quinta-feira, dezembro 30, 2021

“Eu dormia no chão, em cima de uma caixa de cartão, mas é melhor do que na Venezuela”


Desde que a fronteira norte do Brasil com a Venezuela foi parcialmente reaberta em julho passado, um crescente número de pessoas migrantes e requerentes de asilo atravessaram para território brasileiro acabando a viver nas ruas no estado de Roraima e com precário acesso a cuidados de saúde e a outros serviços essenciais. A vila de Pacaraima, com cerca de 20 mil habitantes, é o primeiro local de chegada ao Brasil para centenas de venezuelanos que passam a fronteira todos os dias, na esperança de encontrarem uma vida melhor e segurança para si e para as famílias. É estimado que a cada dia, pelo menos 500 pessoas façam a jornada através de caminhos improvisados a que chamam las trochas (os trilhos). O gabinete de migrações nesta pequena vila fronteiriça apenas consegue processar os requerimentos de estatuto legal a 65 pessoas por dia.

“Ao contrário das esperanças que trazem, a maior parte das pessoas acaba a enfrentar uma dura realidade”, sublinha o coordenador do projeto da Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Roraima, Michael Parker. “As pessoas que chegam pelas trochas ficam normalmente em Pacaraima até conseguirem resolver o seu estatuto de migrantes, o que pode ser um processo lento”, junta.

Michael Parker explica que “o sistema de saúde da povoação é precário e não existem infraestruturas para acolher os migrantes”. “Daqui resulta que centenas de homens, mulheres e crianças acabam por ficar a viver em condições precárias e sem acesso a cuidados de saúde essenciais”, conclui.

"TENHO SETE FILHOS E A VIM À PROCURA DE UMA VIDA MELHOR PARA ELES"

No mês passado, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), mais de três mil pessoas estavam a viver nas ruas de Pacaraima a aguardar a resolução do estatuto legal, devido à falta de abrigos para as acomodar.

“De acordo com a lei brasileira, todas as pessoas têm direito a aceder a serviços de saúde pública, independentemente da fase em que se encontre o seu estatuto e processo legal. Mas a realidade é que, mesmo com este direito formal, os serviços que existem são limitados e estão sobrecarregados no estado de Roraima”, descreve o coordenador do projeto da MSF.

"ESTAVA À PROCURA DE UMA VIDA MELHOR, MAS O QUE ENCONTROU FOI A MORTE"

Em resposta a esta lacuna nos serviços e no acesso a informação de saúde, a organização médico-humanitária estabeleceu um programa de cuidados médicos, de saúde sexual e reprodutiva e de saúde mental em clínicas móveis em Pacaraima e também em Boa Vista, cidade capital do estado de Roraima onde a OIM estima que outras duas mil pessoas estejam a viver sem abrigo. Entre janeiro e outubro deste ano, as equipas da MSF providenciaram cuidados a 37 517 pacientes no conjunto de todos os serviços prestados em Pacaraima e em Boa Vista.

A MSF verificou um claro aumento na procura dos serviços disponibilizados desde a reabertura parcial da fronteira após terem sido levantadas as restrições devido à COVID-19, em julho passado. Só entre esse mês e o final de setembro de 2021, as equipas da organização médico-humanitária prestaram assistência a 14 551 pacientes. Além disso, 56 por cento das consultas feitas nos primeiros nove meses do ano foram realizadas durante aquele período de três meses. As principais razões destas consultas foram infeções respiratórias e ginecológicas.

Simultaneamente, as equipas MSF de saúde mental identificaram que 69 por cento dos pacientes assistidos apresentavam sintomas de stress agudo, de depressão ou de ansiedade. A deslocação do local de onde viviam, a separação familiar, a jornada a caminhar longas distâncias e a violência que enfrentaram na jornada são as principais causas.

"AS PESSOAS ESTÃO A DORMIR NAS RUAS COM OS FILHOS. ÀS VEZES SOMOS ROUBADOS."

“Habitualmente, quando as pessoas chegam junto de nós, o que mais nos perguntam é sobre os serviços de saúde e como lhes podem aceder”, afirma o promotor de saúde Alvilyn Bravo, que integra o projeto MSF em Roraima. “Veem-se num país com uma cultura totalmente diferente e enfrentam obstáculos como a linguagem para compreender como é que os serviços de saúde funcionam ou quais lhes estão disponíveis”, esclarece.

A MSF desenvolve também atividades de promoção de saúde centradas em mensagens sobre saúde sexual e reprodutiva.

“Quando cheguei ao Brasil há dois anos, não havia tanta gente aqui como agora. Os serviços a que acedi logo após ter cá chegado, como consultas médicas, já não estão disponíveis. O único serviço que tenho agora é esta clínica [da MSF]”, garante Alejandra*, paciente nas clínicas móveis. “Consegui trazer a minha filha da Venezuela há um par de meses. O estatuto de migração dela ainda não está completo e cada vez que vamos ver em que fase se encontra o processo dela, o gabinete está sempre cheio, a rua está cheia, e as pessoas não param de chegar.”

Embora as condições em Pacaraima sejam extremamente precárias, pessoas migrantes e requerentes de asilo afirmam, de forma quase unânime, que preferem não ter abrigo no Brasil a ficar na Venezuela.

“Eu dormia no chão, em cima de uma caixa de cartão, quando aqui cheguei. Mas mesmo assim, é melhor do que na Venezuela”, frisa Alejandra.

“Os nossos pacientes dizem-nos que migrar não fazia parte dos seus planos de vida, e que o consideram até um último recurso para escapar à insegurança financeira, social e alimentar no país natal. Durante as jornadas que fazem, enfrentam a fome e perigos para tentarem chegar a um local seguro e estável. Apesar do contexto difícil que encontram, ouvimos-lhes histórias de esperança e de desejos por uma vida melhor”, conta Michael Parker.

As equipas da MSF testemunham todos os dias a chegada ao Brasil de famílias inteiras, de mulheres, homens e crianças, à procura de segurança e em busca de uma vida melhor. A organização médico-humanitária insta a mais apoios para serviços de saúde e infraestruturas como abrigos e serviços essenciais para as pessoas migrantes e requerentes de asilo em Pacaraima e em Boa Vista (SIC-Noticias)

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