Mesmo exilado em Madrid há cerca de
seis anos, o advogado e político venezuelano acorda todos os dias a pensar no
seu país. Sem esperança numas eleições livres, defende que é necessária ‘uma
nova orientação e condução política’ na Venezuela.
De forma breve, para quem não o conhece
em Portugal, o que marcou o seu percurso na política venezuelana?
Comecei a dedicar-me à política desde
que era praticamente um adolescente. Vivia numa povoação provinciana da
Venezuela. Fui estimulado pela minha incursão em atividades complementares à
escola. Ali, despertou-se em mim uma preocupação pelos temas sociais e humanos,
quando ainda era praticamente uma criança, tinha 12 ou 13 anos de idade. E,
desde então, tenho abraçado a atividade política com uma grande paixão. Tanto é
assim que se tornou uma maneira de ser,
de desenvolver o meu pensamento crítico, a minha imaginação, desde os 13 anos
até agora, aos 67 anos de idade, ou seja, de maneira ininterrupta.
Como é ser um exilado político a viver
em Espanha, tão longe da Venezuela?
Muito doloroso, porque não deixa de sentir-se a falta da terra em que nascemos. Então, é uma luta, é uma luta diária entre a nostalgia, a melancolia, as lembranças que vou evocando e a realidade com a qual nos confrontamos, como exilados. É por isso que temos de tentar conciliar esses dois sentimentos. O desejo de voltar e a realidade que nos diz que temos que procurar sobreviver longe da pátria que nos pariu.
A partir de Madrid, onde vive, como
define a relação atual do Governo espanhol de Pedro Sánchez com a Venezuela?
É uma relação ambígua, porque o Governo
de Espanha desde o início faz o papel de dobradiça. Por um lado, mantém
relações com o regime de Nicolás Maduro e, por outro lado, fez algumas
concessões ao chamado governo interino que Juan Guaidó presidiu. É uma relação
de uma grande ambivalência que, naturalmente, não permite que se assumam
posições definidas em relação ao que já não é um governo, mas uma ditadura. Não
se trata de apoiar a oposição, mas sim de apoiar a luta pela democracia, porque o que se está a viver na Venezuela é
uma luta entre o bem e o mal.
Acredita que a posição do Governo de
Sánchez também é toldada pelas coligações e os acordos que o PSOE tem feito à
esquerda?
Não há dúvida de que a política externa
do Governo de Sánchez para com a Venezuela tem uma marca que se depreende desse
tipo de acordos de natureza nacional em Espanha e que se repercute sobre os
venezuelanos. Tendo ainda a certeza de que, por exemplo, o Podemos tem alguma
ligação com o regime chavista-madurista.
O que pensa sobre o governo interino a
que presidiu Juan Guaidó até ao passado mês de janeiro?
Foi uma grande ilusão que acabou a ser
causa de grandes frustrações. É por isso que, agora, importa perguntar o que
aconteceu, quais foram os erros que foram cometidos e ter essa experiência do
governo interino como uma lição para que não voltemos a repetir os erros
cometidos.
O que acha que levou a oposição
venezuelana a demitir o governo interino de Guaidó?
Esse grupo, mais conhecido como G4,
onde estão os partidos Acción Democrática, Primero Justicia, Voluntad Popular e
Un Nuevo Tiempo, desde o início que não tinha nenhuma intenção de apoiar o
governo interino. Na agenda deles não estava como prioridade libertar a
Venezuela, mas sim consolidar projetos pessoais. E isso foi totalmente
prejudicial.
Ainda assim, como é possível que mais
de 60 países tenham reconhecido Guaidó como Presidente interino da Venezuela e
ele agora tenha desaparecido? O mundo cansou-se de esperar por uma mudança
política?
O mundo não se pode cansar, porque quem
se cansa perde. Quem se cansa acaba a deixar o caminho livre aos que querem
defender os capítulos do populismo, da demagogia, da corrupção, do comunismo. O
governo de Guaidó conseguiu vários feitos. O primeiro foi chamar as pessoas
para as ruas, foi uma maneira de ressuscitar o espírito dos venezuelanos que
estava muito esmorecido. Em segundo lugar, como recordou, conseguiu um apoio
internacional inédito. Mais de 60 Governos do mundo livre reconheceram-no como
Presidente interino. Estamos a falar de grandes potências mundiais, como os
Estados Unidos, a Alemanha, França, Inglaterra, Canadá, etc. Em terceiro lugar,
conseguiu abrir um novo capítulo no chamado Grupo de Lima, que se dedica
exclusivamente à situação da Venezuela. Em quarto lugar, foi possível proteger
alguns bens da república. O ouro que está na Inglaterra, os ativos muito
valiosos que estão nos bancos portugueses, a empresa Citgo, que é património da
Venezuela e que está localizada nos Estados Unidos, bens que foram apreendidos a
pessoas ou grupos que incorreram em atos de corrupção, etc. Tudo isso foi uma
base muito importante. Mas, infelizmente, tudo isso está de novo em risco com estas piruetas, com estas
manobras, dos dirigentes que quiseram colocar uma camisa de forças a Guaidó,
para manejá-lo, para manipulá-lo, para controlá-lo, e evitar a concretização
daquilo que era o seu objetivo.
Acha possível que Guaidó volte no
futuro a ser Presidente ou a liderar a oposição?
Acredito que na política não há
desaparecidos ou mortos. Tudo é possível na luta política. Quanto ao governo
interino, pelas decisões tomadas pelo G4, creio que esse é um capítulo
encerrado.
Quais foram as conquistas e também os
erros da oposição nos últimos quatro anos?
No que diz respeito a conquistas, uma
delas, como já tinha referido, foi a mobilização dos venezuelanos em torno de
um objetivo comum. Isso foi uma conquista importante. Conseguiram reunir o
apoio de muitas pessoas. Outro aspeto importante foi o facto de terem
conseguido expor numa vitrine aos olhos do mundo a forma como o poder foi
alcançado. A tragédia venezuelana tornou-se internacional. Já os erros, penso
que foram o partidarismo, a maneira sectária como o governo provisório foi
manipulado. Foi um erro a falta de transparência e a falta de decisões que
evitassem suspeitas de atos de corrupção. Foi um erro a incoerência revelada
quando se mudava de estratégia de um dia para o outro, quando se falava de
lutar contra a tirania num dia e depois se participava em eleições regionais.
Foi um erro a maneira como o diálogo foi conduzido. Um diálogo é para encontrar
uma saída, para descobrir como avançar e não retroceder.
O que deveria ser feito para fortalecer
a oposição venezuelana?
A primeira coisa seria uma nova
orientação, porque, se continuarmos a depender dos mesmos personagens, vamos
continuar a ter os mesmos resultados. Por exemplo, temos um autocarro e o
motorista está envolvido em várias tragédias, vários acidentes, não respeita as
placas de trânsito e segue a rota que mais lhe convém. Isso conduz-nos a um
estado de debilidade e se não mudarmos o motorista vamos acabar num abismo. Por
isso, é importante uma nova orientação e condução política. Depois, é
necessário definir uma estratégia e a estratégia deve ter um ponto de partida
que é a premissa da caraterização do regime. Contra o que estamos a lutar?
Estamos a lutar contra um governo? Não, de modo algum isto é um governo.
Estamos a lutar contra uma ditadura convencional? Não, não é uma ditadura
convencional. Então, o que é? É uma corporação criminosa, à qual se pode
aplicar a Convenção de Palermo, à qual se estão a aplicar sanções por
envolvimento em atos de narcotráfico, em terrorismo, em crimes contra a
humanidade. Creio que é indispensável uma grande aliança entre os venezuelanos
que estão nas ruas pelo mundo e os que estão a lutar a partir de dentro. Tem
que haver uma unidade sólida, porque tanto os que estão a sobreviver na
Venezuela como os que estão, como eu, desterrados, podem contribuir para sair
desta tirania. Nessa aliança devem também estar militares e polícias que são
leais aos valores e princípios democráticos. Devem estar, por exemplo, os
sindicatos e os professores que neste momento estão a liderar as grandes
manifestações na Venezuela. Não se deve excluir a possibilidade de que estas
grandes mobilizações que estão a ser feitas desde 9 de janeiro deste ano possam
conduzir a uma grande urgência nacional.
Voltaria a participar num movimento de
libertação da Venezuela do governo de Nicolás Maduro?
Esse é um direito irrenunciável. Estou no
exílio, mas o meu coração e o meu pensamento estão todos os dias na Venezuela.
E vai querer ter algo a dizer quando
for altura de escolher o candidato da oposição nas próximas eleições
presidenciais?
Não, não vou participar nesse processo
porque acredito que essas eleições são como uma quimera. É uma ilusão pensar
que este regime tirano vai facilitar eleições livres, quando é um regime que
controla todas as instituições públicas. Apenas permitirão pôr em ação não uma
eleição, mas sim um simulacro. E o que se pretende é usar expedientes
democráticos para que de boa fé as pessoas acreditem que é possível fazer
escolhas.
Ou seja, não acredita de todo que haja
eleições livres em 2024?
Neste momento, não vejo nada no
horizonte que me faça pensar que o regime de Maduro tem incentivos para
facilitar uma escolha livre e soberana.
O que seria necessário para cimentar um
futuro democrático na Venezuela?
Em primeiro lugar, tem de haver uma
reconfiguração da chamada resistência, ou seja, da oposição. O único que tira
proveito da anarquia é a ditadura. Como diz aquela máxima: ‘Divide e vencerás’.
Tem de haver uma liderança composta por mulheres e homens absolutamente e
unicamente dispostos a libertar a Venezuela. Só depois é que se pode começar a
pensar nas diferenças e a desenvolver ambições pessoais.
Qual tem sido o papel das Forças
Armadas no regime chavista-madurista? É necessária uma mudança nas Forças
Armadas para se conquistar a democracia na Venezuela?
As Forças Armadas foram capturadas pelo
regime, com base numa metodologia que faz parte do know-how do castrismo. Um
dos objetivos desta ditadura é provocar uma ruptura nas Forças Armadas
nacionais. Não podemos falar de umas Forças Armadas institucionais. As elites
protocolares, as elites que dirigem as Forças Armadas, foram tomadas pela
ditadura da Venezuela. E, por isso, essas Forças Armadas não são mais que uma
guarda pretoriana, primeiro de Chávez e agora de Maduro. Estas Forças Armadas
foram inoculadas com o veneno da corrupção. Os militares estão envolvidos em
atos de corrupção, participaram no contrabando de gasolina quando havia
gasolina, no contrabando de alimentos e em todo tipo de operações, incluindo no
narcotráfico. Portanto, estas Forças Armadas não são nada mais que um bastão de
comando de Maduro. Sim, há reservas morais nas Forças Armadas e oficiais dignos
que se mostraram reticentes em continuar a tolerar semelhante decomposição e a
prova de que há militares descontentes é o facto de que a Venezuela é
atualmente um dos países do mundo com o maior número de militares que são
presos políticos.
E um golpe precisa de militares, não?
Mais do que a falar sobre um golpe,
estamos a falar de uma elite corrompida que continua a atacar a Constituição da
Venezuela. O que pretendemos é que os militares restabeleçam o Estado de
Direito e que virem costas a este regime que tem cometido todo o tipo de
delitos.
A Venezuela já foi um grande produtor
de petróleo. Mas com a má gestão e corrupção, a indústria petrolífera do país
colapsou constantemente, provocando consequências económicas e uma crise
humanitária. Esta decadência foi acelerada sob a administração de Trump, que
aplicou sanções radicais numa tentativa
de pressionar e finalmente expulsar Maduro. Mas com Biden e as sanções do
Ocidente à Rússia, Washington retomou as negociações com a Venezuela. O que
acha que deve ser feito com os recursos venezuelanos?
Neste momento, a Venezuela, por
exemplo, não tem capacidade para tirar partido do aumento dos preços do petróleo,
por uma razão, a nossa indústria está a produzir escassos barris de petróleo. A
maior parte vai para Cuba. Outros estão agora a ser utilizados para pagar parte
das dívidas que o regime da Venezuela tem pendentes com empresas
internacionais. Quando Hugo Chávez chegou ao poder, produziamos mais de 3
milhões de barris por dia. E hoje, o que se sabe é que produzimos pouco mais de
600 mil barris por dia. É um número insignificante. E tudo isso é consequência
da corrupção. Converteram a PDVSA numa empresa ao serviço do regime. Chávez
despediu mais de 20 mil trabalhadores petrolíferos da Venezuela e modificou a
lei da exploração dos hidrocarbonetos.
Chávez e Maduro viraram as costas aos acordos internacionais que tinha
assinado em nome da república no âmbito de parcerias estratégicas, o que
resultou na queda da indústria petrolífera da Venezuela, que era uma das
maiores do mundo desde que se fundou a empresa estatal conhecida como PDVSA.
Estamos em sétimo lugar no mundo como um país com reservas de gás. Mas todos
estes recursos naturais não se vão poder comercializar se não sairmos desta
ditadura. Temos recursos naturais em abundância, mas também temos uma ditadura
que é uma muralha, que nos impede de avançar na proteção desses recursos e no
quadro da transição energética, porque a Venezuela também é um país
comprometido com o acordo de Paris, que estabelece uma série de mecanismos para
continuar a avançar no caminho da transição energética. É necessária uma nova
lei para a exploração de hidrocarbonetos, é necessário que haja na Venezuela
uma agência nacional para a exploração de hidrocarbonetos que substitua a
PDVSA, é necessário retomar planos de conversão profunda, é necessária a
reabilitação das refinarias que estão na Venezuela. E, claro, resolver o problema
de uma das nossas empresas internacionais como a Citgo.
É justificável que os Estados Unidos e,
por exemplo, Espanha retomem o diálogo com o governo de Maduro devido à
conjuntura de guerra?
Bem, está claro que Maduro é um aliado
de Putin. Como o é também do regime chinês e dos iranianos. Além disso, nem
sequer o dissimula. Nem sequer o esconde. Demonstra-o em manifestações públicas
e isso coloca Maduro como parte dessa aliança internacional. Por outro lado,
temos o tema do diálogo. O diálogo não é uma coisa nova na Venezuela. Já
entramos em mais de uma dúzia de diálogos. Isto mais parece uma história que
nunca vai acabar, porque tanto Chávez como Maduro usam o diálogo para ganhar
tempo. Esse é o chamariz que os atores internacionais continuam a validar quando
vão dialogar com uma corporação criminosa, com um regime mafioso que tem
atividades de narcotráfico, de terrorismo, de corrupção. A essa gente não há
diálogo que valha.
Existe o risco de que as recentes
negociações entre Washington e a Venezuela sejam frágeis, uma vez que Maduro
está interessado num alívio das sanções, mas não está disposto a perder
significativamente o poder?
Até agora, Nicolás Maduro conseguiu tudo o que pediu. Pediu que o seu sobrinho, que estava a ser processado nos Estados Unidos por tráfico de drogas, fosse libertado. Pediu que começassem a levantar as sanções. Pediu que o reconhecessem como presidente legítimo da Venezuela no diálogo do México. Concederam-lhe tudo o que pediu, mas do seu lado não se comprometeu com nada. Continuamos a ter na Venezuela presos políticos. Fala-se de uma eleição, mas é uma eleição no meio de uma tirania que controla as instituições como, por exemplo, o poder judicial. Estão agora a aprovar no Parlamento, também controlado por Maduro, uma lei para boicotar o funcionamento das organizações não-governamentais. Maduro mantém também a oposição inativa em muitos níveis. Mantém cadernos eleitorais que não são nada confiáveis e que deveriam ser atualizados. Há cerca de 9 milhões de eleitores que estão atualmente no limbo, que não sabem se vão ou não poder votar. Desses 9 milhões com direito a votar, 4 milhões estão no exílio, na diáspora. Os restantes 5 milhões são venezuelanos que estão dentro do país mas que foram migrantes no seu próprio país. Há muitas pessoas que viviam em Caracas que agora estão no sul. Essas migrações não foram formalizadas, e portanto também não foram atualizados os registos nos cadernos eleitorais. Depois, há ainda muitos novos votantes. Estamos a falar de 9 milhões de eleitores. Isto é quase 40% do eleitorado (Jornal i, texto da jornalista JOANA MOURÃO CARVALHO)
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