quinta-feira, janeiro 23, 2020

Nota: um 2020 (demasiado) decisivo para a RTP

Dificilmente 2020 será um ano de desafios para a RTP, desde logo o desafio da mudança, do salto qualitativo em frente, da disputa, finalmente, de audiências com os demais canais privados - mais ou menos em crise também - porque são as audiências que trazem receitas e estabelecem uma espécie de contrato de confiança com os espectadores.
A RTP tem que deixar de ser um parente pobre do audiovisual nacional, só porque é detida por um Estado a 100% e viciado em cativações. Se assim for, melhor será acabar com o serviço público de televisão - uma designação que dá para muita coisa e permite muitas adaptações em função dos vários interesses em jogo - e lançar a RTP para o mundo selvagem da privatização, no qual provavelmente pouco tempo sobreviveria.
Sendo o espelho do serviço público de rádio e televisão em Portugal, então cabe ao Estado, sem rodeios, sem truques, sem meias-palavras, assumir as suas responsabilidades e dotar a empresa de condições para que a resposta esperada pelas pessoas seja a adequada. A RTP não pode continuar a caminhar sem destino, sem GPS. Tem que traçar objectivos, consolidar a sua posição no sector, que preferencialmente devia ser a de liderança ou perto dela.
Para isso há que assumir e encarar internamente algumas questões prementes:

- resolver de uma vez por todas o dossier dos dos precários, clarificando o que está em cima da mesa, qual a dimensão do fenómeno, quais os casos resolvidos ou por resolver, quais as situações que são de falsa precariedade, a que se juntam, tal como é voz corrente nos corredores da empresa, alguns oportunismos espertalhões que se deixaram ir a reboque das reivindicações e movimentações suscitadas pelo tema. A RTP não pode continuar presente nas agendas mediáticas por causa deste tema, com pressão de candidatos à integração na empresa, com audiências a ministros, etc. Tem que resolver ou decidir, sim ou não, quais as situações resolvidas e clarificar de uma vez por todas quais os casos que recusa fazê-lo e por que motivo. Desejo que até Março/Abril de 2020 este dossier seja definitivamente fechado. Estou farto do envolvimento de partidos, por puro oportunismo, que julgam que ganham votos a reboque destes casos difíceis de entender. Falar deles para o espaço mediático, acreditam os mentores dessas tretas, dá-lhes protagonismo e dimensão eleitoral, o que é absolutamente patético. Acho que nalguns casos ajuda a "enterrar" o processo em vez de facilitar a sua resolução. Por exemplo actores ligados à área política do governo de coligação PSD de Passos - CDS de Portas, o que fizeram para resolver isto? Nada, pelo contrário, mais do que vender um canal atrofiaram financeiramente a empresa pública e pariram, pomposos modelos de gestão marcados por uma alegada "independência" da empresa face ao poder político, esquecendo o direito de veto do Ministro das Finanças relativamente ao gestor responsável financeiro pela RTP e a sua decisão sobre a libertação de recursos financeiros necessários (veja-se como se arrasta no tempo uma verba de mais de 15 milhões de euros, aprovada até por Bruxelas que há 3 anos aguarda simpaticamente pelo "sim" de Centeno). É voz corrente, retomando o tempo do anterior governo PSD-CDS, que caso não fosse a recusa de Portas e provavelmente a RTP seria hoje apenas uma recordação. De uma empresa extinta ou de outra vendida a capitais chineses ou angolanos - aliás isso mesmo foi denunciado pro Ana Gomes esta semana, a reboque do escândalo com Isabel dos Santos, a tal empresária que ninguém conhece em Portugal e da qual o poder político, financeiro e económico nacional nunca ouvir falar...
- resolver, segunda questão, de uma vez por todas os problemas técnicos que são gritantes, que retiram qualidade à RTP, que dificultam o acesso nalgumas (muitas) zonas do pais, num cenário que ofende qualquer pessoa minimamente inteligente. Há que resolver, de uma vez por todas, a falta de recursos para esse investimento e para a consequente modernização da empresa e dos seus meios de produção e de emissão. Se o Estado não propicia esses meios, se a Europa - que queima milhões com a banca e com as patifarias capitalistas no sector financeiro - entende que o serviço público de televisão não pode ser financiado directamente pelo Estado-patrão, dono da empresa pública, então há que encontrar alternativas e ter a imaginação para o fazer. Deixar que a degradação se acentue, que a RTP perca audiência, que os profissionais se desmotivem, é um erro que terá consequências. 
- finalmente há que estabilizar as relações profissionais e pessoais no seio da empresa. A RTP nesta fase em que precisa urgentemente de dar o salto qualitativo sob pena de estarmos a falar da sua sobrevivência, não pode andar envolta em confusões internas, em conflitos pessoais alimentados pro vaidades ou divergências entre pessoas, em confrontos de interesses e de grupos de pressão internos e externos, dividindo e fragilizando ainda mais uma empresa que não pode ficar refém de situações absurdas, muitas delas que deviam ser discutidas e resolvidas internamente mas que deliberadamente são colocadas no exterior, na agenda mediática, alimentando a fofoquice em torno da RTP e fragilizando-a ainda mais, até, e desde logo, junto da tutela, leia-se de Mário Centeno que reconhecidamente não gosta de jornalistas e olha com desconfiança para a comunicação social em geral. E não é o único, mesmo que António Costa viva disso, seja um produto do espaço mediático e dele dependa.
Dizem alguns que o tempo da interferência manipuladora do estado na RTP, melhor, do poder político que a cada momento passava pelo aparelho de estado, terminou graças a um modelo de gestão parido pelo governo de Passos e do CDS, no tempo da troika, em que a fragmentação da empresa, pelo menos para a venda de um canal era uma ameaça permanente, pelo menos entre 2011 e 2013. Aliás, muita coisa desse tempo "troikiano" sobreviveu ao primeiro governo da geringonça e dificilmente deixará de sobreviver ao segundo governo de uma geringonça mais envergonhada.
Se a RTP - continuo a pensar que deve haver a coragem de fazer mudanças no topo, porque é isso que acontece quando se percebe que a capacidade de pessoas chamadas a funções de responsabilidade se esgota com o tempo - não for capaz de dar a volta e abrir um novo caminho que a leva de forma seguro a objectivos - a empresa tem que ter objectivos de gestão e em termos de resultados da produção própria na informação e na programação - então tudo se complicará em torno deste tema, que não se compadece com sentimentalismos mais ou menos puxados à esquerda mais populista ou ingénua.
Texto do provedor
Lembro a propósito o texto do Provedor do Espectador acessível no site das RTP:
"Muitos telespetadores escrevem-me referindo-se à RTP como “a nossa televisão, paga com os nossos impostos”. O que sendo verdade, não é toda a verdade, pois a televisão, ao contrário da rádio pública, é também paga pelos anunciantes. Mas, no essencial, a afirmação é certa: esta é a televisão de todos nós. Contudo, não é fácil determinar com precisão as consequências concretas, em termos de programação e de informação, que daí decorrem.
Convém recordar que a SIC e a TVI também têm obrigações – e não tão poucas assim – que decorrem não só da lei geral, mas também do facto de terem concorrido a licenças definidas nos termos e com os encargos que o Estado português livremente definiu. Não podem, por isso, oferecer todo o tipo de programas nem programar tudo o que lhes poderia trazer mais e maiores audiências.
Quanto ao serviço público de televisão, o legislador tem, ao longo dos anos, variado entre definir obrigações genéricas ou imposições muito específicas. Chegou ao extremo de impor o número de vezes que, no espaço de um mês, programas com conteúdos bem precisos deviam ser emitidos, especificando para cada um deles uma determinada janela horária. Obrigações deste tipo continuam a existir, mas em menor número do que no passado.
Em qualquer caso, o que todos esperamos do serviço público de televisão não é apenas que cumpra uma série de deveres impostos pela lei. Esperamos que dê um contributo único e inquestionável no campo da divulgação do conhecimento e da cultura, das artes e da língua, dos direitos individuais e sociais, da coesão nacional e da qualidade informativa orientada pelos mais elevados padrões internacionais. Contributo que não se restrinja a este ou aquele programa, mas que seja uma marca distintiva de todos os programas em qualquer canal RTP".
Contrato de confiança
A RTP precisa de estabelecer um contrato de confiança com os telespectadores assente não em sentimentalismos mas na qualidade, numa programação diversificada que sem tabus corresponda ao que as pessoas desejam. Cada sociedade tem os seus hábitos de consumo, incluindo nos médias e na televisão mais em concreto.
Se ao invés disso se institucionalizar de forma radical uma espécie de primado das audiências, se a RTP usar de forma abusiva o conceito de "serviço público" - que não pode ser generalizado nem ser alargado a tudo, conforme as conveniências de cada um - por exemplo para recusar as emissões na RTP de jogos de futebol, que são as emissões que mais espectadores cativam  e, portanto, aquelas que mais receitas publicitárias geram, ou ignoram, e bem em meu entender, os procedimentos iguais aos da concorrência privada no que a concursos associados a programas de entretenimento e com recurso às chamadas de valor acrescentado que já foram, no passado recente um negócio altamente rentável para todas as entidades (em finais de 2018 que a SIC e a TVI fizeram menos 6,7 milhões de euros nessas chamadas e que os canais reconheceram que estavam a receber cada vez menos com os serviços multimédia, tendência que se iniciou em 2015).
É este salto institucional e qualitativo que tem que ser dado, não pode haver hesitações nem meias-palavras. A RTP é uma empresa pública, detida integralmente pelo estado, que deixou de poder ser financiada directamente pelo poder devido a restrições impostas por Bruxelas aos estados-membros, limitando-se apenas a receber receitas anuais da ordem dos 200 milhões de euros resultantes da CAV - contribuição para o audiovisual que manterá em, 2020 os mesmos valores em vigor desde 2018.
Com mais despesas, com a necessidade de efectuar investimentos tecnológicos habilmente adiados ou "cativados" - incluindo na RTP-Madeira - com o aumento dos custos com a elaboração de uma grelha minimamente concorrencial, com um aumento dos encargos financeiros para pagamento do pessoal que se juntou a integração de precários, é evidente que a situação financeira da RTP não seja famosa, e apesar dos esforços da Administração para apresentar números atraentes, a verdade é que isso está longe de corresponder a um patamar qualitativo minimamente atraente. Globalmente a RTP foi sempre o 3º canal, embora nos últimos meses esteja a beneficiar de quedas abruptas, que não são constantes e penso que não definitivas, da TVI que se encontra numa fase final do processo de aquisição pela Cofina, grupo que já é detentor do canal líder no cabo, a CMTV - e de reformulação das estrutura de funcionamento e da grelha de programação e informação.Li algures que o serviço público "tem obrigações fixadas na Lei e no contrato de concessão, mas o que todos esperamos dele não é apenas que cumpra uma série de deveres impostos pela Lei. Esperamos que dê um contributo único e inquestionável no campo da divulgação do conhecimento e da cultura, das artes e da língua, dos direitos individuais e sociais, da coesão nacional e da qualidade informativa".
Estamos num tempo de revisão do contrato de concessão do serviço público. O actual governo de Lisboa já anunciou que o processo está em marcha, que foram pedidos pareceres a organismos no âmbito da RTP. Espero e desejo que entidades públicas, nomeadamente o parlamento, organismos dos jornalistas, demais trabalhadores, espectadores, reguladores, entidades ligadas aos consumidores de televisão, parlamentos e governos das regiões autónomas, autarquias, etc, se envolvam num processo transparente, aberto, participado, que não pode ser redutor e reservado a uma espécie de casta elitista ligada à RTP, onde tudo gira em torno de uma auto-satisfação situacionista que esconde a realidade ou traça cenários que nada têm a ver com a realidade.
Temos que ter presente que a CAV, cobrada por imposição governamental aos consumidores e paga através das facturas de electricidade, garante à RTP uma verba da ordem dos 200 milhões de euros anuais que são um importante financiamento da empresa, mas que são insuficientes e não resolvem os problemas que hoje se colocam à empresa pública. Por tudo isto, 2020 será o ano mais do que decisivo para a RTP, um ano em que terão que ser  feitas opções e concretizadas mudanças a começar pelo topo da empresa, para que ela possa contar com novas ideias, novo élan, nova capacidade de gestão da empresa nos seus diferentes patamares, etc. Muitos anos a desempenhar a mesma função, sobrevivendo a mudanças até no poder político, acaba por ser algo estranho que suscita questionamentos e que pouco ou nada funciona a favor da RTP e do que ela hoje precisa para sair de uma perigosa banalização (LFM)

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