segunda-feira, outubro 30, 2023

Berardo usou associação para comprar 214 obras adquiridas a meias com o Estado

Accionando a opção de compra garantida pelo acordo de 2006, o empresário recorreu à Associação de Colecções, sediada no Funchal, para ficar com as obras adquiridas nos primeiros anos do Museu Berardo. O Ministério da Cultura confirmou esta quarta-feira ao PÚBLICO que a Associação de Colecções, uma sociedade funchalense que integra reconhecidamente o universo de entidades controladas por José Berardo, adquiriu todas as 214 obras de arte que tinham sido compradas para o Museu Colecção Berardo, a partir de 2007, com verbas de um fundo de aquisição co-financiado pelo empresário e pelo Estado português.

Os estatutos da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Colecção Berardo (FAMC-CB), anexos ao decreto-lei que criou a fundação, em Agosto de 2006, previam que o coleccionador, ou “quem ele venha a indicar”, poderia comprar estas obras pelo preço que custaram à época, pagando apenas a parte que fora desembolsada pelo Estado.

Como ambas as partes deixaram de alimentar este fundo de aquisição – para o qual o empresário e o Estado contribuíam, cada um, com 500 mil euros anuais –, todas as obras agora adquiridas pela Associação de Colecções chegaram ao Museu Colecção Berardo nos seus primeiros anos de funcionamento. É um conjunto maioritariamente constituído por obras de artistas portugueses – Pedro Cabrita Reis, Rui Chafes ou Jorge Molder são alguns exemplos –, mas que também inclui algumas criações de artistas estrangeiros, como Daniel Buren ou o neerlandês-americano Willem de Kooning, um dos nomes cimeiros do expressionismo abstracto.

A Associação de Colecções tem surgido associada a outras iniciativas relacionadas com José Berardo. Por exemplo, o B-MAD, Berardo – Museu Arte Deco, inaugurado em Lisboa em 2021, apresenta-se, nos seus próprios materiais de comunicação, como “uma iniciativa privada da Associação de Colecções”.

Se a compra destas obras pode ser vista como uma mera oportunidade de negócio, também não é de excluir que a decisão de as adquirir possa indicar, da parte de José Berardo, uma vontade de não desistir da colecção que reuniu, e que se tornou agora o centro do novo MAC/CCB, onde dialogará com peças das colecções Ellipse e Teixeira de Freitas, e também com a Colecção de Arte Contemporânea do Estado.

Propensão para a litigância

A inauguração do MAC/CCB, marcada para esta sexta-feira, é de algum modo o corolário da estratégia adoptada pelo actual ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, para garantir a fruição pública da Colecção Berardo sem que o Estado compre as obras, e devolvendo ao mesmo tempo ao CCB a gestão do seu centro de exposições. Um objectivo que se tornou claro logo no início do seu mandato, quando optou por denunciar o célebre protocolo de 2006, que estivera na origem da instalação no CCB do agora extinto Museu Berardo, e que no final de 2016 o então titular da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, receando que o empresário pudesse levar a colecção para o estrangeiro, ainda renovara por mais seis anos.

Uma decisão que aliás permitiu, ainda no final do mandato de Castro Mendes, no Verão de 2018, evitar a saída do país de 16 das obras comercialmente mais valiosas da colecção, que Berardo dizia querer avaliar em Londres, com vista a uma “eventual venda”.

A relação do Estado português com o coleccionador era já então tensa, mas foi só a partir do segundo trimestre de 2019 que assumiu uma hostilidade mais ou menos declarada. As notícias das dívidas do empresário, a acção interposta por três bancos – Caixa Geral de Depósitos (CGD), BCP e Novo Banco – para recuperar mais de 900 milhões de euros de alegados créditos, e sobretudo a risonha desfaçatez evidenciada por Berardo na sua passagem, em Maio desse ano, pela Comissão Parlamentar de Inquérito à CGD, à qual garantiu que não tinha quaisquer dívidas em seu nome, tornaram o comendador condecorado por Ramalho Eanes e Jorge Sampaio definitivamente uma persona non grata.

A então ministra Graça Fonseca considerou as suas declarações “insultuosas e inadmissíveis”, e assegurou que iria usar as medidas legais ao seu dispor para garantir que a colecção não seria vendida ou desintegrada.

E em Julho de 2019, no âmbito do processo interposto pela banca, as obras da Colecção Berardo foram arrestadas por ordem do tribunal, que nomeou como fiel depositário o presidente do CCB, Elísio Summavielle.

Quando Pedro Adão e Silva assumiu a tutela da Cultura, em Março de 2022, o período de renovação do protocolo negociado com Castro Mendes estava prestes a expirar, e o novo ministro decidiu avançar para a denúncia do acordo, que anunciou publicamente a 22 de Maio, no próprio CCB, adiantando logo nessa ocasião que o Estado iria comprar a Colecção Ellipse para um futuro museu de arte contemporânea no CCB, então ainda por baptizar.

É o início de um intenso conflito jurídico – Adão e Silva acusará mesmo Berardo de ter uma “propensão indomável para a litigância” –, no decurso do qual o Estado, naquilo que envolve a Colecção Berardo, vem ganhando sucessivas batalhas.

Ainda em Junho do ano passado, o tribunal rejeitou um processo cautelar de Berardo para tentar travar a denúncia do protocolo. E, a 30 de Dezembro, o empresário recorreu a uma nova providência cautelar para pedir a “suspensão de eficácia” do decreto-lei que foi publicado nesse dia a extinguir a FAMC-CB, mas viu a sua pretensão liminarmente rejeitada pelo Supremo Tribunal Administrativo com base numa questão técnica: quando o pedido dera entrada no tribunal, o decreto-lei contestado já fora aprovado no Conselho de Ministros, mas ainda não fora publicado no Diário da República.

Berardo voltou à carga e o Governo, para evitar essa consequência suspensiva, contra-atacou usando a figura da “resolução fundamentada”, aprovada em Conselho de Ministros a 5 de Janeiro, conseguindo que o tribunal aceitasse o argumento de que a suspensão lesaria o interesse público, comprometendo a livre fruição da Colecção Berardo.

Em Março, o Supremo Tribunal Administrativo indeferiu uma última pretensão, apresentada por Berardo e pela Associação Colecção Berardo, para suspender a eficácia do decreto-lei que extinguiu a FAMC-CB, para a qual já foi nomeada em Abril uma comissão liquidatária. Nesse mesmo mês, Berardo apresentou recurso da decisão do tribunal. Tanto este recurso como a acção principal contestando o decreto-lei aguardam ainda decisão da justiça.

Mas mesmo admitindo que o Estado ganhe também essas batalhas, e tendo o tribunal já decidido manter o presidente do CCB (cargo no qual Francisca Carneiro Fernandes irá agora render Elísio Summavielle) como fiel depositário das obras arrestadas, deverá demorar ainda bastante tempo até a acção movida pelos bancos chegar ao seu desenlace, que é difícil de prever. E até lá, o novo MAC/CCB, tal como agora se apresenta, arrisca-se a ser um museu a prazo (Público, texto do jornalista Luís Miguel Queirós)

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