UM DÉFICE NÃO É UMA FALÊNCIA, MAS...
Em Portugal, uma parte das pensões de reforma são financiadas através de impostos (é o caso das pensões mínimas e dos complementos sociais), outras através dos descontos que fazemos ao longo da vida. Este último é o chamado “sistema previdencial” e, quando se fala de défices ou de superávites, é este pacote de pensões que está em causa. O dinheiro que vamos descontando enquanto trabalhamos não fica congelado — é usado para pagar pensões, subsídios de doença ou de desemprego a quem precisa, e, quando chegar a nossa vez de nos reformarmos, haverá outros trabalhadores a descontar para nos pagar a nós. O problema é que, a este ritmo, seremos cada vez menos e cada vez mais velhos, havendo mais pessoas a receber pensão do que a trabalhar e a descontar para o sistema (ver gráficos). E é aqui que entra o défice da Segurança Social.
O Expresso iniciou na edição de 23 de dezembro a publicação de uma série de artigos sobre os desafios da economia nos próximos anos. Temas que, em período eleitoral, devem merecer a atenção dos partidos e dos portugueses. Depois do crescimento, hoje analisamos a sustentabilidade e adequação das pensões. Seguir-se-ão as desigualdades, a transição energética, a eficiência do Estado e os salários.
A entrada no vermelho não é, por si só, dramática. Nos últimos anos, na sequência da crise financeira, o sistema previdencial das pensões esteve temporariamente no vermelho, e as pensões e demais prestações sociais continuaram a pagar-se. Quando chegarmos à década de 2030, o sistema voltará a entrar no vermelho (ver gráficos), mas desta vez de forma duradoura. Mas, também neste caso, isso não significa necessariamente que não haverá dinheiro para pagar as pensões de quem se reformar, nos termos que foram contratualizados com o Estado.
Dizer-se que não haverá dinheiro “é um pouco catastrofista. [O sistema de pensões] faz parte do fundamento do Estado democrático”, diz Armindo Silva, antigo diretor da Comissão Europeia para as áreas do Emprego e da Proteção Social. “O problema da sustentabilidade não significa que não haja dinheiro para pagar as pensões. Significa que elas são um foco adicional de saúde das finanças públicas, e Portugal está especialmente mal posicionado, porque já tem a dívida pública e a carga fiscal muito altas.” A mesma leitura faz Miguel Coelho: “Haverá sempre dinheiro. Um descalabro só acontece por opção política. O problema é que terá de ser encontrada uma solução, e [sem reformas adicionais] ou se carrega nos impostos ou se reduzem os benefícios”, considera o professor universitário e antigo dirigente do Instituto da Segurança Social.
E é aqui que entramos no debate sobre o que fazer, não só para garantir a sustentabilidade financeira mas também para garantir que as pensões irão assegurar um nível de vida adequado aos cidadãos.
COMO ALIAR SUSTENTABILIDADE FINANCEIRA À ADEQUAÇÃO?
Nos últimos 15 anos fizeram-se várias mexidas, de forma tão paulatina que, nalguns casos, quase não se notou. Ainda. A pensão passou a calcular-se com base em toda a carreira, a idade da reforma subiu, penalizaram-se significativamente as reformas antecipadas, tudo para garantir que os cidadãos descontam mais anos e que o sistema previdencial tem despesas mais controladas.
Daqui a uns anos, o sistema entrará em défice. Quanto, não se sabe ao certo, mas o Governo dá como certo que entre 2030 e 2060 será preciso acionar o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS), uma almofada que por essa altura terá à volta de €35 mil milhões, e lançar mão de outras medidas.
“O FEFSS tem tido uma evolução positiva, crescendo acima dos salários e emprego, mas o relatório de Sustentabilidade [feito pelo Governo] apoia-se em hipóteses muito otimistas e não apresenta cenários alternativos, o que é uma metodologia estranha”, diz Armindo Silva. Miguel Coelho concorda: “A maioria das reformas [do ministro] Vieira da Silva foram paramétricas. Quando entramos no cálculo atuarial é que começa o problema e, sem reformas estruturais, aumentam-se sucessivamente impostos.” Soluções? É aqui que estes dois (como outros) especialistas divergem.
EMPRESAS A DESCONTAR EM FUNÇÃO DA PRODUTIVIDADE...
Para o antigo diretor da Comissão Europeia, as receitas contributivas devem acompanhar “não o aumento da massa salarial mas o crescimento da produtividade”. Dito de outro modo: a taxa social única deve deixar de assentar apenas sobre as remunerações e passar a incidir também sobre uma parte do valor acrescentado líquido das empresas. Igualmente imprescindível é que o Estado avance com um quadro de benefícios fiscais robusto a verdadeiros produtos de reforma, tanto a título opcional como a título complementar, através de acordos entre empresas e trabalhadores. “Este não é o momento para pedir mais esforço às empresas”, mas, a prazo, este deve ser o caminho, até para atenuar as penalizações que vierem a ser sentidas por quem tem carreiras profissionais interrompidas.
Outro caminho a atalhar passa por rever a atualização anual das pensões. “As pensões nos escalões médios e altos não estão a acompanhar a taxa de inflação. Como estamos a entrar num período de inflação mais alta e as taxas de crescimento se perspetivam modestas, há um problema de adequação”, alerta Armindo Silva.
...OU REFORMADOS A ASSUMIREM MAIS RISCO?
Miguel Coelho envereda por outro modelo, onde transfere mais responsabilidade para os cidadãos, de forma gradual, em função da idade. Com os suecos como pano de fundo, o especialista defende um modelo assente em vários eixos: um universal, financiado pelos descontos, em que o Estado assegura uma pensão mínima a todos; um segundo, assente nos descontos de trabalhadores e empresas, onde uma parte é destinada a contas nocionais (geridas em regime de repartição mas valorizadas ao ritmo dos descontos de cada um) e outra, mais pequena, vai para um regime de contas individuais (numa lógica de plafonamento).
A vantagem deste modelo é que, a prazo, o sistema se torna autossustentável; a desvantagem é que pode ditar um agravamento dos descontos e um corte nas pensões em pagamento. Como se garantem pensões adequadas para todos? “Com um complemento de pensão, feito com uma condição de recursos”, explica.
PARAR DE TRABALHAR E PASSAR OS DIAS NO MÉDICO?
De resto, o grosso do que foi feito até aqui é para manter. Em 2007, o ministro Vieira da Silva introduziu o fator de sustentabilidade, que fez depender a idade da reforma do aumento da esperança de vida, e na altura mereceu um elogio rasgado na OCDE — “revolucionária!” —, mas, para os dois especialistas, não se deve abdicar de nenhuma. Nem do aumento progressivo da idade da reforma nem das penalizações à reforma antecipada, uma das maiores da OCDE (ver gráficos).
Pelo meio há, contudo, um senão: em Portugal vivem-se muitos anos (a esperança de vida está ao nível da dos países mais avançados da Europa), mas vive-se pouco tempo com saúde após os 65 anos de idade (ver gráficos). Quer isto dizer que estamos condenados a viver poucos anos da reforma de modo tranquilo e a tirar prazer do tempo livre?
“É um grande problema”, reconhece Miguel Coelho. “Se não tivermos políticas que previnam doenças e promovam uma vida ativa, as pessoas reformam-se e ficam logo dependentes da saúde e da Segurança Social.” “É preciso ir à fonte do problema e ter não um sistema nacional de doença mas um sistema nacional de saúde.” Armindo Silva volta a convergir. “Portugal é um dos países que menos tem investido nestas áreas. O problema tem de ser resolvido com outras soluções, ao nível dos cuidados de saúde, da habitação, da prevenção de comorbilidades.”
Já trabalhar até mais tarde “é inevitável”, “não temos alternativa”. Outra inevitabilidade será voltar a mexer no sistema de pensões. “A maioria das pessoas acha que a sua pensão é baixa e que a do vizinho é maior do que os descontos que fez. As reformas são difíceis de fazer — e quanto mais tarde pior”, sustenta Miguel Coelho.
PORTUGAL É DOS PAÍSES ONDE OS REFORMADOS TÊM MENOS ANOS DE VIDA SAUDÁVEL
Os portugueses vivem tanto tempo quanto os nórdicos mas, após a reforma, têm menos de metade dos anos de vida saudável. Penalizações por reforma antecipada são das maiores
Menos e mais velhos A Europa está a encolher e a envelhecer. Nos próximos 50 anos, estima-se que a União Europeia perca 23 milhões de pessoas, passando dos atuais 447 milhões para 424 milhões. Portugal tem uma tendência semelhante, mas o decréscimo será mais acentuado — com uma taxa de natalidade especialmente baixa e a migração a crescer mais modestamente, a população nacional encolherá quase 18%. Em consequência, a estrutura etária alterar-se-á significativamente. Seremos menos e muito mais velhos e a população com mais de 65 anos mais que duplicará. Em 2070, 33,1% da população terá mais de 65 anos e 14,7% mais de 80. Ao todo, 47,8% estarão em idade avançada (o que se compara com os 28,5% atuais).
Poucos a descontar, muitos a receber Chegados a 2045, altura em que uma parte da geração do baby boom se estiver a reformar, Portugal será o país da UE com o maior rácio de dependência: as pessoas com mais de 65 anos representarão 66% da população em idade ativa. As alterações levadas a cabo em 2007 e 2014 poupam dinheiro, permitindo reduzir o peso das pensões na dívida pública, mas não chegam. Em teoria, o sistema previdencial é sustentável até 2030, mas a partir daí entra em ação o Fundo de Estabilização, porque passam a pagar-se mais pensões do que a entrar contribuições sociais. O défice começa a desaparecer na década de 2060, mas durante 30 anos serão precisas outras formas de financiamento (1% do PIB/ano).
Viver muito tempo, mas sem saúde Hoje em dia, em Portugal vive-se tanto tempo como nos países mais avançados, mas há um senão: vive-se com menos saúde. Após os 65 anos, vivemos 7,3 anos com saúde, menos de metade do que acontece, por exemplo, na Suécia. Ou seja, restam poucos anos aos portugueses para terem um tempo sossegado durante a reforma. Deixar de trabalhar antes da idade legal continua a ser uma opção, mas sai bem cara. Embora nos últimos anos se tenham feito ajustes, Portugal é o país da OCDE com maiores penalizações. Quem sair um ano antes do tempo, tem um corte de 36% na pensão, quem sair três anos antes leva menos 15% por cada ano. A Áustria é o segundo país mais penalizador (Expresso, texto da jornalista ELISABETE MIRANDA)
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