sábado, dezembro 02, 2023

DN-Lisboa - Ana Rita Gil: "Os portugueses são um povo de acolhimento, mas querem uma imigração regulada, previsível e controlada"

Ana Rita Gil, coautora de um estudo sobre a perceção dos portugueses em relação aos imigrantes, falou ao DN sobre algumas das conclusões deste trabalho. Admite que ficou negativamente surpreendida com a percentagem de pessoas (55,2%) que acha que a imigração está descontrolada e acredita que este que é um dos temas mais fraturantes na UE, pode fazer parte da próxima campanha eleitoral. Acha que quem olha para as conclusões do estudo da Lisbon Public Law da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) sobre a perceção que os portugueses têm da imigração no nosso país, parcialmente conhecidas nesta quinta-feira através do semanário "Nascer do Sol", pode ficar com a ideia de que a generalidade dos portugueses tem alguma xenofobia, desconfia dos imigrantes e critica as políticas públicas do governo?

Temos aqui várias afirmações que remetem para aspetos diferentes. Quanto à xenofobia: achamos que tal conclusão não pode ser retirada, de todo, do estudo. Os resultados dizem-nos o contrário, que a população portuguesa é de uma forma geral, recetiva à imigração.

71,7% dos inquiridos elegeu como uma das frases em que mais se revê a de que "os Portugueses devem receber bem os imigrantes". 68,7% considera importante Portugal receber imigrantes dentro e fora da Europa.

De facto, 71,7% dos inquiridos elegeu como uma das frases em que mais se revê a de que "os Portugueses devem receber bem os imigrantes". 68,7% considera importante Portugal receber imigrantes dentro e fora da Europa.

Apontando aspetos positivos da imigração, 67,3% dos inquiridos refere a formação de uma sociedade multicultural, 64,2% a maior disponibilidade de mão-de-obra e 48,5% o contributo para o aumento da população e a criação de empregos (34,2%).

Ser recetivo não significa não exigir normas. É assim que devemos ler a perceção, de mais de metade dos inquiridos, de que a imigração está descontrolada, ou a ideia, de 48,7%, de que Portugal deve estabelecer quotas numéricas para a imigração.

Diferente disto, é a preocupação manifestada pelos portugueses com a regulação da imigração. Ser recetivo não significa não achar que as normas são importantes.

É assim que devemos ler a perceção, de mais de metade dos inquiridos, de que a imigração não está controlada, ou a ideia, de 48,7%, de que Portugal deve estabelecer quotas numéricas para a imigração.

São duas questões diferentes: uma, é a de que queremos receber imigrantes. Outra, a de que queremos receber de qualquer maneira, sem saber quantas pessoas vêm, se temos capacidade de acolhimento para todos, etc..

"Portugal está a dizer às redes de imigração ilegal: temos aqui um negócio espetacular"

Vejamos: a maioria dos portugueses referiu que os imigrantes devem ter acesso ao subsídio de desemprego e ao SNS. Mas estão conscientes que os recursos são limitados.

E assistem na TV e nos jornais, a imigrantes a viver amontoadas em casas. Sim, consideram que devemos receber imigrantes, preferem receber com garantia de dignidade para todos. É assim que devemos ler o estudo na sua globalidade. Interpretamos da mesma forma os 98% que dizem quem explora os imigrantes deve ser punido.

Depois, a questão da proteção da ordem pública: 78% dos inquiridos refere que a imigração comporta algum tipo de riscos.

Aponta-se como um dos principais riscos da imigração o aumento da criminalidade. Mas daqui não se pode dizer que os portugueses "desconfiam" dos imigrantes.

Como disse o Professor Carlos Blanco de Morais (co-coordenador do estudo), os portugueses estão atentos, e estão preocupados com as recentes notícias sobre tráfico de pessoas, exploração ou mesmo escravatura.

Foram estes os crimes que elegeram como os que a imigração pode acarretar. Isto remete, mais uma vez, para uma perceção de falta de controlo da imigração.

O que mais a surpreendeu positiva e negativamente quando olhou os resultados do inquérito?

Não foi uma surpresa, mas confirmei a perspetiva que tinha de que os portugueses são um povo de acolhimento.

Foi uma surpresa, contudo, confirmar tal recetividade vai ao ponto de considerarem que a imigração não provoca desemprego e que precisamos de mão-de-obra, quer qualificada, quer não qualificada - o que demonstra que têm permanecido imunes a alguns discursos populistas.

Do lado mais "negativo", talvez tenha ficado surpreendida com a percentagem de pessoas (55,2%) que acha que a imigração está descontrolada.

Por outro lado, talvez tenha ficado surpreendida com a percentagem de pessoas, superior a 55% que acha que a imigração está fora de controlo. Não imaginava que os portugueses estivessem tão atentos e preocupados com esta questão de regulação

Qual é então o perfil dos portugueses nesta matéria?

O estudo foi feito através de 1.000 inquéritos presenciais em todo o país, nos distritos com mais de 15.000 imigrantes, e abarca uma população heterogénea e seguiu regras de aleatoriedade rigorosas.

O cruzamento dos dados sociodemográficos com as respostas demonstra, porém, alguma homogeneidade: os portugueses são um povo de acolhimento, mas querem uma política de imigração regulada, previsível e controlada.

Isto é válido quer para os portugueses de origem, quer para os cidadãos naturalizados.

Onde notámos mais discrepância foi na zona sul do país, provavelmente devido ao facto de se tratar de comunidades pequenas originariamente mais fechadas, e que receberam um elevado número de imigrantes provindos de culturas mais distantes que a nossa. Aí os números demonstram uma perceção menos aberta à imigração.

Como investigadora e doutorada em direitos fundamentais da imigração, não acha que um trabalho desta natureza, divulgado como foi, em vésperas de umas eleições em que as sondagens apontam para uma subida da direita populista, poderá ter impacto em certas agendas da campanha?

Começámos este projeto em março/abril. O inquérito estava previsto muitos antes de se pensar na possibilidade de uma campanha.

Foi o primeiro resultado de projeto mais vasto, denominado "Imigração Sustentável num Estado Social de Direito" coordenado por mim pelo Professor Blanco de Morais.

Destina-se a pensar criticamente o Direito e política de Imigração portuguesas, pretendendo abrir um debate alargado e rigoroso sobre que características deverá possuir uma política de imigração coerente, eficaz e sustentável num Estado de Direito democrático, social e pluralista, e de que forma a mesma se deve traduzir na Lei de Imigração.

Trata-se de um trabalho científico, que apenas respeita as regras e os tempos das ciências sociais, e visa lançar pistas para um debate normativo sobre as políticas públicas de imigração, que, na senda de Paul Collier, não podem ser pensadas se não atentarmos na sociedade de acolhimento.

Se for aproveitada para campanhas políticas, tem de o ser de forma séria: o estudo, como disse, traz duas mensagens principais: os portugueses são um povo de acolhimento, mas querem uma imigração regulada, com normas. Referir uma coisa sem referir a outra será deturpar as conclusões do estudo.

Acha que o tema imigração, tal como noutros países da União Europeia, pode mesmo vir a fazer parte da campanha eleitoral em Portugal?

É um tema que tem marcado eleições um pouco por todo o mundo nos últimos anos pelo que penso que sim, a par de questões económicas, pode vir a fazer parte da campanha.

A questão da imigração, como qualquer outra, deve ser discutida. Discutir imigração não pode ser tabu. Só o acto de discutir não pode configurar logo sinal de xenofobia.

As políticas públicas, sobretudo estas que lidam com direitos humanos, e acesso a direitos sociais ou ordem pública, têm de ser discutidas numa sociedade democrática e plural.

Há alguma forma de evitar aquilo que se pode vir a configurar numa fratura da nossa sociedade? A Ana Rita Gil tem defendido uma regulação da imigração, de forma a dar condições de vida e de trabalho aos estrangeiros que procuram o nosso país, mas não é isso que tem acontecido...

Não conseguimos garantir dignidade a quem cá está se não soubermos quantos estão ou quem está. E também não conseguimos segurança, é preciso dizê-lo, sem medos.

Exatamente, e aqui a opinião dos portugueses aponta precisamente para isso: regulação para que haja acesso a direitos sociais.

Não conseguimos garantir dignidade a quem cá está se não soubermos quantos estão ou quem está.

E também não conseguimos segurança, é preciso dizê-lo, sem medos.

Quanto a evitar fraturas na sociedade, considero que é a não criar tabus e "assuntos proibidos" que conseguimos evitar fraturas.

Se não discutirmos as coisas de forma rigorosa, aí sim, o debate fica nas mãos dos extremistas, independentemente do posicionamento dos mesmos - porque há extremistas dos vários "lados" do espetro político.

E nisto a Ciência tem um papel: se não discutirmos as coisas de forma rigorosa, aí sim, o debate fica nas mãos dos extremistas, independentemente do posicionamento dos mesmos - porque há extremistas dos vários "lados" do espetro político.

Com este estudo - de que o inquérito é apenas a primeira parte - pretendemos dar dados objetivos para que se pense imigração no nosso país, e se debata a mesma informadamente.

Os próximos passos serão mapear normas problemáticas na lei, que possam não estar a permitir um equilíbrio entre os direitos das pessoas e os interesses públicos que incumbe ao Estado prosseguir, bem como com as obrigações da União Europeia, e fazer propostas.

Sendo a segurança uma das preocupações dos portugueses em relação à imigração, a coincidência entre o fim do SEF e o volume de fluxos migratórios a aumentar poderá ter que efeitos?

De facto, os cidadãos consideram que a imigração comporta riscos, pelo que 45,5% dos portugueses elegeu como uma das principais preocupações a necessidade de Portugal ter uma polícia que lide especificamente com estrangeiros e fronteiras, colocando, assim, em causa a extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

A existência desta polícia era importante porque era especialmente vocacionada para o controlo da criminalidade conexa à imigração.

Ainda é cedo, porém, para dizer como está a correr o novo sistema, mas os portugueses estão atentos e podemos depreender do estudo que não vão ficar satisfeitos se se o mesmo não demonstrar capacidade de regulação.

Temos tido também notícia de envolvimento de redes criminosas a interceder junto aos consulados, por exemplo do Brasil, conforme o DN noticiou, para conseguir entradas para os seus operacionais em Portugal. Como evitar estas situações?

São estas notícias que justificam a reação dos portugueses em que 78% refere que a imigração tem riscos, de entre os quais, o aumento da criminalidade.

Como referi, os portugueses vão exigir que se investiguem estas situações - e neste caso terá de ser desde a raiz, com colaboração internacional.

As redes criminosas deste tipo requerem cooperação entre os países de destino, de trânsito e de origem. Pretendemos analisar o fenómeno criminal e as leis de combate aos mesmos mais à frente no estudo.

Tendo em conta as conclusões deste estudo, deveria ser corrigida alguma legislação relacionada com a atual política de imigração? Qual?

Mais de 80% dos portugueses concorda com a regularização dos imigrantes que trabalham e descontam para a Segurança Social. Assim, aparentemente, o famoso artigo 88.º da Lei de Imigração não é responsável pela sensação de descontrolo.

Julgo, pelas respostas dadas, que o problema poderá estar em outros mecanismos de regularização que não exigem esses requisitos, como o artigo 123.º - que era para casos excecionais, mas depois se expandiu, ou mesmo com as autorizações de residência CPLP, que criaram imensa confusão nas pessoas, a começar pelos próprios imigrantes, que nem podiam circular no espaço Schengen com as mesmas.

Relembro que Portugal tem um processo de incumprimento aberto pela Comissão Europeia devido a esta solução,

De qualquer forma, os próximos passos do estudo passarão precisamente por esta análise, bem como pela análise dos fenómenos criminais apontados e com propostas que permitam a regulação da imigração através deste equilíbrio: respeito pelos direitos fundamentais de todos, garantia da dignidade, mas também dos interesses públicos do Estado, de entre os quais está a garantia da ordem, segurança e legalidade (DN-Lisboa, texto da jornalista Valentina Marcelino)

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