Hoje, 50 anos depois, tem um grupo com mais de 100 hotéis em 16 países. Tudo começou na África do Sul, em Joanesburgo, onde a família vivia e onde Dionísio nasceu, em 1952. A família Pestana tinha negócios na área do comércio e a certa altura foi aconselhada a investir fora do país. Como recorda em entrevista ao Expresso: “O meu pai emigrou e fez investimentos na área do retalho. Quando já tinha algum dinheiro, o advogado lá na África do Sul, que era uma pessoa com visão, disse que o país ia ter os seus problemas com o apartheid. Como falávamos a mesma língua que em Moçambique, disse que devíamos fazer um investimento em Lourenço Marques ­(atual Maputo).” Assim nasceu o Prédio Funchal, ao lado da Sé, “um prédio de rendimento”.

Uma aposta que gerou dinheiro para depois investir no primeiro hotel na Madeira. “Um desafio feito pelo governador da Madeira, que na altura ia muitas vezes à África do Sul.” Manuel Pestana, o pai de Dionísio, decidiu arriscar, ainda que pouco ou nada soubesse do negócio. “O meu pai só ficava num hotel de vez em quando, mas, tirando isso, não sabia o mínimo de hotelaria.” Comprou um terreno em 1966, começa as obras em 1968 e o hotel Pestana Carlton abre portas em novembro 1972. Há precisamente 50 anos, um período de boom no turismo madeirense. O arranque não foi fácil. Dio­nísio recorda: “Em 1972 abre um mês, no inverno é fraco, 1973 era o lançamento, só que não era como hoje, era telex, páginas amarelas e operadores, grupos, nem sequer operadores grandes, então não era fácil.” Ao fim de um ano, decidem “arranjar uma companhia internacional para fazer a gestão”. Escolheram a Sheraton, mas o contrato era leonino e custou, mais tarde, a ser desfeito. Entretanto, chegou o 25 de Abril de 1974, com toda a turbulência que isso implicou, e as coisas agravaram-se.

DE JOANESBURGO PARA O FUNCHAL

Dionísio estudou Gestão (Business Management) na Universidade de Natal e sonhava conhecer o mundo. “O sonho de um sul-africano ou de um australiano é, quando chega a idade independente, poder sair da África do Sul ou da Austrália, porque são países muito isolados, ir à Europa e aos Estados Unidos.” Mas o pai trocou-lhe as voltas. Havia um hotel em agonia na Madeira. “O meu pai disse ‘olha, eu dou aquilo como perdido, se tu quiseres ir lá durante um tempo ver e tentar salvar, aquilo é teu, porque eu não tenho alternativa’.”

Apesar da costela madeirense, não tinha vindo à Madeira senão duas vezes na vida, a primeira apenas com seis anos. Veio num dos “cruzeiros que saiam da Cidade do Cabo e demoravam duas semanas”. Quando vinham, era por dois meses. E o pai de Dionísio, à boa maneira dos emigrantes, “trazia sempre um carro grande”, para “mostrar os seus rendimentos na África do Sul”. Chega ao Funchal em 1976 e sofre um choque. “Para mim, isto era tudo preto e branco, tudo escuro”, ao contrário da África do Sul, que “era um país a cores, que tinha vida, já tinha supermercados, hipermercados”. Então pensou: “Bom, meti-me num buraco, mas vou ver o que se pode fazer e pronto.”

O arranque não foi fácil. Não sabia gerir um hotel: “Não sabia nada de nada. Só sabia uma coisa, e isso devo ao meu pai e à minha mãe. Eu sempre trabalhei fins de semana e férias no negócio da família de retalho, onde era essencial olho na caixa, aumentar as receitas e controlar os custos. Aquilo era a fórmula.” Mais difícil ainda quando havia um contrato de gestão com a Sheraton, que ficava com “5% das receitas e 10% dos lucros”, e que tinha também o sistema de reservas no qual cobrava cinco dólares por cada uma. Acabou por ser renegociado, e Dionísio, aos 34 anos, compraria o seu segundo hotel: o Hotel Casino. O investimento ainda gerou oposição do pai.

O SEGREDO DO TIME-SHARING

Muitas pessoas talvez não saibam, mas é ao time-sharing que o Grupo Pestana deve o seu crescimento. Gerou o capital suficiente para o lançar no mundo. A ideia vinha dos EUA e chegou em força à Europa: comprar uma semana fixa de férias, pagava-se uma vez e só depois se pagava uma percentagem pequena de manutenção, e era perpétuo. Era uma forma de encaixar logo pagamentos futuros. “Não tínhamos clientes por causa do 25 de Abril e então tínhamos camas e quartos vazios. Cada contrato valia cinco a seis mil euros por semana.” O mercado britânico já na altura era o principal. Contratos que acabaram em 2016.

Foi “um colete de salvação na altura e depois tornou-se um grande negócio”. Serviu, em primeiro lugar, para resolver o problema da dívida. E ainda se mantém. “Hoje temos 30 mil famílias ligadas ao Vacation Club, nós agora já não vendemos a 30 anos, só a 10, porque as pessoas também já não têm essa perspetiva tão alargada. E continua a ser o mercado inglês a dominar.” O time-sharing falhou no Algarve “porque na altura era do lóbi do imobiliário, ven­diam, perpétuo, recebiam o dinheiro e iam-se embora”.

Dar o salto de dois hotéis na Madeira para um megagrupo hoteleiro, com negócios em 16 países, não foi imedia­to. Quando foi o clique? “O time-sharing estava a correr bem e com esse dinheiro comprámos o Casino Park, em 85/86. Depois começa uma outra onda.” A bolsa. Pestana também ia para o mercado, estava tudo preparado, mas não aconteceu como previsto por causa da “segunda-feira negra” de 1987. Avançou na mesma e permitiu encaixar o suficien­te para encetar novos voos no Sul do país. O primeiro alvo algarvio foi o Alvor.

A ida para o Algarve teve uma lógica de negócio: “Os operadores eram os mesmos e se eu tivesse hotéis no Algarve podia puxar pelo preço aqui e lá. Era esse o pensamento estratégico. Também levámos o modelo do time-sharing para lá, mas a uma escala mais pequena.” Coincidência ou não, nessa altura Dionísio Pestana abre as páginas da revista “Hotels”, que, além da classificação de hotéis em todo o mundo, tem um ranking dos maiores hoteleiros. Estava fora da lista dos 300 mas “não estava muito longe do último, e pensei ‘vou trabalhar para entrar’”. Neste momento está no lugar 200. Depois decidiu também participar na EuroAtlantic, “porque a aviação aqui era o nosso problema na altura; a TAP hoje é má, mas na altura era pior, muito pior”.

Neste momento já não tem funções executivas, embora esteja sempre por dentro de tudo o que se passa. “Espero estar aqui mais uns anos. E pouco a pouco também já os vou envolvendo [aos filhos]. Já temos uma holding interna onde eles também já participam.” São três. “Um deles já trabalha connosco e tem a área da imobiliária. O mais novo acabou agora o curso. Começou hoje, por coincidência, a fazer um estágio de seis meses nas áreas todas. Tirou Direito em Lisboa. A Carlota, que é a filha mais velha e é psicóloga, não quer entrar no negócio, mas tem olho Pestana e controla tudo.” E o que é isso de ‘olho Pestana’? “É, por exemplo, ir a um restaurante, manda-se vir a conta e ela pede para a ver.” E a estrutura acionista? “Estou a tratar disso agora, já estamos a dar os primeiros passos, porque é importante e nunca se sabe o dia de amanhã. Mas depois o que vai ficar separado é sempre a gestão da proprie­dade. Isso é da família.”

“A EXTREMA-ESQUERDA NÃO PODE EXISTIR”

Dionísio Pestana não tem dúvidas em assumir que “íamos bem com a troika cá”. Apesar do impacto que teve na economia — “paguei caro” —, diz que ficou “tão contente” por saber que “íamos corrigir coisas que vinham de trás, que os políticos não tinham força”. Na legislação laboral e no equilíbrio das contas públicas, por exemplo. E volta a insistir no mesmo ponto: “Agora é preciso também força e assumir.” Porque quando António Costa “faz a ‘geringonça’, andámos para trás”. Refere que, na sua visão, PCP e Bloco de Esquerda não deviam ter espaço: “A extrema-esquerda em Portugal no século XXI não pode existir. Não existe. Não tem lógica.” Considera que há um “complexo contra o capitalismo” e que “essa coisa de ser contra o capitalismo está errada, porque o capitalismo é importante para o desenvolvimento do país” (Expresso, textos dos jornalistas JOÃO SILVESTRE e JOÃO VIEIRA PEREIRA e foto de TIAGO MIRANDA)

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