quinta-feira, dezembro 30, 2021

Covid-19. O Governo e a DGS comunicam bem? Os portugueses sentem-se enganados? Era possível fazer melhor? Sim e não: é complicado responder

Os portugueses confinaram, os portugueses vacinaram-se, e os portugueses confinaram e vacinaram-se novamente, cumprindo a generalidade das recomendações que foram sendo dadas, aceitando as restrições decretadas na esperança de que as coisas iriam mudar para melhor. Foi isso que foram ouvindo do Governo e das autoridades de Saúde durante quase dois anos, que acenaram com o regresso à normalidade e à “libertação”. Só que apareceu a Ómicron - e o cenário mudou. As promessas foram desfeitas e o fim da pandemia parece não ter final à vista, com mais doses e mais restrições e mais frustrações. Poderá esta mudança de cenário retirar a confiança dos portugueses perante as autoridades? Podem os movimentos populistas e as teorias da conspiração ganhar terreno perante isto? E, em última análise, como tem o Governo gerido as expectativas dos portugueses? O Expresso ouviu dois especialistas em comunicação de crise e isto foi o que eles nos disseram

A esmagadora maioria dos portugueses fez de tudo para por fim à pandemia: passaram a usar máscara, álcool gel no bolso, vacinaram-se com as várias doses, confinaram em casa, estiveram em teletrabalho, cumpriram o que lhes foi aconselhado e imposto e, por várias vezes, ao longo destes quase dois anos de pandemia acreditaram estar prestes a sair do longo túnel de restrições.

Mas com o surgimento da nova variante Ómicron - bastante mais transmissível que as anteriores - as expectativas e promessas feitas pelas autoridades, epidemiologistas e médicos saíram totalmente goradas e a libertação e regresso à normalidade não vai acontecer tão depressa.

O que isto está a provocar nos portugueses? Além do óbvio desconforto psicológico e ansiedade, a desconfiança nas autoridades estará a aumentar? E será essa desconfiança provocada pela comunicação e gestão das expectativas por parte do Governo e DGS? Como é que o o Executivo as autoridades de Saúde deviam ter comunicado a alteração de cenários? A sociedade não terá ficado mais permeável a populismos e teorias da conspiração?

Rui Gaspar, professor na Universidade Católica e psicólogo com especialidade em comunicação de crise, não tem dúvidas de que houve uma má comunicação por parte das autoridades e uma clara violação das expectativas criadas na população. E começa por recordar que a comunicação e o discurso da Direção-Geral de Saúde teve como primeiro objetivo o alcance de 70% da imunidade de grupo com a vacinação, passando a ideia de que depois disso a população voltaria a alcançar alguma normalidade.

Depois, percebeu-se que esse número afinal não era suficiente e passou-se a um novo objetivo, o alcance de 85% de imunidade para uma dose de vacina para o fim da tormenta. Mas mais uma vez o cenário foi irrealista. “O problema é que houve uma violação das expectativas, porque a comunicação feita criou a ideia que iríamos alcançar alguma normalidade, depois de atingida a tal imunidade. O que não veio a acontecer. Devia ter sido feita uma comunicação por cenários. E foi traçado apenas um único cenário, o mais otimista, segundo uma avaliação técnica e política da situação. Ou seja, comunicou-se um cenário de certeza numa situação de incerteza.

O especialista em crise alerta para o facto de no passado dia 16 de setembro a DGS ter feito um comunicado na reunião do Infarmed em que incluía três cenários futuros possíveis no documento “COVID-19 - referencial outono/ inverno 2021/2022”. O que na sua opinião falhou o foi o facto do Governo ter dado mais ênfase no cenário mais otimista, menos gravoso, que assumia que não existiam alterações na efetividade da vacina contra a COVID-19, nem o aparecimento de uma nova variante de preocupação - e de não ter comunicado na altura com a mesma eficácia para a população outro dos cenários possíveis em cima da mesa, mais pessimista, que dizia o seguinte: “Considera-se o aparecimento de uma nova variante de preocupação (VOC) com características que permitem uma evasão do SARS-CoV-2 ao sistema imunitário, provocando uma redução rápida da efetividade da vacina, aumento da transmissibilidade do vírus”.

Rui Gaspar afirma que foi notória a falta de prática de comunicação de incerteza por parte das autoridades competentes. E dá o exemplo de uma melhor abordagem pública sobre o assunto. “Poderia ter sido dito que havia um cenário possível e provável de alcançarmos a normalidade desejada se 80% da população for vacinada. Mas isto deveria ter sido comunicado como uma probabilidade e não como uma certeza. E foi comunicado como uma certeza. E não foram só o Governo e a DGS a fazê-lo, mas também os especialistas de saúde e a comunidade científica, como os epidemiologistas, que apontaram para um cenário de regresso à normalidade com um elevado grau de certeza que iria de facto acontecer. Ora isto, como já afirmei, provocou a violação das expectativas e a desconfiança na população quando os objetivos não foram alcançados. E tem o efeito indesejável da redução da confiança na fonte de informação.”

Outra opinião tem Sofia Serra-Silva, Investigadora Auxiliar no Instituto de Ciências Sociais (ICS), da Universidade de Lisboa, que aponta para os dados mais recentes da sondagem da Aximage, realizada no início de dezembro, que indicam que a maioria dos inquiridos (61%) avaliaram positivamente a atual gestão da pandemia.

Um valor até maior do que os 42% de portugueses que avaliavam positivamente em Julho deste ano. O que parece revelar que os portugueses continuam a aceitar as medidas e restrições impostas. E metade até considera que deveriam ser implementadas mais restrições. “A minha leitura é que apesar do cansaço natural de todos e após dois anos de emergência pandémica, na generalidade, os portugueses continuam a apoiar as medidas impostas e a aceitar as restrições inerentes às mesmas. Este cansaço natural após dois anos de emergência epidémica não significa necessariamente que os cidadãos responsabilizem em maior grau os decisores políticos.”

Mas a realidade é encarada de maneira diferente, dependendo do lugar de privilégio de cada um. Numa análise mais a fundo do estudo do ICS feito no 2º confinamento, a investigadora refere que os inquiridos que atribuíram maior responsabilidade individual para o aumento de infeções foram aqueles que menos foram afetados em todas as dimensões (que conseguiram lidar bem com as restrições, e não tiveram quebras de rendimento ou dificuldades financeiras, por exemplo).

Por outro lado, os inquiridos que atribuíram maior responsabilidade política para agravamento da situação pandémica foram os mais afetados em todas as dimensões analisadas. “Uma das possíveis leituras destes dados é que nem sempre os portugueses responsabilizam os decisores políticos pela situação pandémica vivida num determinado momento (neste caso no segundo confinamento), muitas vezes responsabilizam os cidadãos pelo estado da situação epidémica - sobretudo aqueles que não foram tão fortemente afetados pela pandemia.”

Rui Gaspar é da opinião que os portugueses deverão ser preparados para todos os cenários futuros, incluindo os piores, mesmo que não venham a acontecer, para não se sentirem frustrados ou enganados. “Essa antecipação das medidas dá um certo controlo à população, porque ficam a saber o que poderá vir a acontecer no futuro. E as expectativas serão mais realistas, baseadas no que se sabe e no que poderá de facto acontecer. Em suma, o que é importante é reduzir a incerteza e dar mais perceção de controlo às pessoas sobre as suas vidas, o que cria uma maior probabilidade das pessoas aderirem às medidas propostas.”

Sofia Serra-Silva traz outra abordagem à discussão. O facto de todos os recuos que assistimos recentemente - o aumento do número de casos, as falhas reportadas na linha saúde 24, ou algum atraso no processo de vacinação - poderem ser usados pelos partidos da oposição, principalmente a um mês das eleições. E aqui destaca a mira apontada da extrema-direita aos cidadãos descontentes, frustrados e zangados com o sistema. “Os estudos têm demonstrado que a forma como os partidos de extrema-direita têm reagido à pandemia depende se estão no poder/governo ou na oposição. Quando estão no poder tendem a advogar por medidas autoritárias e quando estão na oposição são críticos dos confinamentos e das restrições às liberdades individuais. Neste contexto, o Chega tem feito exatamente isso, tem sido muito vocal nas críticas à gestão da pandemia, mas não há dados que nos indicam se eles conseguem capitalizar ou não os eleitores que estão descontentes com a actual gestão da pandemia. Ademais, o Chega não detém o monopólio da crítica ao Governo, outros pequenos partidos têm sido igualmente vocais nas críticas, como a Iniciativa Liberal nas últimas semanas.”

A socióloga termina com outra ideia, o facto da própria natureza do processo científico ser desconhecido e incompreensível para a esmagadora maioria da população que não encara com bons olhos a constante mudança da narrativa sobre a pandemia.

“Muitas vezes os cidadãos têm dificuldade em acompanhar os avanços e recuos científicos que são perfeitamente normais e comuns no meio académico e na investigação científica. Penso que para a maioria dos cidadãos é difícil compreender que à data de hoje a evidência científica aponte numa direção e daqui a uma semana, um novo estudo, faça novas descobertas e aponte para outra direção. Isto é de difícil de compreensão para a maioria das pessoas. Claro que uma boa estratégia de comunicação é essencial, mas mesmo quando todas essas condições estão reunidas, a própria natureza e dinâmica da investigação científica, que acarreta sempre algum grau de incerteza e erro, faz com que os cidadãos tenham dificuldade em acompanhar e compreender estes avanços e recuos e até por vezes rejeitem o conhecimento científico.”

O psicólogo Rui Gaspar acrescenta, para finalizar, a sugestão de uma reformulação dos objetivos das autoridades sobre a pandemia e a mudança de um certo discurso repetido que considera errado e contraproducente. “O nosso fim último não é a vacinação, mas sim reduzir o número de óbitos, hospitalizações e numero de pessoas com doença grave. Importa assim mudar o discurso que a comunidade científica tem comunicado até agora, em que se afirma que a vacinação é a melhor arma para combater a pandemia. Não é! A melhor arma de combate é o comportamento preventivo de cada um de nós, e de todos nesta sociedade, e que não inclui apenas a vacinação, mas também o uso de máscara, higienização, evitar multidões, arejamento dos espaços, entre outros. Porque à medida que vão surgindo novas variantes, a eficácia da vacina pode variar. Em contrapartida, o que se tem demonstrado de forma consistente é a eficácia dos comportamentos de prevenção. Que não variam com as novas variantes da Covid.” E remata com uma metáfora para tornar esta ideia mais clara: "A vacina é importante, mas funciona como uma via rápida ou autoestrada para reduzirmos os casos mais graves. Se tivermos comportamentos preventivos estamos a criar uma estrada municipal, que leva mais tempo a percorrer, mas é mais eficaz para reduzirmos efetivamente as hospitalizações e mortes associadas à Covid. Ou seja, a pandemia continua enquanto não conseguirmos alcançar estes objetivos. E isso é que devia ser mais explicitado por parte da DGS e Governo" (Expresso, texto do jornalista Bernardo Mendonça)

Sem comentários: