sexta-feira, janeiro 31, 2020

Um tesouro no Funchal que não precisa de mapa secreto

No passado, para encontrar tesouros, era necessário desencantar de um baú um mapa secreto, amarelecido pelos anos, onde o local estaria marcado por um X. Na Madeira, é mais simples. Basta perguntar pela Sé. Cerca de quinhentos anos depois da sua concepção, as pinturas do retábulo da Sé do Funchal voltam a ganhar vivacidade e redescobrem-se pormenores perdidos, encobertos pelo fumo das velas, pela maresia e pela passagem do tempo. A equipa de conservação e restauro espera encontrar pistas sobre a autoria das principais pinturas desta obra de arte flamenga, instalada em pleno oceano Atlântico.
Uma das mais espectaculares pinturas do retábulo-mor da Sé do Funchal é a Descida da Cruz, mas, naquele dia, os historiadores e os especialistas em conservação e restauro não estavam ali para admirar a produção artística. Algo naquele quadro não batia certo. Na Bíblia, são famosas as Três Marias, que acompanharam Maria de Nazaré, mãe de Cristo, quando este foi retirado da cruz. No entanto, na pintura flamenga que durante quatrocentos anos esteve à frente dos olhos dos crentes funchalenses, Maria de Nazaré não estava representada. Havia outros indicadores de anormalidade. Após a abertura de uma janela de limpeza, uma das Marias estava estranhamente pintada. A escala, a tonalidade e o estilo de pintura eram diferentes das outras duas.

Com recurso a radiografia de raios X e a um sistema que implicou a colocação de placas fotossensíveis no verso da estrutura do retábulo, atrás deste quadro, foi possível identificar uma primeira pintura, a original, debaixo do borrão preto que existe agora. Nessa representação, criada por um ou mais artistas flamengos desconhecidos, Maria surgia prostrada e uma das mulheres ajoelhadas amparava-a. Porque teria esta figuração desaparecido na pintura?
A história fornece pistas, forçando-nos a recuar ao século XVI. A Sé foi oferecida por Dom Manuel I (1469-1521) ao Funchal na década de 1490. Projecto demorado, foi concluído em 1514, seis anos depois da elevação da vila a cidade. O retábulo-mor data de 1510 a 1515 e a figuração religiosa revelada pela análise científica remonta a este período. Três décadas depois, porém, a Igreja Católica organizou um dos mais importantes debates ecuménicos da sua história, marcando posição sobre a emergência do protestantismo. No Concílio de Trento, de 1545 a 1563, entre outras doutrinas, foi decidido que a mãe de Cristo não deveria voltar a ser representada deitada, mas sim de pé, na arte religiosa. Alguém no Funchal, terá levado a recomendação à letra, e repintou o óleo original, “apagando” Maria deitada. Mas isso levantava um problema: a outra mulher não podia amparar um vulto inexistente. Logo, foi também ela repintada, em pé. O artista não era, infelizmente, tão talentoso quanto o original, razão pela qual as suspeitas se levantaram e confirmaram. Quem diria que um projecto de restauro poderia ter um enredo digno de um episódio de “CSI”?


Da varanda do edifício do Museu de Arte Sacra do Funchal, vê-se a torre da Sé, sobranceira à baixa da cidade.

Aqui, bem no centro do Funchal, até há pouco tempo à vista dos olhares do público mas paradoxalmente escondido há centenas de anos, o tesouro artístico está a ser lentamente desenterrado, na forma de uma das mais belas obras-primas da arte antiga portuguesa: o impressionante retábulo da Sé do Funchal, a primeira catedral atlântica e, à época, sede da Diocese da Madeira e de Goa.
Exemplo maior da pintura seiscentista, tudo nele é superlativo: a quantidade de painéis, o rendilhado dos baldaquinos, a dimensão e imponência da estrutura. Resultado de uma encomenda régia, representa a importância dada pelo rei à Madeira e ao seu poder económico conseguido pelos canaviais de açúcar no século XVI, que alimentaram uma profusão de obras de arte de tal forma numerosa que, ainda hoje, a colecção do Museu de Arte Sacra do Funchal rivaliza com as melhores do país.


A produção do retábulo, nas famosas oficinas de arte da Flandres, demorou dois anos e o resultado foi uma arquitectura modular que conta com capitéis, púlpitos, pilares e colunas.

A estrutura de suporte do retábulo foi criada em pinho da Madeira e as esculturas e talha em carvalho do Báltico. No entanto, nenhum madeirense vivo alguma vez a viu no seu esplendor. Séculos de fumo de velas e incenso, a proximidade do mar e a deposição de pó foram roubando a vivacidade das cores e depositando um manto escuro que privava o público do seu encanto. Até Abril deste ano.
Uma equipa de cientistas e restauradores quer reverter o processo, com o objectivo de resgatar ao tempo o último grande retábulo flamengo in situ. António Candeias é um dos investigadores que procura levantar o véu sobre esta estrutura. Coordenador geral do projecto, ele é químico de formação e traz para o projecto interrogações invulgares numa pesquisa histórica: “O retábulo constitui um nó górdio da pintura flamenga.
Há muitas questões por responder: quem foram os seus autores, que alterações foram feitas às pinturas iniciais, que técnicas foram utilizadas.” As questões não serão necessariamente respondidas com este projecto, mas o investigador sublinha a importância dos trabalhos para a valorização do património do arquipélago: “O retábulo é como uma aparição. Ninguém o ‘vê’ há trezentos ou quatrocentos anos. Será um reencontro da população com as pinturas.”

Visível desde a entrada, o retábulo da Sé do Funchal é um dos mais importantes da sua época, mantendo-se praticamente inalterado.

Com recurso a equipamento tecnologicamente avançado, muito do qual utilizado também em investigação forense, espera-se que dentro de nove meses, no próximo Verão, quando a intervenção terminar, o número de respostas aumente e o de perguntas diminua. Como no exemplo das figuras de Maria enigmaticamente reposicionadas.
Para melhor compreender o enquadramento do projecto de restauro, fora marcada uma reunião numa das acolhedoras esplanadas do Funchal. Na mesa, uma água tónica dava tom à conversa com Francisco Clode, director dos Serviços de Museus e Património Cultural. Impecavelmente vestido, entre baforadas de fumo exaladas ritmadamente, explica que o projecto se encontra sob a égide da Direcção Regional dos Assuntos Culturais, em parceria com o World Monuments Fund, o Laboratório hercules da Universidade de Évora e o Laboratório José de Figueiredo da DGPC. A equipa técnica, por seu lado, é multidisciplinar e inclui cinco especialistas em conservação e restauro de pintura, quatro em escultura/talha e ainda seis investigadores de física, química e biologia.


A equipa técnica, por seu lado, é multidisciplinar e inclui cinco especialistas em conservação e restauro de pintura.

Com cerca de 250 mil euros de orçamento, a iniciativa começou em Julho de 2011, altura em que foi desenvolvida uma intensa campanha prévia de exames, diagnóstico de conservação e restauro que se prolongou por dois meses com análise in situ de imagem ultravioleta, infravermelhos e fluorescência de raio X. Cada centímetro quadrado de pintura ou madeira foi escrutinado, como numa investigação forense. Em Abril passado, as equipas voltaram ao terreno, desta vez para o frenético trabalho de limpeza, conservação e restauro.
À medida que a noite cai, o ritmo de trabalho não diminui. Cruzando-se com os colegas que descem do andaime, Luís Piorro, fotógrafo do Laboratório José de Figueiredo, chega munido de uma estranha “máquina fotográfica”, amarela e cheia de luzes coloridas: é um digitalizador de placas de raios X. Contorcendo-se para aceder ao tardoz do retábulo (a parte traseira, estrutural), leva consigo os “rolos”, que serão impressionados pela radiação X. O emissor, um cilindro móvel, é colocado à frente das pinturas e, por motivos de saúde e segurança, este trabalho só pode ser efectuado à noite.
Mercês Lorena, coordenadora de pintura do projecto, salvaguardou a protecção dos desenhos originais e a intenção dos primeiros autores das obras. Em restauro, porém, é indispensável tomar decisões difíceis, implicando por vezes imaginar o que o pintor terá desejado criar. Através de pormenores técnicos, a equipa espera encontrar pistas sobre a autoria das pinturas do retábulo da Sé.
Nos corredores da Catedral, engolidos pela penumbra, ouvem-se apenas os passos dos investigadores e os sussurros das conversas, talvez sugeridos pelas sombras negras e olhares inquisitivos dos anjos e santos. Junto ao confessionário, o rosto de António Candeias, iluminado apenas pelo ecrã do portátil, parece tão enigmático quanto o cenário que o enquadra.
Na manhã do dia seguinte, a azáfama no andaime de quatro pisos que se ergue até ao tecto ricamente trabalhado contrasta com as expressões plácidas das figuras representadas nos painéis. A equipa, constituída quase exclusivamente por mulheres, vai “abrir uma janela” numa nova pintura: as luzes acendem-se, os dedos esguios e delicados esgueiram-se para o interior de luvas azuis, o algodão é enrolado com mestria em torno de finos bastões de madeira. Nas mesas de apoio, perfilam-se dezenas de pequenos frascos, cujos preparados químicos multicolores estão prontos para a deposição, em círculos ritmados, nas telas enegrecidas. A magia começou.
Em poucos minutos, Mercês Lorena, a coordenadora de pintura, mostra pormenores incríveis onde antes nada se via. Aqui, um cesto de ovos; além, um lagarto de costelas salientes, um veado ou uma procissão. Encontram-se agora pormenores que emprestam uma surpreendente tridimensionalidade à pintura.
Numa das salas de exposição do Museu de Arte Sacra do Funchal, Martinho Mendes abre um tríptico restaurado de forma original. Muito antes da intervenção, parte da tela fora cortada. A equipa de conservação à data optou por um restauro estilístico e reconstruiu a obra, mas não deixou essas superfícies totalmente pintadas, para representar precisamente o passado da obra.
A sensação de descoberta contagia todos os presentes. “Pensava que eram conchas e, afinal, era um lagarto”, atira Mercês, com os cabelos louros refulgindo sob os focos. “Digam lá se isto não é excitante!” A equipa espera que pormenores como estes possam fornecer pistas sobre a autoria da obra, uma das grandes incógnitas que se mantêm.
Os historiadores de arte indicam três possíveis autores luso-flamengos: Francisco Henriques, o Mestre da Lourinhã ou Frei Carlos. As biografias destes três artistas são fragmentadas. Conhecem-se poucos trabalhos efectivamente assinados e, na verdade, a atribuição da sua autoria a estas pinturas é uma mera hipótese. A complicar ainda mais o enigma, as semelhanças da obra funchalense com os retábulos das sés de Viseu e Évora são notórias, sugerindo uma eventual autoria comum ainda por comprovar. Ao contrário dos enigmas forenses televisivos, este mistério não se resolverá num curto episódio.
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Os historiadores de arte indicam três possíveis autores luso-flamengos: Francisco Henriques, o Mestre da Lourinhã ou Frei Carlos.
Para obter uma perspectiva histórica mais lata, impõe-se uma visita ao Museu de Arte Sacra do Funchal, bem no coração do anfiteatro natural em que a cidade se encaixa. No acervo da instituição, encontram-se dezenas de pinturas flamengas, que atestam o esplendor artístico que a Madeira atingiu à época. Numa das salas, de luvas imaculadamente brancas, Martinho Mendes mostra a um grupo de visitantes, cuja tez clara denuncia a geografia de origem, alguns dos trípticos que em tempos ornamentaram muitas igrejas da ilha. As histórias que levaram à recuperação destas obras são rocambolescas. Uma foi salva por mero acaso, por um militar que, em viagem pelo interior, atolou o seu automóvel num dia de intenso temporal.
As histórias que levaram à recuperação destas obras são rocambolescas.
Em seu auxílio, veio um carpinteiro que trazia consigo placas de madeira para colocar sob as rodas do carro. Resultou. No entanto, a lama não disfarçou por completo o que nelas estava pintado. Eram painéis de um retábulo desmontado! Noutra ocasião insólita, um tríptico foi desmontado de uma igreja em ruínas com o fim de o aproveitar para uma capela. Acontecia que esta era mais pequena do que a original, e os painéis não cabiam ali. Infelizmente, cortaram-se os cantos e os pés das personagens, solução prática, mas bárbara aos olhos contemporâneos.
De volta à Sé, instala-se um silêncio repentino entre a equipa. São 11h30. Instantes depois, os altifalantes da igreja explicam a causa: é hora da missa! Entre conversas em surdina e risos abafados, uma das jovens conservadoras, com o característico sotaque madeirense, afirma, numa marca da convivência secular do profano com o sagrado: “Nunca assisti a tanta missa na vida!”
António Candeias, coordenador geral do projecto, analisa a evolução dos trabalhos. Apesar de as telas serem os elementos mais emblemáticos do retábulo, o projecto analisou igualmente madeiras e outros materiais.
Do alto do andaime, ao nível do baldaquino, a perspectiva para a igreja é impressionante. Ainda mais difícil do que subir até lá foi chegar ao coro alto, no extremo oposto do edifício. O motivo não foi sagrado, nem sequer atlético. A senhora das velas, zelosa guardiã da escadaria de madeira, não se comoveu com o tema do projecto e com o objectivo fotográfico da visita. Só com ordem expressa do pároco, e ainda assim sob um olhar inquisitório, foi possível aceder à posição privilegiada que o organista tem, pelo espelho convexo, da nave principal, com o retábulo coroando a majestosa Sé-Catedral.
Finda a homilia, a igreja esvazia-se lentamente, o silêncio volta a reinar e apenas alguns crentes se debruçam, em oração, iluminados pelas chamas bruxuleantes das velas. Poucos saberão que, diante de si, escondido sob a enorme tela plástica, ergue-se atrás do altar um tesouro digno de histórias de piratas, prestes a ser desvendado. Um tesouro que começou com o doce açúcar, moeda forte do século XVI, e com a vontade de celebrar na Madeira a prosperidade que ele trouxe (Texto e Fotografia António Luís Campos, NationalGeographic)

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