quinta-feira, outubro 26, 2023

María Corina Machado: a “Dama de Ferro” da oposição venezuelana tornou-se esperança num país subjugado pela ditadura

O desmoralizado campo dos que combatem Nicolás Maduro viu-se animado por uma veterana dessa luta. Conservadora que recentemente rumou ao centro, corajosa e acossada, María Corina Machado venceu as eleições primárias para defrontar o herdeiro de Hugo Chávez em 2024. Foi como que um pressagio. María Corina Machado, de 56 anos, conservou durante muito tempo na parede do seu gabinte, em Caracas, um desenho infantil que revela algo sobre a candidata unitária da oposição venezuelana. “O sol brilhará amanhã/amanhã, amanhã/amo-te”, escreveu um dos seus filhos no papelito, ao lado da ilustração.

A resposta, pelo seu punho e letra — “Não te preocupes, meu amor. É agora” — diz muito do momento que vive a mulher mais influente da história política do país sul-americano. Este domingo protagonizou uma vitória inédita, ao obter 93% dos votos nas eleições primárias da oposição. Já fora a deputada mais votada nas legislativas de 2010, ainda Hugo Chávez impunha a sua lei.

“Não é o final, é o começo do final”, vaticinou Machado, perto da meia-noite, na primeira reação aos resultados. Sorridente, com o seu típico gesto de levar as mãos ao peito, a líder do movimento Vem, Venezuela propôs a formação de uma grande aliança nacional para “derrotar a tirania” e levantar um país “com pilares republicanos e liberais”. Foi uma primeira piscadela de olho aos seus velhos rivais, com quem nunca se deu bem: é que o “furacão” Machado varreu os partidos opositores tradicionais. “É claro que as pessoas votaram contra a nossa forma de fazer política”, reconhecia Henry Ramos Allup, dirigente da Ação Democrática (AD).

É o momento procurado por Machado, uma outsider nas fileiras do antichavismo durante duas décadas de luta contra a revolução, com altos e baixos e as nuvens negras que o regime bolivariano criou ao inventar uma inabilitação ilegal e inconstitucional de 15 anos, que tecnicamente impede a candidata de participar nas presidenciais de 2024 contra Nicolás Maduro.

FORMADA EM YALE E FILHA DE EMPRESÁRIO

A Procuradoria-geral alegou supostos atos contra a ética pública, a moral administrativa e a soberania, além de cumplicidade com a “rede de corrupção orquestrada pelo usurpador Juan Guaidó”. “Lixo”, retorquiu Machado, ciente de que as sondagens lhe atribuem até 40 pontos percentuais de vantagem sobre Maduro, num país onde 85% da população deseja, acima de tudo, uma mudança de regime.

A atitude radical da candidata contra a revolução transformou a sua imagem no imaginário dos compatriotas, fartos da deriva e dos fracassos das forças políticas de sempre. María Corina já não é política, desde domingo tornou-se esperança num país subjugado pela ditadura. Uma das chaves do seu êxito é ter sabido forjar um vínculo emocional que recorda, ironicamente, nos bairros mais populares, a relação criada por Chávez quando venceu eleições pela primeira vez, em 1998. Machado fê-lo sem televisão, rádio ou publicidade, pois vive censurada. Limitou-se a percorrer a Venezuela, povoação por povoação.

Formada na Universidade de Yale e rica toda a vida, é filha de um importante empresário do ferro e do alumínio, que morreu este ano. Isso contribui para que lhe chamem “Dama de Ferro”, título reforçado pela parecença ideológica com a antiga primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. A família Machado Zuloaga fundou, no final do século XIX, a Electricidad de Caracas, empresa encarregada de fornecer energia à capital, mais tarde nacionalizada por Chávez.

Seja qual for o destino da sua inabilitação, Machado sabe que o seu momento chegou, após 20 anos de luta. Estudou para engenheira industrial, mas decidiu apostar na política. O verbo rápido e incendiário cedo a deu a conhecer à opinião pública, de início na organização eleitoral Soma-te.

VESTIDA DE BRANCO E UMA CRUZ SOBRE O PEITO

Data de então um dos momentos mais polémicos da sua trajetória. Assinou o Decreto Carmona, que suprimia garantias constitucionais durante o golpe contra Chávez em abril de 2002. Isso foi-lhe recordado de forma constante na disputa interna da oposição. Machado endureceu o tom, unindo-se a Leopoldo López nos protestos de 2014 e encabeçando o sector opositor mais próximo de Donald Trump, favorável até a uma intervenção militar para depor o chavista Maduro.

Este ano rumou, porém, ao centro político. “É uma candidata de ideias liberais, partidária da propriedade privada e do Estado de Direito, pondo o indivíduo como centro da política, num país de tradições estatizantes e coletivistas. Abriu-se a dossiês sociais e aos direitos das novas identidades”, resume o historiador Armando Chaguaceda.

Sempre vestida de branco, com o lema “Até ao final” escrito nas costas e uma cruz sobre o peito, carregada de “espiritualidade”, Machado devolveu à oposição o fervor popular que perdera. É inteligente, anticomunista e nacionalista, e ultrapassou muitos dirigentes da oposição no que toca a questões de género e direitos da comunidade LGTB+. Também foi vítima de machismo, flagelo muito enraizado nas sociedades latino-americanas.

Sobra-lhe valentia, com que tem enfrentado a revolução bolivariana desde o começo. Agredida várias vezes, é das pessoas mais insultadas nos canais públicos venezuelanos. Já lhe piratearam fotografias de computadores pessoais, exibidas na televisão chavista. Noutra ocasião, gravaram e manipularam uma conversa com a sua mãe, para a atacarem no pequeno ecrã. Nada disso a fez dar um passo atrás. Hoje recolhe os frutos políticos da sua tenacidade (Expresso, texto do jornalista Daniel Lozano)

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