segunda-feira, novembro 12, 2012

Vítor Gaspar, o ex-mister wonderful...

“Passos adora-o, Portas detesta-o, o povo também. O ministro que vive e respira há mais de 20 anos em gabinetes de economistas tornou-se o todo-poderoso do Governo e não gosta de ser contrariado – nem sequer pela realidade. Vítor Gaspar decidiu mostrar uma apresentação divertida aos colegas do gabinete de conselheiros da Comissão Europeia (CE), a que ele próprio presidia. Num intervalo de almoço, convidou-os a irem ao seu gabinete. Os colegas levaram umas sanduíches e foram. Tratou-se de uma hora de almoço peculiar: a apresentação de Gaspar consistia numa tradução matemática da filosofia kantiana. É mesmo preciso explicar melhor: Gaspar é admirador de Immanuel Kant e achou que seria um exercício muito engraçado aplicar às teorias kantianas equações usadas em econometria. Um dos então espectadores reconhece à SÁBADO que houve algum constrangimento no ambiente – haveria formas mais divertidas de passar a hora de almoço. Vítor Gaspar mostrou sempre, por onde passou, um sentido de humor muito particular. Tinha por hábito começar as reuniões com dois minutos de atraso artificial: estava a postos a horas, mas deixava o início do trabalho deslizar de propósito. Depois dizia: “Bem, infelizmente já estamos atrasados dois minutos...” Estava a brincar. Também ficou conhecido por citar constantemente o método do Banco Central Europeu (BCE), de onde vinha. Dizia “no BCE era assim”, no “BCE o que se fazia era”, ao ponto de entre os funcionários se ter começado a perguntar, na brincadeira, sempre que havia um assunto a resolver: “E como é que isso se faria no BCE?”É disso que ainda o acusam hoje em Portugal: é um homem de gabinete cujas referências de acção são outros gabinetes. O suposto alheamento do mundo real e a inflexibilidade tornaram-no um ministro impopular, figura de cartaz em manifestações e, no mínimo, muito controverso no Governo. Em Fevereiro de 1991, Paulo Portas dirigia 'O Independente' e estava em plena guerra com o cavaquismo. Na mesma edição em que escrevia um editorial contra Leonor Beleza, fazia uma chamada de capa com “Um génio nas Finanças”. O dito génio, à data pouco conhecido, tinha direito a duas páginas com o título “Mr. Wonderful”. No encontro que teve com ele, a jornalista Laurinda Alves chamou-lhe “braço-direito” do ministro das Finanças Miguel Beleza, o que ele negou fazendo uma graça: “O ministro Miguel Beleza é um homem muito apto fisicamente e se tem um braço direito é o dele, não precisa de próteses.” Falou sempre, relata a jornalista, muito devagar. E só lhe brilharam os olhos uma vez, quando falou da filha Catarina, a mais velha, que tinha na altura 4 anos. Questionado sobre se admitia chegar a secretário de Estado, respondeu: “Um cargo no Governo não faz parte das minhas ambições.” Está agora no Governo com o então director do jornal. E Paulo Portas já não o acha wonderful (magnífico). Há um secretário de Estado do CDS nas Finanças, Paulo Núncio, demissionário, noticiou o 'Expresso' no dia 20 de Outubro; há elementos do partido que se divertem a enviar por email a foto do ministro com uma expressão à Hannibal Lecter, de 'O Silêncio dos Inocente's, e a legenda “Cannibal”; na última comissão política do CDS, foi usada a expressão de que Portas “bateu no muro” de Gaspar O conselho de ministros de 15 de Outubro também não correu bem, pelo menos do ponto de vista da popularidade interna de Gaspar. Vários dos presentes, pelo menos três (Miguel Macedo, Paulo Macedo e Paula Teixeira da Cruz), traziam propostas concretas para corte de despesa. Na reunião anterior, de dia 10, no célebre conselho de 20 horas, houve decisões fechadas: a sobretaxa sobre o IRS ficaria nos 3,5% (foi esse o número acordado com a troika), o efeito da subida do IRS sobre os dois novos primeiros escalões teria de ser minorado, e os ministros trariam cortes adicionais para tornar possíveis estas alterações. Mas cinco dias depois, no início da reunião, Vítor Gaspar afirmou que afinal já não havia margem para alterações de última hora. “Foi totalmente inflexível”, apontam dois dos presentes. Passos Coelho apoiou-o. Vítor Gaspar já se habituou a arriscar e, quase sempre, a ganhar, em conselho de ministros. Nas reuniões de preparação do orçamento para 2012, com o Governo recém-formado, Gaspar fez uma intervenção sobre a necessidade de cortes nas dotações para o sector empresarial do Estado. Álvaro Santos Pereira, o ministro que mais empresas públicas tutela, interveio a seguir destacando que os cortes não poderiam ser cegos sob pena de prejudicarem a economia.  Gaspar respondeu-lhe assim: “Não há dinheiro. Qual destas três palavras é que o senhor ministro não percebeu?” Uma frase destas sobra para iniciar uma discussão violenta. Mas Gaspar disse-a no seu habitual tom pausado, sem aparente má-vontade. Houve sorrisos, como se pudesse estar apenas a brincar, e o episódio acabou por, aparentemente, não gerar tensão.
Gaspar ganhou depois várias guerras à Economia: passou a fazer o acompanhamento dos fundos do QREN e fez uma vítima directa no sector da energia, o secretário de Estado da área, Henrique Gomes, que deixou o Governo em Março deste ano. Quem já se reuniu profissionalmente com ele conta que é correcto, simpático, tem o cuidado de ouvir todos os presentes, mas atalha o que não lhe interessa: corta a palavra com eficiência. E há uma coisa de que não gosta: “Que o contrariem. Ignora, atalha e passa à frente, a falar de outra coisa, como se nem tivesse ouvido”, conta um seu conhecido. Henrique Gomes percebeu isso directamente. Na primeira reunião com o ministro, no Verão de 2011, para debater uma contribuição que elaborara sobre as rendas excessivas na área da energia, foi apresentando argumentos técnicos, ao longo de cerca de duas horas. O ministro não contestava, mas não parecia nada convencido, pelo que resolveu juntar um argumento político: aquela era “a única boa notícia que o Governo teria para aliviar as famílias e ajudar a economia durante muito tempo”.  Gaspar não se comoveu com as famílias nem com a economia, e contrariou-o desta forma: “Então, se o argumento é político, o sucesso da privatização da EDP está em primeiro lugar.” E a reunião “acabou ali”, resume o ex-secretário de Estado.
Na origem do ascendente de Gaspar, além da situação de emergência financeira, está a confiança total de Pedro Passos Coelho. Vários sociais-democratas referem que é habitual Passos reforçar os seus argumentos com “o Vítor acha”, “o Vítor diz que” ou “o Vítor não pensa assim”. Um próximo de Passos define desta forma a relação entre os dois: “É de enorme cumplicidade e intimidade. Passos tem uma enorme admiração intelectual por ele.”
Os dois falam praticamente todos os dias e Vítor Gaspar reúne-se e almoça com alguma frequência em São Bento. Nas reuniões em que os dois estão presentes, contam vários governantes, é o primeiro-ministro quem lidera. Gaspar coloca-se num lugar secundário – ainda que depois venha a conduzir os processos no terreno.
A confiança de Passos Coelho advém também da credibilidade externa do ministro. João Marques de Almeida, que trabalhou com ele na Comissão Europeia, explica que a evolução da situação portuguesa em nada mudou a imagem externa de Gaspar: “A conclusão que se tira não é a de que ele está errado, poderá ser, quando muito, que o País não aguenta mais austeridade.” E é assim que o ministro vê o seu papel: “Esse é um problema político e é politicamente que tem de ser resolvido, não lhe compete a ele. E é europeu. O ministro sabe que não pode andar a especular com cenários, porque uma mudança de cenário é algo que o ultrapassa. Ele tem um mandato e está determinado a cumpri-lo.”
Mas não é um fã incondicional do programa da troika. Vasco Cal, outro economista seu amigo, já o ouviu dizer: “Se fosse eu a desenhá-lo, fazia-o de maneira diferente.” Não lhe disse como.
António Borges, que Vítor Gaspar convidou para gerir o processo de privatizações, foi seu professor na Católica, onde ele se licenciou em Economia em 1982. Foi “um aluno brilhantíssimo”, conta. E também “sisudo e nada galhofeiro”, acrescenta um ex-colega. Seguiu para o doutoramento, na Universidade Nova, e daí para os gabinetes do governo, com Braga de Macedo, Miguel Cadilhe e depois Miguel Beleza. “É errado dizer-se que não tem experiência política, ele foi o homem de mão de vários ministros”, aponta o economista João César das Neves, que foi nesse período assessor económico do primeiro-ministro Cavaco Silva. Gaspar mantém boas relações com Braga de Macedo, Beleza e Cadilhe, mas com Manuela Ferreira Leite (que o tem atacado) já então teve divergências. Gaspar criticou internamente no ministério, mas de forma aberta, o novo sistema retributivo da então secretária de Estado do Orçamento. No gabinete de Estudos, já era o representante do ministério nas reuniões com o FMI, a CEE e a OCDE. Quando transitou para o Banco de Portugal, manteve as relações externas, com o Comité Económico da CEE. E destacava-se. De tal forma que, quando o Banco Central Europeu (BCE) foi criado, em 1998, foi escolhido para presidente do gabinete de investigação.
Em 1991, quando pouca gente em Portugal saberia quem era Vítor Gaspar, já o jornal francês 'Libération' o descrevia como “o jovem génio da economia portuguesa”. Otmar Issing, economista alemão ex-presidente do Deutsche Bundesbank e ex-administador do BCE, elogia-o: “Tivemos uma colaboração estimulante e eficiente. É um economista notável. E uma pessoa de total integridade e de empatia com quem trabalha com ele.”
Economistas que conhecem o BCE dizem que Gaspar teve ambições a tornar-se membro do Executive Board, em 2005. Seria uma promoção importante. Mas teve concorrência (o italiano Lorenzo Bini Smaghi) e perdeu. Foi Smaghi a tornar-se administrador, em 2005, e nesse mesmo ano Gaspar preferiu deixar o BCE e ir para Bruxelas. Smaghi, questionado pela SÁBADO sobre a disputa, tem muito pouco a dizer sobre Gaspar: “Coincidimos no BCE por três meses em 1998. É uma experiência demasiado pequena e decorreu há muitos anos para eu estar a comentar.”
Quando Vítor Gaspar chegou a Bruxelas, ao gabinete de conselheiros que assessora a CE, o Bureau of European Policy Advisers (BEPA), uma das primeiras pessoas que quis ir cumprimentar foi Maria da Graça Carvalho, que liderava a área de aconselhamento científico. Havia uma razão: “Você tem mais publicações científicas do que eu.” E isso reflectia duas coisas: respeito pelo mérito académico e estar a par do top ten de portugueses que mais publicavam – em que ele próprio também se integrava. Aliás, Gaspar desabafou a um amigo, na altura em que passou a ser colega de Álvaro Santos Pereira no Governo: “Nem o conheço” – o ministro da Economia não estava no top ten.
Houve alguma estranheza inicial no BEPA: Gaspar era exigente e obrigou muitos funcionários a trabalharem mais. Mas não criou anticorpos, acabou por fazer amigos e até ganhar admiradores. Praticamente morava no Berlaymont, o edifício-sede da comissão, onde chegava por vezes de madrugada, às 5h ou 6h, e em cuja cantina almoçava. Só não dispensava o ténis, uma vez por semana. Considerava que tudo o que o gabinete fazia tinha de ser de altíssimo nível académico. E era, mas, concede Vasco Cal, as conclusões académicas podiam entrar (e entravam) em choque com os aspectos mais políticos da realidade europeia. Gaspar era um director dinâmico: convidou vários economistas de nível mundial para palestras e debates com funcionários da CE. Era também maníaco de citações, citava autores a torto e a direito, e exigia a quem citava fosse o que fosse que identificasse o respectivo autor – e usar a Internet como fonte não valia, não era fiável. Era, e é, fã do Excel e das apresentações em Power Point. Vítor Gaspar vive com a mulher, Sílvia Luz, e as três filhas, Catarina, de 26 anos, Marta, de 21, e Madalena, de 14. E é em casa, no apartamento das Olaias onde mora há mais de 20 anos, que começa a trabalhar muitas vezes de madrugada. Quando foi feita a reprogramação do QREN em Bruxelas, a proposta final só ficou pronta às 3h da manhã, conta Vasco Cal, para ser enviada ao ministro. A resposta de Gaspar foi dada, por email, às 5h30
Chega ao ministério às 7h20 e marca a primeira reunião do dia para as 8h. E não sai: almoça no gabinete e fica no Terreiro do Paço até às 20h30. Regressa a casa e é lá que janta, com a família – é apontado como um pai e marido devotado. É habitual ouvi-lo elogiar a mulher, pela inteligência e capacidade intelectual. Quando Passos Coelho o convidou para ministro das Finanças, Gaspar consultou a família. A reacção foi unânime: tinha o dever de aceitar. Mesmo na vida familiar e social está rodeado de economia. A mulher, colega de curso, trabalha no Banco de Portugal. No sábado, dia 20 de Outubro, Vasco Cal (outro economista) estava em Portugal, visitou-o em casa e depois o ministro foi levá-lo ao aeroporto. Um dos seus melhores amigos é Luís Morais Sarmento, que também é seu secretário de Estado nas Finanças. Aos fins-de-semana, joga ténis, no campo das Olaias, com um tio, as filhas, ou amigos – também ligados à economia. E como reage Vítor Gaspar, o homem com uma missão, quando a missão não corre bem? Quando, em Julho, os dados da execução orçamental mostravam o desvio em relação ao previsto e o Tribunal Constitucional chumbou os cortes de subsídios aos funcionários públicos, disse a mais do que um interlocutor: “Estava tudo a correr tão bem, pena é a realidade.” Um deles confessa não saber ainda hoje se ele estava a tentar fazer uma graça ou se falava a sério(texto da jornalista da Sábado, Maria Henrique Espada com Vítor Matos, com a devida vénia)