quarta-feira, março 25, 2020

Covid-19: O filme de terror nos lares de terceira idade espanhóis

O Exército espanhol vai desinfetar residências de idosos na região de Madrid. A entrada em cena dos militares revelou casos de extrema gravidade no cuidado (ou falta dele) em muitos destes centros num tempo de pandemia. A voz de Marife transmite desespero. A sua mãe, de 82 anos, vive no lar de terceira idade de Nuestra Señora de la Antigua, na pequena localidade de Morata de Tajuña, na região de Madrid. É uma das residências geridas por religiosas que mais sofre, neste momento, a estocada mortal da covid-19. Desde o dia 13 de março Marife não sabe da mãe. Nem uma chamada telefónica. Nem uma comunicação. O centro foi isolado mal se detetou o primeiro caso suspeito entre os 98 utentes, confirmado passadas 24 horas. Um homem, que todos na aldeia conhecem por ‘Gary Cooper’ desde o tempo em que vendia guloseimas, começou a sentir-se indisposto.
Tinha febre alta e dificuldade em respirar. Nem as freiras nem os 26 trabalhadores do centro suspeitaram então que o patogénico se apoderara do lar. Quanto ativaram o alarme, o coronavírus já estava na sua fase de expansão máxima. “‘Gary Cooper’ morreu no dia seguinte e, a partir daí, que se saiba, morreram outros cinco idosos, embora desconfiemos que na verdade sejam nove. O ritmo é enorme em comparação com os 17 falecidos no lar público-privado Monte Hermoso de Madrid, porque esse tinha 200 internados e este só tinha 100”, lastima Marife.
A única coisa que a direção do lar de Morata de Tajuña admite é a existência de mais seis idosos doentes. Todos apresentam os mesmos sintomas que ‘Gary Cooper’: febre alta e dificuldades respiratórias. Dos restantes 87, entre eles a mãe de Marife, nada se sabe.
Pessoal em fuga, idosos lado a lado com cadáveres
As religiosas, em pânico, impuseram à residência um silêncio monástico que só agrava a angústia dos familiares dos afetados. “Estou alarmada, liguei várias vezes esta semana mas não clarificam se a minha mãe está infetada ou não, se está de boa saúde ou isolada. Perguntei pelo impacto do coronavírus e responderam-me que não podiam dizer nada. Não sei como está”, prossegue Marife, cerrando os punhos de raiva. O seu tom de voz denuncia angústia e medo. Não se lhe saca uma palavra de compreensão para com as freiras que cuidam da sua mãe há anos.
A mobilização, desde segunda-feira, de unidades do Exército para várias residências como a deste pequeno povoado de 7500 habitantes permitiu dar conta de uma realidade desastrosa. Como reconheceu a ministra da Defesa, Margarita Robles, nalguns locais os militares encontraram cenários pavorosos, com “idosos a conviver com cadáveres debaixo do mesmo teto, e o pessoal desaparecido”.
Embora os nomes destes centros de horror, todos em Madrid, não tenham sido revelados, a Procuradoria-Geral do Estado assegurou que vai investigá-los e que, a confirmarem-se os factos, “lançará todo o peso da lei sobre os responsáveis”. Certas vozes ergueram-se contra a política de privatização deste tipo de instalações, em marcha na região há mais de uma década. Dos 430 lares e 53 mil vagas existentes na região, 370 são geridos de forma privada ou concertada por empresas, fundações ou comunidades religiosas sem fins lucrativos.
O relatório anual de 2018 apresentado pelo Defensor do Povo (semelhante ao Provedor de Justiça português) ao Parlamento regional referia os protestos pelo funcionamento destas residências, comunicados por familiares, trabalhadores e até os próprios utentes. A imensa maioria criticava a escassez de pessoal e meios para dar atenção adequada aos idosos com maior grau de dependência.
No lar de Morata de Tajuña existem vários casos. Um deles é o da mãe de Marife, doente de Alzheimer. “Que se passa?”. A pergunta ressoa como chicotada num ambiente de incerteza e confusão que abate todos os familiares, enquanto aguardam a chegada das unidades de desinfeção do Exército. O lar é gerido por um consórcio de empresas, incluindo também o município, e administrado por uma ordem religiosa. Os quase 90 idosos são atendidos atualmente por três freiras e um médico, que chegou na semana passada após vários dias de desatenção médica, assegura um funcionário do centro.
Fazem turnos para dispensar oxigénio aos idosos com patologias próprias da idade, abrir vias nos pacientes que começaram a mostrar sintomas de terem contraído o coronavírus e isolar os saudáveis. Fazem-no sozinhos, porque já não há enfermeiras nem pessoal especializado. “Não há tempo para emitir comunicados nem histórias. A situação é grave, porque a covid-19 afetou de forma virulenta todos os utentes desta instituição”, argumenta a direção do lar, num breve comunicado difundido na semana passada. A residência, acrescenta, empregou “todos os meios disponíveis para conter o vírus” e pede compreensão aos familiares dos utentes.
Isto não alivia, porém, o desgosto reinante. Tampouco a decisão do Governo de assumir a gestão dos lares concertados, como o de Nuestra Señora de la Antigua, dada a sua manifesta incapacidade para conter a propagação do vírus.
Infetados no velório
Os familiares de residentes de Morata de Tajuña preferem não apontar o dedo ao pessoal dirigente do lar, mas a maioria tira uma conclusão dolorosa. “A política de concertação e privatização destes lares de terceira idade na região de Madrid foi enormemente negativa”, queixa-se Marife, numa afirmação que não admite contemplações. Quem conhece o funcionamento destes centros – como ela, que é auxiliar de geriatria – garante que não estão preparados para enfrentar uma urgência sanitária de dimensão média, para não falar de uma pandemia.
“Não estão medicalizados”, delata Marife. Denuncia que há dias aconteceu o mesmo no lar Santísima Virgen e San Celedonio, em pleno centro de Madrid, onde morreram 12 dos 145 residentes e outros 30 permanecem isolados, com sintomas claros de pneumonia. O horror neste lar roçou o paroxismo quando se descobriu que as freiras que davam assistência aos idosos tinham abandonado o local “sem aviso nem despedida”, explicou o capelão no canal de televisão Tele5, de difusão nacional.
Não muito longe da residência de Nuestra Señora de la Antigua fica a pequena morgue da aldeia. Ali os mortos por coronavírus acumulam-se desde a semana passada. Um deles era ‘Gary Cooper’, talvez com a infeção que vai apurando a sua existência antes de se extinguir na sua própria voracidade. O resultado do triste velório a que teve direito também foi devastador. Uma das suas filhas e vários trabalhadores da funerária acabaram contagiados pelo coronavírus.

Também aqui a prevenção chegou tarde e o centro foi encerrado. Serve de consolo a Marife que o gotejar de dramas tenha aberto os olhos às freiras da residência da sua mãe, como se abriram as portas de Jericó. No dia após a morte de ‘Gary Cooper’, puseram todos os idosos, já enfermos, de quarentena. Assim continuam, à espera de notícias que aliviem tanto desvelo, da chegada dos destacamentos militares armados para desinfeção e, sobretudo, ansiando por que a lotaria implacável da covid-19 retroceda, para pais e filhos poderem voltar a abraçar-se (texto deGorka Castillo, Expresso)

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