domingo, abril 17, 2022

Le Monde Diplomatique: A ameaça de uma guerra nuclear


Anunciando que colocava a sua força de dissuasão nuclear em estado de alerta, o presidente russo Vladimir Putin obrigou o conjunto dos estados-maiores a actualizar as suas doutrinas, na maioria dos casos herdadas da Guerra Fria. A certeza da aniquilação mútua ­­­— o seu acrónimo em inglês, MAD, significa «louco» — já não basta para excluir a hipótese de ataques nucleares tácticos, pretensamente limitados. Com o risco de uma escalada descontrolada. 

O tom da réplica — seco, para não dizer exasperado — não escapou a ninguém. «Não venham com histórias! Esta ideia de que vamos enviar [para a Ucrânia] equipamentos ofensivos, aviões e carros de combate… Podem todos dizer o que quiseram, mas a isso chamar-se-ia Terceira Guerra Mundial.» No dia 11 de Março de 2022, refutando vigorosamente sugestões de eleitos e especialistas que reclamavam um envolvimento mais directo dos Estados Unidos no conflito, Joe Biden fechou a porta a uma oposição convencional directa entre Washington e Moscovo. Ao mesmo tempo, o presidente norte-americano afirmou que assumiria uma escalada eventual até ao extremo se a ofensiva russa viesse a estender-se ao território de um dos membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Está portanto estabelecida uma distinção entre um espaço santuarizado, o da Aliança Atlântica, e um território ucraniano que resulta de uma categorização geoestratégica específica. A qual, segundo Washington, imporá uma compreensão fina das relações de forças entre actores opostos no terreno, um domínio dos graus de implicação operacional por parte dos apoios declarados da Ucrânia (em particular relativos à natureza das transferências de armamento operadas em benefício de Kiev) e, sobretudo, uma obrigação de reavaliar em permanência os limites da vontade russa. E, a título de objectivo final, a possibilidade de garantir uma porta de saída negociada, aceitável tanto pelos russos como pelos ucranianos.

Alguns explicam esta prudência norte-americana fazendo referência às afirmações de Vladimir Putin no dia 24 de Fevereiro de 2022: «Quem quer que tente atravessar-se no nosso caminho ou (…) criar ameaças para o nosso país e o nosso povo, deverá saber que a Rússia responderá imediatamente, e as consequências serão tais que nunca viram nada de parecido em toda a vossa história.» Acompanhadas de um aumento do nível de alerta das forças nucleares russas («um regime especial de serviço de combate»), estas palavras remetem para uma categoria de chantagem. E poderão, portanto, conduzir a que se considere que a reacção do presidente dos Estados Unidos constitui um recuo. Desde o dia 27 de Janeiro, no New York Times, o editorialista neoconservador Bret Stephens, apelando a uma restauração do conceito de «mundo livre», adverte: «O sucesso do agressor depende, no final, da rendição psicológica da sua vítima».

Seríamos tentados, com efeito, a afirmar que não cabe ao dito agressor determinar o nível de agressividade «aceitável» da parte dos que, com a ajuda de aliados, tentam defender a intangibilidade das suas fronteiras e a sua existência nacional. Mas esta observação poderia perfeitamente aplicar-se a outras crises internacionais passadas, por exemplo o caso do Koweit, invadido em 1990 pelo Iraque. O problema é que, trinta anos mais tarde, o território agredido é o da Ucrânia, com dimensões incomparáveis. E que o agressor, a Rússia, possui argumentos estratégicos de uma natureza diferente dos de Saddam Hussein.

Para compreender os desafios das relações actuais entre a Casa Branca e o Kremlin, bem como a irritação de Biden face ao maximalismo de alguns dos seus compatriotas ou aliados, talvez seja preferível referir uma outra declaração, mais antiga. Neste caso, a do ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, afirmando, em 2018, que a doutrina nuclear russa «limita claramente a possibilidade de utilizar as armas nucleares a dois cenários defensivos: em resposta a uma agressão contra a Rússia ou os seus aliados através de armas nucleares ou de qualquer arma de destruição maciça, ou em resposta a uma agressão não nuclear, mas unicamente se a sobrevivência da Rússia for ameaçada». As doutrinas nucleares são feitas para serem interpretadas. Há muito tempo que tem vindo a travar-se um aceso debate entre os peritos em estratégia especialistas da Rússia a propósito da leitura correcta deste tipo de referências doutrinais. No dia 11 de Março, na revista bimestral Foreign Affairs, Olga Oliker, directora do programa para a Europa e a Ásia Central da organização não-governamental International Crisis Group, considera assim que «a expressão de Putin “um regime especial de serviço de combate”, se bem que não tenha sido utilizada anteriormente, não parece assinalar uma mudança séria na postura nuclear da Rússia».

Mas, pelo menos em matéria de percepção, o que é induzido pelo segundo cenário evocado em 2018 por Lavrov — «se a sobrevivências da Rússia for ameaçada» — não pode ser evitado na crise actual. Trata-se de saber se os dirigentes russos consideram realmente o estatuto estratégico do Estado da Ucrânia, e portanto a sua pertença eventual à OTAN, como uma questão vital. Se a resposta for positiva, tal explicaria porque é que, contra toda a lógica formal, contra toda a razão política, oferecendo assim ao atlantismo da OTAN uma razão para se constituir como frente, e degradando irremediavelmente o estatuto internacional de Moscovo, estes dirigentes puderam considerar racional agredir unilateralmente o seu vizinho. E optar, além disso, por uma «nuclearização» clara da sua diplomacia de crise a fim de afastar qualquer outro beligerante estatal do confronto em curso. Uma manobra cínica, tornando claras as fraquezas e hesitações ocidentais, a fim de maximizar a liberdade de acção russa? O antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair questiona-se no seu sítio Internet: «Será razoável dizer antecipadamente [a Putin] que, faça ele o que fizer no plano militar, nós excluiremos qualquer forma de resposta militar? Talvez seja a nossa posição, e talvez seja a posição certa, mas assinalá-lo continuamente, e afastar a dúvida no seu espírito, é uma táctica estranha». Contudo, apesar de a dimensão de manobra ser evidente, quem é que — assumindo desde logo uma responsabilidade pelos acontecimentos futuros — seria capaz de afirmar, agora, precisamente até que ponto este cinismo táctico russo, que atingiria os seus objectivos sob a forma de uma santuarização agressiva bem sucedida, se mistura com uma parte de convicção estratégica, alimentada de frustrações cristalizadas? Devemos subestimar o carácter explosivo desta mistura se, de forma aventureira, o síndrome obsessivo russo for «testado» frontalmente pelos ocidentais na Ucrânia?

Estas questões também já outros as colocaram, bem antes de Biden. Confrontado com a «linha dura» do seu estado-maior nos primeiros dias da crise dos mísseis de Cuba, em Outubro de 1962, John F. Kennedy sintetizou o desafio que é decidir neste momento crítico, em termos não puramente militares, mas essencialmente perceptuais. Ao quarto dia da crise, a reunião do «Excomm» (comité executivo do Conselho de Segurança Nacional) estava a começar: «Em primeiro lugar», começou o jovem presidente, «deixem-me precisar, do meu ponto de vista, (…) a natureza do problema. (…) Devemos antes de mais nada perguntar-nos porque é que os russos agiram desta maneira.» Os arquivos desclassificados deste momento-chave da história das relações internacionais mostram que Kennedy evoca de seguida a solução de um bloqueio (blockade), a importância de deixar uma porta de saída a Nikita Khruchtchov, a necessidade de evitar uma ascensão aos extremos nucleares, preservando a credibilidade internacional norte-americana. De cara cerrada, o general Curtis LeMay, chefe do estado-maior da US Air Force, responde-lhe que «este bloqueio e esta acção política conduzem à guerra». Antes de afirmar, lapidar: «É quase tão negativo como o apaziguamento [a política britânica de apaziguamento em relação ao Terceiro Reich alemão] que precedeu Munique.» A troca de palavras é tensa, agressiva. Kennedy, muito seco, agradece aos seus generais que lhe aconselham, todos eles, uma acção militar imediata. O presidente fará exactamente o contrário nos dias que se seguem. «Estavam errados», conclui o historiador Martin J. Sherwin numa obra recente consagrada aos processos de decisão comparados em período de crise nuclear. «Se o presidente não tivesse insistido nesta noção de bloqueio, se tivesse aceitado as recomendações do estado-maior general, também seguidas pela maioria dos seus conselheiros do Excomm, teria involuntariamente precipitado uma guerra nuclear».

A questão central é a do valor das ameaças nucleares com que a Rússia envolve a agressão convencional que premeditou e desencadeou. O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky duvida da real determinação do homólogo russo: «Penso que a ameaça de uma guerra nuclear é um bluff. Uma coisa é ser assassino. Outra coisa é suicidar-se. Cada utilização de armas nucleares significa o fim para todas as partes, não apenas para a pessoa que as utiliza». (...) (Le Monde Diplomatique, texto do jornalista Olivier Zajec) 

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