terça-feira, março 05, 2024

Oito milhões de votos foram “desperdiçados” em todas as legislativas: mudar lei eleitoral tornaria “democracia mais sã”

As listas independentes incentivam a participação eleitoral. Outras variáveis, como taxas de desemprego altas e locais com pouca população, também  Foto Marcos Borga. As listas independentes incentivam a participação eleitoral. Outras variáveis, como taxas de desemprego altas e locais com pouca população, também. As legislativas “são as únicas eleições em que não há métodos de representatividade”. Ano após ano, milhares de votos não são convertidos em mandatos — e os partidos e os círculos eleitorais de menores dimensões são historicamente os mais prejudicados. “Muita gente já me disse: ‘Aqui na minha zona nem vale a pena votar nesse partido porque já sei que vai cair em saco roto’”, conta o politólogo Luís Humberto Teixeira. Há soluções para resolver o problema, mas falta vontade política

8.330.434 é o número de votos que foram ‘desperdiçados’ em todas as eleições legislativas desde 1975. Por outras palavras, cerca de 9,5% dos mais de 87 milhões de votos válidos até hoje não foram convertidos em mandatos, avança o politólogo Luís Humberto Teixeira, responsável pelo portal “O meu voto” e pela petição “Por uma maior conversão de votos em mandatos”. O problema não é de agora e as soluções já estão identificadas — mas há “indiferença” e “comodismo” em mudar a lei eleitoral, considera.

Luís Humberto Teixeira estuda este tema há mais de 20 anos e, nas últimas legislativas, a petição e o portal “fizeram com que a consciência das pessoas aumentasse”. “Recebi muitas mensagens de eleitores a dizer que não tinham conhecimento disto, apesar de votarem há décadas”, conta ao Expresso. “Muita gente já me disse: ‘Aqui na minha zona nem vale a pena votar nesse partido porque já sei que vai cair em saco roto’”, acrescenta.

A petição “Por uma maior conversão de votos em mandatos” foi subscrita por 8665 pessoas e, por ter superado os mínimos legais para tal, foi debatida em sessão plenária na Assembleia da República, por iniciativa do PS, no dia 3 de março de 2023. Mas “curiosamente o tempo dedicado ao tema foi inferior a 10 segundos, limitando-se a palavras de circunstância do deputado Pedro Delgado Alves”, conta o politólogo.

As palavras foram estas: “Queria saudar os peticionários que nos trazem aqui a matéria da melhoria da proporcionalidade. Não tem necessariamente de passar por uma revisão do sistema, pode passar por pequenas melhorias”. Luís Humberto Teixeira e os outros peticionários assistiram ao debate a partir das galerias da Assembleia da República sem se poderem manifestar, como é habitual nestas situações.

Qual o problema? As legislativas “são as únicas em que não há um círculo único — como existe na Madeira e nas eleições presidenciais, autárquicas e europeias — nem um círculo de compensação como acontece nos Açores”. Como resume o politólogo, “são as únicas eleições em que não existem estes métodos de representatividade e seria muito melhor para termos uma democracia mais sã”.

Às vezes os eleitores de círculos mais pequenos, como o de Portalegre e os da Emigração, deixam de votar verdadeiramente no partido que querem, especialmente se este for de pequena ou média dimensão. Em vez disso, fazem votos estratégicos, condicionados por históricos de eleições anteriores e por sondagens, e “não estão a ser sinceros na sua intenção”. “É isso que é lamentável no sistema que temos”, aponta o investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

“INDIFERENÇA” E “COMODISMO”

Em 2006 houve uma alteração nos Açores e na Madeira a partir de um acordo entre o PS e PSD (que também dominavam nas assembleias regionais). Assim, nos Açores, além dos nove círculos de cada uma das ilhas e designados pelo respetivo nome, passou a haver um círculo de compensação coincidente com a totalidade do arquipélago. Já na Madeira, uma vez que apenas duas ilhas são habitadas, passou a ser usada a solução de um círculo eleitoral único que coincide com o território da região autónoma.

“Confesso que quando em 2006 houve essa alteração, pensei que fosse possível mudar alguma coisa eventualmente. Ou seja, repetir aquilo que se fez nas regiões autónomas mas agora para o país”, retoma Luís Humberto Teixeira, que considera que falta vontade política a quem tem mais influência para tomar este tipo de decisões.

O que pode explicar esta ausência de vontade política? “Indiferença” e “comodismo”, responde o politólogo. “Indiferença de certeza que em parte é, porque é uma situação que se arrasta já há muitos anos”. Depois há um certo “receio em mudar o que está quieto e não saber ao certo o que vai acontecer a seguir”.

A par das duas soluções implementadas nas ilhas, há uma terceira que pode ser posta em prática: reduzir substancialmente o número de círculos eleitorais de 22 para nove, para haver mais pluralismo. É esta alteração do mapa eleitoral do país que pode causar mais confusão aos decisores, aponta Humberto Teixeira. “As federações distritais dos partidos podem perder poder porque são aglutinadas, são alteradas as fronteiras e, de repente, os partidos têm de se organizar de outra forma”.

TOTAL DE VOTOS NÃO CONVERTIDOS POR PARTIDO

Resumindo, “há aqui uma questão relacionada com receios humanos de mudança que fazem com que não haja ação para tornar o sistema mais justo”, aponta o investigador. E não ajuda os partidos grandes — PS e PSD — serem historicamente os mais beneficiados pelo sistema eleitoral desde 1975. Por exemplo, nas últimas legislativas que deram maioria absoluta ao governo de António Costa, nem um único voto do Partido Socialista foi ‘para o lixo’ (Expresso, texto das jornalistas Mara Tribuna e Sofia Miguel Rosa)

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