No passado, para encontrar tesouros, era necessário desencantar de um
baú um mapa secreto, amarelecido pelos anos, onde o local estaria marcado por
um X. Na Madeira, é mais simples. Basta perguntar pela Sé. Cerca de quinhentos anos depois da sua concepção, as pinturas do
retábulo da Sé do Funchal voltam a ganhar vivacidade e redescobrem-se
pormenores perdidos, encobertos pelo fumo das velas, pela maresia e pela
passagem do tempo. A equipa de conservação e restauro espera encontrar pistas
sobre a autoria das principais pinturas desta obra de arte flamenga, instalada
em pleno oceano Atlântico.
Uma das mais espectaculares pinturas do retábulo-mor da Sé do Funchal é
a Descida da Cruz, mas, naquele dia, os historiadores e os especialistas em
conservação e restauro não estavam ali para admirar a produção artística. Algo
naquele quadro não batia certo. Na Bíblia, são famosas as Três Marias, que
acompanharam Maria de Nazaré, mãe de Cristo, quando este foi retirado da cruz.
No entanto, na pintura flamenga que durante quatrocentos anos esteve à frente
dos olhos dos crentes funchalenses, Maria de Nazaré não estava representada. Havia
outros indicadores de anormalidade. Após a abertura de uma janela de limpeza,
uma das Marias estava estranhamente pintada. A escala, a tonalidade e o estilo
de pintura eram diferentes das outras duas.
Com recurso a radiografia de raios X e a um sistema que implicou a colocação de placas fotossensíveis no verso da estrutura do retábulo, atrás deste quadro, foi possível identificar uma primeira pintura, a original, debaixo do borrão preto que existe agora. Nessa representação, criada por um ou mais artistas flamengos desconhecidos, Maria surgia prostrada e uma das mulheres ajoelhadas amparava-a. Porque teria esta figuração desaparecido na pintura?
A história fornece pistas, forçando-nos a recuar ao século XVI. A Sé foi
oferecida por Dom Manuel I (1469-1521) ao Funchal na década de 1490. Projecto
demorado, foi concluído em 1514, seis anos depois da elevação da vila a cidade.
O retábulo-mor data de 1510 a 1515 e a figuração religiosa revelada pela
análise científica remonta a este período. Três décadas depois, porém, a Igreja
Católica organizou um dos mais importantes debates ecuménicos da sua história,
marcando posição sobre a emergência do protestantismo. No Concílio de Trento,
de 1545 a 1563, entre outras doutrinas, foi decidido que a mãe de Cristo não
deveria voltar a ser representada deitada, mas sim de pé, na arte religiosa.
Alguém no Funchal, terá levado a recomendação à letra, e repintou o óleo
original, “apagando” Maria deitada. Mas isso levantava um problema: a outra
mulher não podia amparar um vulto inexistente. Logo, foi também ela repintada,
em pé. O artista não era, infelizmente, tão talentoso quanto o original, razão
pela qual as suspeitas se levantaram e confirmaram. Quem diria que um projecto
de restauro poderia ter um enredo digno de um episódio de “CSI”?
Da varanda do edifício do Museu de Arte Sacra do Funchal, vê-se a torre da Sé, sobranceira à baixa da cidade.
Da varanda do edifício do Museu de Arte Sacra do Funchal, vê-se a torre da Sé, sobranceira à baixa da cidade.
Aqui, bem no centro do Funchal, até há pouco tempo à vista dos olhares
do público mas paradoxalmente escondido há centenas de anos, o tesouro
artístico está a ser lentamente desenterrado, na forma de uma das mais belas
obras-primas da arte antiga portuguesa: o impressionante retábulo da Sé do
Funchal, a primeira catedral atlântica e, à época, sede da Diocese da Madeira e
de Goa.
Exemplo maior da pintura seiscentista, tudo nele é superlativo: a
quantidade de painéis, o rendilhado dos baldaquinos, a dimensão e imponência da
estrutura. Resultado de uma encomenda régia, representa a importância dada pelo
rei à Madeira e ao seu poder económico conseguido pelos canaviais de açúcar no
século XVI, que alimentaram uma profusão de obras de arte de tal forma numerosa
que, ainda hoje, a colecção do Museu de Arte Sacra do Funchal rivaliza com as
melhores do país.
A produção do retábulo, nas famosas oficinas de arte da Flandres, demorou dois anos e o resultado foi uma arquitectura modular que conta com capitéis, púlpitos, pilares e colunas.
A estrutura de suporte do retábulo foi criada em pinho da Madeira e as esculturas e talha em carvalho do Báltico. No entanto, nenhum madeirense vivo alguma vez a viu no seu esplendor. Séculos de fumo de velas e incenso, a proximidade do mar e a deposição de pó foram roubando a vivacidade das cores e depositando um manto escuro que privava o público do seu encanto. Até Abril deste ano.
A produção do retábulo, nas famosas oficinas de arte da Flandres, demorou dois anos e o resultado foi uma arquitectura modular que conta com capitéis, púlpitos, pilares e colunas.
A estrutura de suporte do retábulo foi criada em pinho da Madeira e as esculturas e talha em carvalho do Báltico. No entanto, nenhum madeirense vivo alguma vez a viu no seu esplendor. Séculos de fumo de velas e incenso, a proximidade do mar e a deposição de pó foram roubando a vivacidade das cores e depositando um manto escuro que privava o público do seu encanto. Até Abril deste ano.
Uma equipa de cientistas e restauradores quer reverter o processo, com o
objectivo de resgatar ao tempo o último grande retábulo flamengo in situ.
António Candeias é um dos investigadores que procura levantar o véu sobre esta
estrutura. Coordenador geral do projecto, ele é químico de formação e traz para
o projecto interrogações invulgares numa pesquisa histórica: “O retábulo
constitui um nó górdio da pintura flamenga.
Há muitas questões por responder: quem foram os seus autores, que
alterações foram feitas às pinturas iniciais, que técnicas foram utilizadas.”
As questões não serão necessariamente respondidas com este projecto, mas o
investigador sublinha a importância dos trabalhos para a valorização do
património do arquipélago: “O retábulo é como uma aparição. Ninguém o ‘vê’ há
trezentos ou quatrocentos anos. Será um reencontro da população com as
pinturas.”
Visível desde a entrada, o retábulo da Sé do Funchal é um dos mais
importantes da sua época, mantendo-se praticamente inalterado.
Com recurso a equipamento tecnologicamente avançado, muito do qual
utilizado também em investigação forense, espera-se que dentro de nove meses,
no próximo Verão, quando a intervenção terminar, o número de respostas aumente
e o de perguntas diminua. Como no exemplo das figuras de Maria enigmaticamente
reposicionadas.
Para melhor compreender o enquadramento do projecto de restauro, fora
marcada uma reunião numa das acolhedoras esplanadas do Funchal. Na mesa, uma
água tónica dava tom à conversa com Francisco Clode, director dos Serviços de
Museus e Património Cultural. Impecavelmente vestido, entre baforadas de fumo
exaladas ritmadamente, explica que o projecto se encontra sob a égide da
Direcção Regional dos Assuntos Culturais, em parceria com o World Monuments
Fund, o Laboratório hercules da Universidade de Évora e o Laboratório José de
Figueiredo da DGPC. A equipa técnica, por seu lado, é multidisciplinar e inclui
cinco especialistas em conservação e restauro de pintura, quatro em
escultura/talha e ainda seis investigadores de física, química e biologia.
A equipa técnica, por seu lado, é multidisciplinar e inclui cinco especialistas em conservação e restauro de pintura.
A equipa técnica, por seu lado, é multidisciplinar e inclui cinco especialistas em conservação e restauro de pintura.
Com cerca de 250 mil euros de orçamento, a iniciativa começou em Julho
de 2011, altura em que foi desenvolvida uma intensa campanha prévia de exames,
diagnóstico de conservação e restauro que se prolongou por dois meses com
análise in situ de imagem ultravioleta, infravermelhos e fluorescência de raio
X. Cada centímetro quadrado de pintura ou madeira foi escrutinado, como numa
investigação forense. Em Abril passado, as equipas voltaram ao terreno, desta
vez para o frenético trabalho de limpeza, conservação e restauro.
À medida que a noite cai, o ritmo de trabalho não diminui. Cruzando-se
com os colegas que descem do andaime, Luís Piorro, fotógrafo do Laboratório
José de Figueiredo, chega munido de uma estranha “máquina fotográfica”, amarela
e cheia de luzes coloridas: é um digitalizador de placas de raios X.
Contorcendo-se para aceder ao tardoz do retábulo (a parte traseira,
estrutural), leva consigo os “rolos”, que serão impressionados pela radiação X.
O emissor, um cilindro móvel, é colocado à frente das pinturas e, por motivos
de saúde e segurança, este trabalho só pode ser efectuado à noite.
Mercês Lorena, coordenadora de pintura do projecto, salvaguardou a protecção dos desenhos originais e a intenção dos primeiros autores das obras. Em restauro, porém, é indispensável tomar decisões difíceis, implicando por vezes imaginar o que o pintor terá desejado criar. Através de pormenores técnicos, a equipa espera encontrar pistas sobre a autoria das pinturas do retábulo da Sé.
Mercês Lorena, coordenadora de pintura do projecto, salvaguardou a protecção dos desenhos originais e a intenção dos primeiros autores das obras. Em restauro, porém, é indispensável tomar decisões difíceis, implicando por vezes imaginar o que o pintor terá desejado criar. Através de pormenores técnicos, a equipa espera encontrar pistas sobre a autoria das pinturas do retábulo da Sé.
Nos corredores da Catedral, engolidos pela penumbra, ouvem-se apenas os
passos dos investigadores e os sussurros das conversas, talvez sugeridos pelas
sombras negras e olhares inquisitivos dos anjos e santos. Junto ao
confessionário, o rosto de António Candeias, iluminado apenas pelo ecrã do
portátil, parece tão enigmático quanto o cenário que o enquadra.
Na manhã do dia seguinte, a azáfama no andaime de quatro pisos que se
ergue até ao tecto ricamente trabalhado contrasta com as expressões plácidas
das figuras representadas nos painéis. A equipa, constituída quase
exclusivamente por mulheres, vai “abrir uma janela” numa nova pintura: as luzes
acendem-se, os dedos esguios e delicados esgueiram-se para o interior de luvas
azuis, o algodão é enrolado com mestria em torno de finos bastões de madeira.
Nas mesas de apoio, perfilam-se dezenas de pequenos frascos, cujos preparados
químicos multicolores estão prontos para a deposição, em círculos ritmados, nas
telas enegrecidas. A magia começou.
Em poucos minutos, Mercês Lorena, a coordenadora de pintura, mostra
pormenores incríveis onde antes nada se via. Aqui, um cesto de ovos; além, um
lagarto de costelas salientes, um veado ou uma procissão. Encontram-se agora
pormenores que emprestam uma surpreendente tridimensionalidade à pintura.
Numa das salas de exposição do Museu de Arte Sacra do Funchal, Martinho Mendes abre um tríptico restaurado de forma original. Muito antes da intervenção, parte da tela fora cortada. A equipa de conservação à data optou por um restauro estilístico e reconstruiu a obra, mas não deixou essas superfícies totalmente pintadas, para representar precisamente o passado da obra.
Numa das salas de exposição do Museu de Arte Sacra do Funchal, Martinho Mendes abre um tríptico restaurado de forma original. Muito antes da intervenção, parte da tela fora cortada. A equipa de conservação à data optou por um restauro estilístico e reconstruiu a obra, mas não deixou essas superfícies totalmente pintadas, para representar precisamente o passado da obra.
A sensação de descoberta contagia todos os presentes. “Pensava que eram
conchas e, afinal, era um lagarto”, atira Mercês, com os cabelos louros
refulgindo sob os focos. “Digam lá se isto não é excitante!” A equipa espera
que pormenores como estes possam fornecer pistas sobre a autoria da obra, uma
das grandes incógnitas que se mantêm.
Os historiadores de arte indicam três possíveis autores luso-flamengos:
Francisco Henriques, o Mestre da Lourinhã ou Frei Carlos. As biografias destes
três artistas são fragmentadas. Conhecem-se poucos trabalhos efectivamente
assinados e, na verdade, a atribuição da sua autoria a estas pinturas é uma
mera hipótese. A complicar ainda mais o enigma, as semelhanças da obra
funchalense com os retábulos das sés de Viseu e Évora são notórias, sugerindo
uma eventual autoria comum ainda por comprovar. Ao contrário dos enigmas
forenses televisivos, este mistério não se resolverá num curto episódio.
Foto
Os historiadores de arte indicam três possíveis autores luso-flamengos:
Francisco Henriques, o Mestre da Lourinhã ou Frei Carlos.
Para obter uma perspectiva histórica mais lata, impõe-se uma visita ao
Museu de Arte Sacra do Funchal, bem no coração do anfiteatro natural em que a
cidade se encaixa. No acervo da instituição, encontram-se dezenas de pinturas
flamengas, que atestam o esplendor artístico que a Madeira atingiu à época.
Numa das salas, de luvas imaculadamente brancas, Martinho Mendes mostra a um
grupo de visitantes, cuja tez clara denuncia a geografia de origem, alguns dos
trípticos que em tempos ornamentaram muitas igrejas da ilha. As histórias que
levaram à recuperação destas obras são rocambolescas. Uma foi salva por mero
acaso, por um militar que, em viagem pelo interior, atolou o seu automóvel num
dia de intenso temporal.
As histórias que levaram à recuperação destas obras são rocambolescas.
Em seu auxílio, veio um carpinteiro que trazia consigo placas de madeira
para colocar sob as rodas do carro. Resultou. No entanto, a lama não disfarçou
por completo o que nelas estava pintado. Eram painéis de um retábulo
desmontado! Noutra ocasião insólita, um tríptico foi desmontado de uma igreja
em ruínas com o fim de o aproveitar para uma capela. Acontecia que esta era
mais pequena do que a original, e os painéis não cabiam ali. Infelizmente,
cortaram-se os cantos e os pés das personagens, solução prática, mas bárbara
aos olhos contemporâneos.
De volta à Sé, instala-se um silêncio repentino entre a equipa. São
11h30. Instantes depois, os altifalantes da igreja explicam a causa: é hora da
missa! Entre conversas em surdina e risos abafados, uma das jovens
conservadoras, com o característico sotaque madeirense, afirma, numa marca da
convivência secular do profano com o sagrado: “Nunca assisti a tanta missa na
vida!”
António Candeias, coordenador geral do projecto, analisa a evolução dos
trabalhos. Apesar de as telas serem os elementos mais emblemáticos do retábulo,
o projecto analisou igualmente madeiras e outros materiais.
Do alto do andaime, ao nível do baldaquino, a perspectiva para a igreja
é impressionante. Ainda mais difícil do que subir até lá foi chegar ao coro
alto, no extremo oposto do edifício. O motivo não foi sagrado, nem sequer atlético. A senhora das velas,
zelosa guardiã da escadaria de madeira, não se comoveu com o tema do projecto e
com o objectivo fotográfico da visita. Só com ordem expressa do pároco, e ainda
assim sob um olhar inquisitório, foi possível aceder à posição privilegiada que
o organista tem, pelo espelho convexo, da nave principal, com o retábulo
coroando a majestosa Sé-Catedral.
Finda a homilia, a igreja esvazia-se lentamente, o silêncio volta a
reinar e apenas alguns crentes se debruçam, em oração, iluminados pelas chamas
bruxuleantes das velas. Poucos saberão que, diante de si, escondido sob a
enorme tela plástica, ergue-se atrás do altar um tesouro digno de histórias de
piratas, prestes a ser desvendado. Um tesouro que começou com o doce açúcar,
moeda forte do século XVI, e com a vontade de celebrar na Madeira a
prosperidade que ele trouxe (Texto e Fotografia António Luís Campos, NationalGeographic)
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