domingo, agosto 16, 2020

Covid-19: As sequelas que ficam depois da cura

“Como é que se chama aquilo com que eu comecei a andar? Ai, não era a bengala, o outro antes… Ainda há muitas palavras que falham, quero lembrar-me e parece que isto bloqueia.” Não só as palavras teimam em fugir a Paula Lopes como o paladar também ainda não regressou completamente ao normal; e há dias em que acorda extremamente cansada e tanto a visão como a audição parecem enfraquecidas. “Agora já consigo ler, mas as minhas filhas dizem que ando surda. Não acontece com todos os sons, mas alguns deles não oiço e preciso que as pessoas repitam”, conta. A enfermeira de 55 anos, do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, deu entrada na Unidade de Cuidados Intensivos do Curry Cabral, a 16 de março, dois dias após o marido, ambos infetados pelo novo coronavírus. Trinta e oito dias, uma pneumonia e uma trombose na perna esquerda depois, acordou do coma e foi transferida para o serviço de infeciologia e daí para o da reabilitação. Teve de reaprender a andar, primeiro com um andarilho e a seguir com ajuda de uma bengala que a acompanhou até casa, quando teve alta, a 22 de maio. Quase três meses após ter negativado o vírus, o regresso à normalidade é uma maratona para ser corrida com calma e com a ajuda dos médicos e da família. “Já consigo andar sem bengala, mas canso-me muito. Não me consigo baixar, e o subir é terrível, tenho de pedir ajuda”, explica Paula.

Também a vida de António Faustino, 71 anos, mudaria radicalmente ao cruzar-se com a Covid-19. Após ter dado entrada no Hospital Curry Cabral, a 2 de abril, António passou oito dias na unidade de cuidados intensivos, aos quais se seguiram 32 dias de medicina interna e 36 de reabilitação. Tal como Paula, teve de reaprender a andar. “A primeira vez que o fiz parecia que pesava 200 quilos. Duas enfermeiras ajudaram-me a passar da cama para o sofá”, conta.
António desenvolveu um hematoma interno na zona da anca, que os médicos ainda não conseguiram perceber se se trata, de facto, de uma sequela direta do novo coronavírus e que acabaria por provocar uma lesão aguda do nervo femoral esquerdo, deixando a perna sem ação. “Hoje, a perna é como se estivesse sem vida. Quando estou sentado e quero levantá-la, ela não obedece.” Se antes ocupava o tempo da reforma com um part-time num restaurante, que o ajudava a combater a solidão e a manter-se ativo, agora, além de acusar ainda muito o cansaço, tem de usar um aparelho para impedir a perna esquerda de dobrar mais do que 30 graus e perder completamente a força.
As lesões físicas e neurológicas descritas por Paula e por António são partilhadas por outros pacientes em todo o mundo e têm dado origem a uma série de estudos, com o intuito de se descobrir as dimensões reais que a doença pode ter no corpo humano. Inicialmente encarada como uma infeção exclusiva do sistema respiratório, a Covid-19 tem vindo a ser apontada, em dezenas de estudos, como causadora de lesões neurológicas, as quais podem ir de dores de cabeça intensas a encefalopatias que originam estados de confusão e de delírio, formação anormal de coágulos no sangue, inflamação das paredes dos vasos sanguíneos ou mesmo o aparecimento de diabetes tipo 1.
“É preciso frisar que estes casos são raros e que se verificam em doentes internados com quadros graves”, alerta Margarida Tavares, infeciologista no Hospital de São João, no Porto, acrescentando: “Além disso, ainda não conseguimos prever a evolução das lesões, porque a doença existe apenas há seis meses e só chegou a Portugal em março. Não há dados suficientemente robustos para dizermos que x por cento das pessoas ficarão assim e outras ficarão assado”.
O pneumologista Filipe Froes concorda: “Neste momento, não temos ainda o retrato completo, estamos a construir o puzzle e temos só algumas peças. Falta experiência suficiente, de uma forma integrada, para termos um retrato mais fidedigno das sequelas destes doentes.” Ainda assim, segundo o especialista, é possível catalogar as lesões em físicas, cognitivas e psicológicas, estando perante algo que não é exclusivo da infeção provocada pelo novo coronavírus e que responde pelo nome de síndrome pós-internamento em cuidados intensivos.
Dos pulmões para o resto do corpo
Uma das razões pelas quais a Covid-19 apresenta tanta diversidade de sintomas e lesões prende-se com o modo como o vírus entra no organismo. O SARS-Cov-2 liga-se às chamadas proteínas ACE-2, envolvidas no processo de regulação da pressão arterial e existentes à superfície das células. Apesar de serem abundantes nos pulmões, estas proteínas revestem as paredes de muitos órgãos, nomeadamente o pâncreas onde estão as células que produzem insulina, os rins, o fígado ou o intestino delgado, tornando-os vulneráveis à infeção. “O facto de um órgão ter o recetor ACE-2 não significa necessariamente que será afetado, era preciso que o vírus circulasse muito no sangue, o que não acontece, e que o sistema imunitário fosse incapaz de controlá-lo nos pulmões”, refere o especialista em doenças infeciosas Tiago Marques.
Margarida Tavares defende que, “embora o sistema respiratório seja e continue a ser o local privilegiado da infeção e da patologia Covid-19, sabemos que podemos ter algumas complicações cardíacas, de foro cardiovascular”. No caso de Paula Lopes, a trombose na perna esquerda levou-a ao bloco para a colocação de uma rede na veia cava inferior, a fim de se evitar que o coágulo subisse para os pulmões. “Quem está sedado e muito tempo parado pode ter estas complicações”, explica Paula. No entanto, vários estudos em todo o mundo têm apontado para uma formação anormal de coágulos no sangue, provocada pelo novo coronavírus. “Têm-se verificado fenómenos tromboembólicos que podem afetar o sistema cardiovascular, ou até mesmo o sistema nervoso central dos doentes, resultantes de um estado em que a coagulação está aumentada e que parecem realmente ter origem numa hipercoagulabilidade provocada pela Covid-19”, afirma Margarida Tavares.
Ficar com fibroses nos pulmões foi a primeira sequela a preocupar doentes e especialistas, mas recentemente o foco tem apontado também para os danos neurológicos. Apesar de, nas suas formas mais agudas, parecerem ainda eventos raros e reservados a casos graves, têm-se multiplicado os estudos que se debruçam sobre eles.
Uma análise da Universidade de Liverpool, publicada na revista Lancet Psychiatry, debruçou-se sobre 125 casos graves de Covid-19, de pessoas internadas em hospitais do Reino Unido, verificando que 77 doentes tiveram um acidente vascular cerebral (AVC) causado por coágulos no sangue, hemorragia ou inflamação dos vasos sanguíneos. Trinta e nove apresentavam ainda sinais de confusão e de alterações de comportamento e de humor.
Outro estudo, publicado na revista Brain, e levado a cabo pelo Queen Square do Instituto de Neurologia, do Colégio Universitário de Londres, mostrou que, num universo de 43 doentes, 30 tinham sido afetados ao nível do sistema nervoso central, desenvolvendo estados confusionais agudos, encefalites e AVC isquémicos, consequentes da hipercoagulabilidade presente nos vasos sanguíneos; e sete apresentavam alterações ao nível do sistema nervoso periférico, nomeadamente síndrome de Guillain-Barré, uma fraqueza muscular de aparecimento súbito, causada pelo ataque do sistema imunitário ao sistema nervoso periférico. Ainda assim, a maioria dos pacientes observados demonstrou uma recuperação quase total, salvo raras exceções.
Um terceiro estudo, liderado por um investigador de Albacete, em Espanha, e publicado na revista médica Neurology, analisou 841 pacientes hospitalizados com Covid-19, chegando à conclusão de que 57,4% desenvolveram algum tipo de sintoma neurológico, de mialgia a dores de cabeça, mas também tonturas e alterações do olfato e do paladar, ou mesmo AVC e encefalites, nos casos mais graves.
“Não é a banal pessoa, destas que agora estão a aparecer muito, com poucos sintomas ou assintomáticas, que vai ter este tipo de lesões”, sublinha José Ferro, diretor do Serviço de Neurologia do Hospital de Santa Maria, explicando que estas sequelas não são específicas da Covid-19. “A ação inflamatória infeciosa de qualquer vírus pode provocar uma disfunção geral no cérebro que, geralmente, é transitória. O risco de AVC é maior nos doentes que têm Covid-19, mas, apesar de tudo, na experiência que tenho em Santa Maria, é uma raridade; tivemos no máximo dois casos”, refere o médico.
Danos prolongados Marco Correia, um informático de 42 anos que negativou o vírus a 11 de maio e que nunca foi internado, conta que ainda tem “cãibras nos gémeos e espasmos nos dedos, além de dores nos pulmões e falta de ar”
Danos neurológicos e psiquiátricos
“Quando se fala de neurologia da Covid-19, fala-se de muita coisa ao mesmo tempo. Uma coisa é o delírio dos cuidados intensivos, outra coisa é ter uma encefalite pós-infeciosa”, afirma o especialista Tiago Marques. Delírio é uma palavra que pode assustar, mas, devido aos medicamentos dados aos pacientes em coma induzido, é natural que possa surgir. O enfermeiro Luís Dias, 51 anos, internado a 4 de abril no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, após a polícia ter arrombado a janela do seu quarto para o encontrar já com as extremidades roxas e em hiperventilação, conta que teve muitos pesadelos nos 32 dias que passou em coma. “Sonhei que estava numa cadeira de rodas no Hospital Egas Moniz, na sala dos médicos, e que passava dias e noites sem ninguém me mexer.”
Paula Lopes também teve “pesadelos horrorosos”. “Também não me consigo lembrar de absolutamente nada do que se passou na semana antes de ir parar ao hospital.” Já António Faustino não tem qualquer memória do dia do internamento nem dos oito dias que esteve em coma. “Estas pessoas vêm muito abaladas, é natural que se verifiquem lesões cognitivas ao nível de perturbações do sono, alterações do ciclo diurno/noturno, alterações da memória e ansiedade”, refere Filipe Froes.
Quanto às sequelas neurológicas que parecem afetar a maioria dos pacientes vítimas de uma forma leve da doença, estas prendem-se com a alteração do olfato e do paladar, cãibras e dores na região cervical, torácica e dorsolombar, que se fazem sentir durante muito tempo além do dia em que o teste dá finalmente negativo. Marco Correia, um informático de 42 anos que negativou o vírus a 11 de maio e que nunca foi internado, conta que ainda tem “cãibras nos gémeos e espasmos nos dedos, além de dores nos pulmões e falta de ar”.
Resposta autoimune
No início de junho, um grupo internacional de cientistas escreveu uma carta aberta ao editor do New England Journal of Medicine, alertando para uma possível ligação entre o novo coronavírus e o aparecimento de diabetes tipo 1. Os autores da carta apontam para a concentração da proteína ACE-2, à qual o vírus se liga, nas células pancreáticas beta, responsáveis pela produção de insulina, e revelam-se preocupados com o facto de este poder danificá-las ao ponto de alterar todo o controlo da quantidade de açúcar que está a circular no sangue
“Linearmente falando é uma coisa muito rara. Sabemos que pode acontecer com qualquer vírus, porque é uma questão relacionada com a ativação imunológica quando há infeção viral, mas o que parece acontecer nesses casos não é a infeção direta das células beta pancreáticas, mas antes a destruição imunológica”, afirma Tiago Marques. O especialista explica que, apesar de o corpo humano funcionar muito bem, não é perfeito e, por vezes, quando os vírus se camuflam, imitando as proteínas de superfície das células, os anticorpos dirigidos para os matar acabam por provocar danos colaterais. “Matam células nos órgãos infetados como nos órgãos não infetados, é uma resposta autoimune.”
Ainda é cedo para falar de sequelas para a vida. Os especialistas são unânimes em afirmar que mesmo as diversas lesões observadas podem não depender inteiramente da Covid-19. “Nesta fase, temos de apostar no melhor programa de reabilitação possível para minimizarmos o risco de qualquer perda funcional e investir muito na recuperação física, psíquica e mental destes doentes, precisamente para limitarmos eventuais sequelas que possam persistir”, afirma Filipe Froes.
Pesadelo
O enfermeiro Luís Dias foi internado após a polícia ter arrombado a janela do seu quarto para o encontrar já com as extremidades roxas e em hiperventilação. Passou 32 dias em coma
Paula Lopes continua a fazer fisioterapia três vezes por semana e, apesar das dores no ombro e do cansaço que a impede de realizar tarefas como aspirar a casa, acredita que conseguirá recuperar na totalidade. Para António Faustino, o cenário é diferente: os médicos já lhe explicaram que a recuperação será muito lenta e dificilmente será total. “Eu não sinto melhoras nenhumas. Se existirem, são mínimas e impercetíveis.” Já Luís Dias, apesar de ter saído dos cuidados intensivos com as pernas da largura dos punhos, recuperou o peso, não tem dificuldades em respirar e teve alta da fisioterapia. Será um caminho longo, percorrido ao ritmo natural do corpo humano e da Ciência e feito em conjunto com o resto do mundo.
Sequelas
Apesar de ser cedo para se falar em sequelas definitivas, há algumas lesões que têm sido observadas
Fibrose pulmonar
Em alguns doentes, a destruição dos alvéolos pulmonares e dos vasos sanguíneos pode dar origem à sua substituição por fibroses (cicatrizes), que dificultam o transporte de oxigénio para o sangue.
Lesões neurológicas
Nos casos mais raros e graves, as lesões vão de encefalopatias causadoras de estados de confusão, delírios e alterações de humor a AVC isquémicos. Nos restantes doentes, tem sido registado cansaço extremo, dificuldade de concentração, alterações de sono, de olfato e do paladar, dores de cabeça e perda de memória.
Diabetes tipo 1
Muitos especialistas acreditam que a resposta do sistema imunológico à infeção por SARS-Cov-2 pode afetar as células beta pancreáticas, responsáveis pela produção de insulina, dando origem ao aparecimento da diabetes (Visão, texto da jornalista MARIANA ALMEIDA NOGUEIRA)

Sem comentários: