Accionando a opção
de compra garantida pelo acordo de 2006, o empresário recorreu à Associação de
Colecções, sediada no Funchal, para ficar com as obras adquiridas nos primeiros
anos do Museu Berardo. O Ministério da Cultura confirmou esta quarta-feira ao
PÚBLICO que a Associação de Colecções, uma sociedade funchalense que integra
reconhecidamente o universo de entidades controladas por José Berardo, adquiriu
todas as 214 obras de arte que tinham sido compradas para o Museu Colecção
Berardo, a partir de 2007, com verbas de um fundo de aquisição co-financiado
pelo empresário e pelo Estado português.
Os estatutos da
Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Colecção Berardo (FAMC-CB), anexos
ao decreto-lei que criou a fundação, em Agosto de 2006, previam que o
coleccionador, ou “quem ele venha a indicar”, poderia comprar estas obras pelo
preço que custaram à época, pagando apenas a parte que fora desembolsada pelo
Estado.
Como ambas as partes deixaram de alimentar este fundo de aquisição – para o qual o empresário e o Estado contribuíam, cada um, com 500 mil euros anuais –, todas as obras agora adquiridas pela Associação de Colecções chegaram ao Museu Colecção Berardo nos seus primeiros anos de funcionamento. É um conjunto maioritariamente constituído por obras de artistas portugueses – Pedro Cabrita Reis, Rui Chafes ou Jorge Molder são alguns exemplos –, mas que também inclui algumas criações de artistas estrangeiros, como Daniel Buren ou o neerlandês-americano Willem de Kooning, um dos nomes cimeiros do expressionismo abstracto.
A Associação de
Colecções tem surgido associada a outras iniciativas relacionadas com José
Berardo. Por exemplo, o B-MAD, Berardo – Museu Arte Deco, inaugurado em Lisboa
em 2021, apresenta-se, nos seus próprios materiais de comunicação, como “uma
iniciativa privada da Associação de Colecções”.
Se a compra destas
obras pode ser vista como uma mera oportunidade de negócio, também não é de
excluir que a decisão de as adquirir possa indicar, da parte de José Berardo,
uma vontade de não desistir da colecção que reuniu, e que se tornou agora o
centro do novo MAC/CCB, onde dialogará com peças das colecções Ellipse e
Teixeira de Freitas, e também com a Colecção de Arte Contemporânea do Estado.
Propensão para a
litigância
A inauguração do
MAC/CCB, marcada para esta sexta-feira, é de algum modo o corolário da
estratégia adoptada pelo actual ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, para
garantir a fruição pública da Colecção Berardo sem que o Estado compre as
obras, e devolvendo ao mesmo tempo ao CCB a gestão do seu centro de exposições.
Um objectivo que se tornou claro logo no início do seu mandato, quando optou
por denunciar o célebre protocolo de 2006, que estivera na origem da instalação
no CCB do agora extinto Museu Berardo, e que no final de 2016 o então titular
da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, receando que o empresário pudesse levar
a colecção para o estrangeiro, ainda renovara por mais seis anos.
Uma decisão que
aliás permitiu, ainda no final do mandato de Castro Mendes, no Verão de 2018,
evitar a saída do país de 16 das obras comercialmente mais valiosas da
colecção, que Berardo dizia querer avaliar em Londres, com vista a uma
“eventual venda”.
A relação do
Estado português com o coleccionador era já então tensa, mas foi só a partir do
segundo trimestre de 2019 que assumiu uma hostilidade mais ou menos declarada.
As notícias das dívidas do empresário, a acção interposta por três bancos –
Caixa Geral de Depósitos (CGD), BCP e Novo Banco – para recuperar mais de 900
milhões de euros de alegados créditos, e sobretudo a risonha desfaçatez
evidenciada por Berardo na sua passagem, em Maio desse ano, pela Comissão
Parlamentar de Inquérito à CGD, à qual garantiu que não tinha quaisquer dívidas
em seu nome, tornaram o comendador condecorado por Ramalho Eanes e Jorge
Sampaio definitivamente uma persona non grata.
A então ministra
Graça Fonseca considerou as suas declarações “insultuosas e inadmissíveis”, e
assegurou que iria usar as medidas legais ao seu dispor para garantir que a
colecção não seria vendida ou desintegrada.
E em Julho de
2019, no âmbito do processo interposto pela banca, as obras da Colecção Berardo
foram arrestadas por ordem do tribunal, que nomeou como fiel depositário o
presidente do CCB, Elísio Summavielle.
Quando Pedro Adão
e Silva assumiu a tutela da Cultura, em Março de 2022, o período de renovação
do protocolo negociado com Castro Mendes estava prestes a expirar, e o novo
ministro decidiu avançar para a denúncia do acordo, que anunciou publicamente a
22 de Maio, no próprio CCB, adiantando logo nessa ocasião que o Estado iria
comprar a Colecção Ellipse para um futuro museu de arte contemporânea no CCB,
então ainda por baptizar.
É o início de um
intenso conflito jurídico – Adão e Silva acusará mesmo Berardo de ter uma
“propensão indomável para a litigância” –, no decurso do qual o Estado, naquilo
que envolve a Colecção Berardo, vem ganhando sucessivas batalhas.
Ainda em Junho do
ano passado, o tribunal rejeitou um processo cautelar de Berardo para tentar
travar a denúncia do protocolo. E, a 30 de Dezembro, o empresário recorreu a
uma nova providência cautelar para pedir a “suspensão de eficácia” do
decreto-lei que foi publicado nesse dia a extinguir a FAMC-CB, mas viu a sua
pretensão liminarmente rejeitada pelo Supremo Tribunal Administrativo com base
numa questão técnica: quando o pedido dera entrada no tribunal, o decreto-lei
contestado já fora aprovado no Conselho de Ministros, mas ainda não fora
publicado no Diário da República.
Berardo voltou à
carga e o Governo, para evitar essa consequência suspensiva, contra-atacou
usando a figura da “resolução fundamentada”, aprovada em Conselho de Ministros
a 5 de Janeiro, conseguindo que o tribunal aceitasse o argumento de que a
suspensão lesaria o interesse público, comprometendo a livre fruição da
Colecção Berardo.
Em Março, o
Supremo Tribunal Administrativo indeferiu uma última pretensão, apresentada por
Berardo e pela Associação Colecção Berardo, para suspender a eficácia do
decreto-lei que extinguiu a FAMC-CB, para a qual já foi nomeada em Abril uma
comissão liquidatária. Nesse mesmo mês, Berardo apresentou recurso da decisão
do tribunal. Tanto este recurso como a acção principal contestando o
decreto-lei aguardam ainda decisão da justiça.
Mas mesmo admitindo que o Estado ganhe também essas batalhas, e tendo o tribunal já decidido manter o presidente do CCB (cargo no qual Francisca Carneiro Fernandes irá agora render Elísio Summavielle) como fiel depositário das obras arrestadas, deverá demorar ainda bastante tempo até a acção movida pelos bancos chegar ao seu desenlace, que é difícil de prever. E até lá, o novo MAC/CCB, tal como agora se apresenta, arrisca-se a ser um museu a prazo (Público, texto do jornalista Luís Miguel Queirós)
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