sábado, maio 04, 2013

A vida rebelde do santo que inspira o Papa no dia-a-dia



"Nasceu numa das famílias mais ricas de Assis, mas recusou todo o dinheiro e passou a viver como um mendigo. O pai chegou a acorrentá-lo em casa, ele não desistiu. Descubra o que é que o fundador dos Franciscanos tem em comum com Jorge Bergoglio. Naquele dia, Francisco cruzava a cavalo as planícies de Assis quando avistou um leproso e desviou o olhar. A doença sempre o repugnara e fazia tudo o que podia para evitar essa gente de pele ensanguentada e aspecto andrajoso que a sociedade desprezava. Por impulso, ainda terá puxado as rédeas do cavalo para se desviar dali, mas arrependeu-se e, ao contrário do que era seu costume, desceu do cavalo e aproximou-se do doente. Ignorou o cheiro pestilento, baixou-se e deu-lhe todas as moedas que trazia. Depois abraçou-o e beijou-o. O encontro mudou-lhe a vida para sempre.

A partir desse momento, Francisco renunciou à vida luxuosa que levava, abandonou os excessos das festas que frequentava e dedicou--se a Deus. Mas, em vez de entrar para um mosteiro e usufruir do conforto reservado ao clero que vinha de boas famílias, escolheu ser pobre e passar os dias ao serviço de mendigos e leprosos.

Ganhou fama de santo ainda antes de morrer e tornou-se uma das figuras mais populares da Igreja Católica. Mais de 800 anos depois, continua a inspirar fiéis em todo o mundo. Agora, pela primeira vez, um Papa escolheu o seu nome em sua honra. Francisco, o novo Pontífice, já mostrou que quer liderar Roma de acordo com o seu exemplo, construindo uma “Igreja pobre e para os pobres”, como disse no seu primeiro encontro com os jornalistas, no Vaticano. Também por isso escolheu lavar e beijar os pés a doentes com VIH quando era arcebispo de Buenos Aires e repetiu o gesto com jovens detidos numa casa de correcção. Duas eram mulheres, uma das quais muçulmana. Foi a primeira vez que um Papa lavou e beijou os pés de presos e de mulheres.

As origens de São Francisco de Assis dificilmente fariam prever o seu papel na história do catolicismo. O rapaz nasceu numa das famílias mais ricas da cidade. O pai, Pedro Bernardone, um bem-sucedido mercador, vendia tecidos luxuosos em Itália e França. Pica, a mãe, descendia de uma família nobre e, segundo alguns biógrafos, seria oriunda da Provença e teria com Francisco, um dos filhos mais novos, uma relação especial.

Como era costumena época, a criança foi baptizada durante a Vigília Pascal de Sábado Santo, 28 de Março de 1182. Consta que recebeu o nome de João e só mais tarde passou a chamar-se Francisco, devido às ligações comerciais do pai a França e aos “panos franciscos” que negociava.

A cerimónia decorreu na Sé de São Rufino e o bebé foi mergulhado três vezes em água benta, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. De acordo com a biografia São Francisco de Assis – O Homem por trás da Lenda, do historiador e padre dominicano Augustine Thompson, a primeira comunhão terá ocorrido nesse mesmo dia, antes de um desfile pela cidade e de um sumptuoso jantar servido pelos pais.

O rapaz recebeu noções básicas de latim e contabilidade na escola do Hospital de São Jorge e entre os 14 e os 15 anos o pai começou a ensinar-lhe o seu ofício. Terá aprendido a falar francês e provençal nas viagens fora de Itália e nunca deixou de cantar nessas línguas, nem depois de se dedicar à pregação. Extrovertido e bem-educado, o filho de Pedro Bernardone tinha jeito para o negócio.

Um dia, estava atarefado na loja quando viu entrar um mendigo que lhe pediu esmola. Francisco expulsou-o de forma rude e pouco comum para alguém que, como ele, tinha fama de generoso. Assim que o homem saiu, arrependeu-se e correu atrás dele para lhe dar algum dinheiro. Prometeu a si mesmo que nunca mais voltaria a tratar mal ninguém, por muito pobre que fosse. O princípio pode ser antigo, mas parece ter inspirado o cardeal Jorge Mario Bergoglio muitos séculos depois. Enquanto arcebispo de Buenos Aires, o actual Papa fazia questão de frequentar as villas de emergencia (bairros de lata), para se manter próximo dos fiéis.

A verdade é que o remorso que Francisco sentiu nesse dia não o afastou da vida de excêntrico. Para dar nas vistas, cosia à roupa de seda e aos mantos de boa lã remendos de tecidos velhos e desbotados, esbanjava dinheiro em banquetes, cantava e dançava como os jograis madrugada dentro. Era um rapaz popular, meio louco, daqueles a quem os outros perdoavam tudo.

Como era esperado dos jovens da sua condição social, em 1201 Francisco juntou-se ao exército de Assis e quatro cidades vizinhas para combater Perúgia. A guerra correu mal e o mais novo dos Bernardone acabou na prisão. O seu feitio extrovertido deu lugar a uma depressão profunda que se prolongou por alguns anos.

De volta a casa, Francisco não recuperou a energia. Os amigos ainda o arrastaram para festas, fizeram dele líder da sua societas iuvenum, uma fraternidade típica das cidades italianas na Idade Média, mas nem isso lhe devolveu o entusiasmo. Uma noite, depois da ceia, saiu com eles pelas ruas da cidade. Noutro tempo, teria cantado as mesmas músicas e participado nos mesmos jogos. Só que já não era capaz e limitava-se a seguir tudo de longe, com o ceptro de jogral na mão.

Passou a vaguear sozinho pelas ruas e campos de Assis, e tornou-se cada vez mais crente. Na rua, olhavam-no de lado. Poucos sabiam que comprava mobiliário às escondidas para mandar entregar de forma anónima em várias igrejas das redondezas. Foi por essa altura que encontrou o leproso que lhe mudou a vida. Francisco desistiu da carreira militar, vendeu o cavalo e os adornos e ignorou as ordens do pai para voltar ao trabalho.

Terá feito então uma peregrinação a Roma e ficado indignado com a insignificância das ofertas que os outros faziam na Basílica de São Pedro. De tal maneira que deitou todo o dinheiro que tinha para cima do túmulo do apóstolo. “O gesto foi evidentemente premeditado, pois os peregrinos nunca viajavam com muito dinheiro”, explica Franco Cardini, professor de História Medieval da Universidade de Florença, na biografia São Francisco de Assis. À saída, na escadaria, chamou à parte um mendigo, trocou de roupa com ele e pôs-se a pedir esmolas em francês.

Um dia, passou por uma igreja em ruínas, perto de Assis. Apesar de o edifício estar quase destruído, era a morada de D. Pedro, um velho padre a quem Francisco pediu para lá passar a noite. Percebeu de imediato que poderia fazer alguma coisa por aquele lugar. Foi à loja da família, tirou algumas peças de tecido escarlate e vendeu-as. Depois, juntou todo o dinheiro que tinha e ofereceu-o ao sacerdote para pagar as despesas de reconstrução da capela – um gesto muito comum para demonstrar piedade na Idade Média. O homem recusou: conhecia Francisco e imaginou que se tratasse de uma atitude irreflectida de um jovem rico e inconsequente. Além disso, teve receio de que Pedro Bernardone não soubesse da decisão do filho e viesse pedir-lhe contas.

Furioso, Francisco atirou o saco de moedas para junto de uma janela e passou a viver como um eremita nas imediações da igreja. Quando descobriu o desfalque, o pai reagiu mal e procurou-o, mas o rapaz escondeu-se a tempo na mata. Nesse período, Francisco começou a autoflagelar-se para se redimir dos pecados e a ter um comportamento cada vez mais embaraçoso para a família.

Deambulava sujo e maltrapilho pela cidade, com feridas espalhadas pelo corpo, e gritava orações cada vez que passava por alguém. A vergonha era tanta que o pai o mandou acorrentar em casa. A mãe, com pena dele, aproveitou uma saída do marido para o soltar e Francisco mudou-se para São Damião de vez e passou a sobreviver exclusivamente de esmolas.

Segundo Tomás de Celano, o primeiro biógrafo do santo, daí em diante Francisco dedicou-se à reconstrução de igrejas e a arranjar dinheiro para comprar azeite e manter acesas as candeias colocadas junto ao altar. Chorava de cada vez que se lembrava do sofrimento da morte de Cristo.

O pai, com medo que o filho pusesse a fortuna da família em risco, pediu ao bispo de Assis, Guido, que apelasse ao bom senso de Francisco. Pedro, Pica e Ângelo, o irmão, reuniram-se com Francisco na presença do prelado. O jovem, incrédulo, rasgou toda a roupa e ficou apenas com uma camisa de cilício no corpo. Era o corte definitivo com a vida e a riqueza dos pais. Pedro nunca recuperou do desgosto: cada vez que via o filho pregar na cidade, gritava-lhe impropérios para o humilhar em público.

Jorge Mario Bergoglio também revelou desde cedo o desprendimento em relação a bens materiais, característica que mantém até hoje: em Buenos Aires, dispensou o carro oficial destinado ao arcebispo e andava de transportes públicos; no Vaticano, não usa a limusina papal, mas uma viatura mais discreta. Traz sempre uma cruz e um anel de prata em vez dos acessórios de ouro que os cardeais e Papas costumam usar.

No início do século XII o pai de Francisco não foi o único a ver com desdém o comportamento do filho. Nos primeiros anos, a maioria mantinha-se longe do pobre de Assis. Mas a verdade é que, aos poucos, as suas palavras começaram a cativar quem as ouvia e o filho de Pedro Bernardone foi procurado pelos seus dois primeiros seguidores. Bernardo de Quintavalle desfez-se de tudo o que tinha e escolheu viver como pobre; Pedro, de origem modesta, só teve de se juntar a eles. “A sua chegada foi de tal forma inesperada que Francisco ficou sem saber o que fazer”, conta o padre Augustine Thompson.

 Com o bispo ausente, procuraram ajuda na paróquia de San Nicolò di Piazza, perto da casa dos pais, e pediram ao padre que lhes fizesse as sortes biblicae, uma prática que consistia em abrir a Bíblia ao acaso em busca de conselhos divinos para resolver um problema. O sacerdote abriu o livro sagrado três vezes e leu os Evangelhos: “Vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me” (Mc 10: 17-21); “Nada leveis para o caminho: nem cajado, nem alforge, nem pão, nem dinheiro; nem tenhais duas túnicas” (Lc 9: 1-6); e “Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16: 24-28). Decoraram as passagens e voltaram a São Damião, dispostos a cumprir as instruções.

Numa época em que a Igreja combatia os heréticos de forma feroz, Francisco não quis que o seu grupo fosse visto como uma facção dissidente e procurou obter junto do próprio Papa autorização para pregar. Partiu para Roma disposto a encontrar-se com Inocêncio III, mesmo sabendo que o Pontífice nem fazia ideia da sua existência. E a verdade é que convenceu o bispo de Assis a conseguir-lhe uma audiência com João de São Paulo de Colonna, bispo cardeal de Sabina, um homem próximo do líder da Igreja, com conhecimentos sobre movimentos religiosos populares.

Inocêncio III, que ficou célebre por ter chamado ao Papa o poder sobre todos os soberanos cristãos, tinha pouco tempo disponível. Dividia-se entre os jogos diplomáticos e a definição da estratégia das Cruzadas contra os mouros em Espanha e na Terra Santa. Mas o facto de ter autorizado facilmente os movimentos mendicantes como o de Francisco de Assis e Domingos de Gusmão (que dariam origem às ordens franciscana e dominicana) foi entendido por muitos como um sinal de que o Papa queria uma Igreja mais próxima do essencial.

A riqueza e a corrupção do clero, muito associadas à venda de indulgências (perdão dos p

ecados) desagradavam a Inocêncio III. O Papa também lidava mal com a imoralidade sexual dos padres, bispos e cardeais. No fundo, as preocupações eram semelhantes às que levariam Bento XVI a renunciar ao pontificado no início do século XXI: sexo, dinheiro e poder. E os problemas parecidos aos que o seu sucessor, Francisco, tem para resolver" (texto da jornalista da Sábado, Rita Garcia, com a devida vénia)