sexta-feira, fevereiro 17, 2023

Venezuela: "O Governo interino de Guaidó foi uma grande ilusão"

 

Mesmo exilado em Madrid há cerca de seis anos, o advogado e político venezuelano acorda todos os dias a pensar no seu país. Sem esperança numas eleições livres, defende que é necessária ‘uma nova orientação e condução política’ na Venezuela.

De forma breve, para quem não o conhece em Portugal, o que marcou o seu percurso na política venezuelana?

Comecei a dedicar-me à política desde que era praticamente um adolescente. Vivia numa povoação provinciana da Venezuela. Fui estimulado pela minha incursão em atividades complementares à escola. Ali, despertou-se em mim uma preocupação pelos temas sociais e humanos, quando ainda era praticamente uma criança, tinha 12 ou 13 anos de idade. E, desde então, tenho abraçado a atividade política com uma grande paixão. Tanto é assim  que se tornou uma maneira de ser, de desenvolver o meu pensamento crítico, a minha imaginação, desde os 13 anos até agora, aos 67 anos de idade, ou seja, de maneira ininterrupta.

Como é ser um exilado político a viver em Espanha, tão longe da Venezuela?

Muito doloroso, porque não deixa de sentir-se a falta da terra em que nascemos. Então, é uma luta, é uma luta diária entre a nostalgia, a melancolia, as lembranças que vou evocando e a realidade com a qual nos confrontamos, como exilados. É por isso que temos de tentar conciliar esses dois sentimentos. O desejo de voltar e a realidade que nos diz que temos que procurar sobreviver longe da pátria que nos pariu.

A partir de Madrid, onde vive, como define a relação atual do Governo espanhol de Pedro Sánchez com a Venezuela?

É uma relação ambígua, porque o Governo de Espanha desde o início faz o papel de dobradiça. Por um lado, mantém relações com o regime de Nicolás Maduro e, por outro lado, fez algumas concessões ao chamado governo interino que Juan Guaidó presidiu. É uma relação de uma grande ambivalência que, naturalmente, não permite que se assumam posições definidas em relação ao que já não é um governo, mas uma ditadura. Não se trata de apoiar a oposição, mas sim de apoiar a luta pela democracia,  porque o que se está a viver na Venezuela é uma luta entre o bem e o mal.

Acredita que a posição do Governo de Sánchez também é toldada pelas coligações e os acordos que o PSOE tem feito à esquerda?

Não há dúvida de que a política externa do Governo de Sánchez para com a Venezuela tem uma marca que se depreende desse tipo de acordos de natureza nacional em Espanha e que se repercute sobre os venezuelanos. Tendo ainda a certeza de que, por exemplo, o Podemos tem alguma ligação com o regime chavista-madurista.

O que pensa sobre o governo interino a que presidiu Juan Guaidó até ao passado mês de janeiro?

Foi uma grande ilusão que acabou a ser causa de grandes frustrações. É por isso que, agora, importa perguntar o que aconteceu, quais foram os erros que foram cometidos e ter essa experiência do governo interino como uma lição para que não voltemos a repetir os erros cometidos.

O que acha que levou a oposição venezuelana a demitir o governo interino de Guaidó?

Esse grupo, mais conhecido como G4, onde estão os partidos Acción Democrática, Primero Justicia, Voluntad Popular e Un Nuevo Tiempo, desde o início que não tinha nenhuma intenção de apoiar o governo interino. Na agenda deles não estava como prioridade libertar a Venezuela, mas sim consolidar projetos pessoais. E isso foi totalmente prejudicial.

Ainda assim, como é possível que mais de 60 países tenham reconhecido Guaidó como Presidente interino da Venezuela e ele agora tenha desaparecido? O mundo cansou-se de esperar por uma mudança política?

O mundo não se pode cansar, porque quem se cansa perde. Quem se cansa acaba a deixar o caminho livre aos que querem defender os capítulos do populismo, da demagogia, da corrupção, do comunismo. O governo de Guaidó conseguiu vários feitos. O primeiro foi chamar as pessoas para as ruas, foi uma maneira de ressuscitar o espírito dos venezuelanos que estava muito esmorecido. Em segundo lugar, como recordou, conseguiu um apoio internacional inédito. Mais de 60 Governos do mundo livre reconheceram-no como Presidente interino. Estamos a falar de grandes potências mundiais, como os Estados Unidos, a Alemanha, França, Inglaterra, Canadá, etc. Em terceiro lugar, conseguiu abrir um novo capítulo no chamado Grupo de Lima, que se dedica exclusivamente à situação da Venezuela. Em quarto lugar, foi possível proteger alguns bens da república. O ouro que está na Inglaterra, os ativos muito valiosos que estão nos bancos portugueses, a empresa Citgo, que é património da Venezuela e que está localizada nos Estados Unidos, bens que foram apreendidos a pessoas ou grupos que incorreram em atos de corrupção, etc. Tudo isso foi uma base muito importante. Mas, infelizmente, tudo isso está de novo  em risco com estas piruetas, com estas manobras, dos dirigentes que quiseram colocar uma camisa de forças a Guaidó, para manejá-lo, para manipulá-lo, para controlá-lo, e evitar a concretização daquilo que era o seu objetivo.

Acha possível que Guaidó volte no futuro a ser Presidente ou a liderar a oposição?

Acredito que na política não há desaparecidos ou mortos. Tudo é possível na luta política. Quanto ao governo interino, pelas decisões tomadas pelo G4, creio que esse é um capítulo encerrado.

Quais foram as conquistas e também os erros da oposição nos últimos quatro anos?

No que diz respeito a conquistas, uma delas, como já tinha referido, foi a mobilização dos venezuelanos em torno de um objetivo comum. Isso foi uma conquista importante. Conseguiram reunir o apoio de muitas pessoas. Outro aspeto importante foi o facto de terem conseguido expor numa vitrine aos olhos do mundo a forma como o poder foi alcançado. A tragédia venezuelana tornou-se internacional. Já os erros, penso que foram o partidarismo, a maneira sectária como o governo provisório foi manipulado. Foi um erro a falta de transparência e a falta de decisões que evitassem suspeitas de atos de corrupção. Foi um erro a incoerência revelada quando se mudava de estratégia de um dia para o outro, quando se falava de lutar contra a tirania num dia e depois se participava em eleições regionais. Foi um erro a maneira como o diálogo foi conduzido. Um diálogo é para encontrar uma saída, para descobrir como avançar e não retroceder.

O que deveria ser feito para fortalecer a oposição venezuelana?

A primeira coisa seria uma nova orientação, porque, se continuarmos a depender dos mesmos personagens, vamos continuar a ter os mesmos resultados. Por exemplo, temos um autocarro e o motorista está envolvido em várias tragédias, vários acidentes, não respeita as placas de trânsito e segue a rota que mais lhe convém. Isso conduz-nos a um estado de debilidade e se não mudarmos o motorista vamos acabar num abismo. Por isso, é importante uma nova orientação e condução política. Depois, é necessário definir uma estratégia e a estratégia deve ter um ponto de partida que é a premissa da caraterização do regime. Contra o que estamos a lutar? Estamos a lutar contra um governo? Não, de modo algum isto é um governo. Estamos a lutar contra uma ditadura convencional? Não, não é uma ditadura convencional. Então, o que é? É uma corporação criminosa, à qual se pode aplicar a Convenção de Palermo, à qual se estão a aplicar sanções por envolvimento em atos de narcotráfico, em terrorismo, em crimes contra a humanidade. Creio que é indispensável uma grande aliança entre os venezuelanos que estão nas ruas pelo mundo e os que estão a lutar a partir de dentro. Tem que haver uma unidade sólida, porque tanto os que estão a sobreviver na Venezuela como os que estão, como eu, desterrados, podem contribuir para sair desta tirania. Nessa aliança devem também estar militares e polícias que são leais aos valores e princípios democráticos. Devem estar, por exemplo, os sindicatos e os professores que neste momento estão a liderar as grandes manifestações na Venezuela. Não se deve excluir a possibilidade de que estas grandes mobilizações que estão a ser feitas desde 9 de janeiro deste ano possam conduzir a uma grande urgência nacional.

Voltaria a participar num movimento de libertação da Venezuela do governo de Nicolás Maduro?

Esse é um direito irrenunciável. Estou no exílio, mas o meu coração e o meu pensamento estão todos os dias na Venezuela.

E vai querer ter algo a dizer quando for altura de escolher o candidato da oposição nas próximas eleições presidenciais?

Não, não vou participar nesse processo porque acredito que essas eleições são como uma quimera. É uma ilusão pensar que este regime tirano vai facilitar eleições livres, quando é um regime que controla todas as instituições públicas. Apenas permitirão pôr em ação não uma eleição, mas sim um simulacro. E o que se pretende é usar expedientes democráticos para que de boa fé as pessoas acreditem que é possível fazer escolhas.

Ou seja, não acredita de todo que haja eleições livres em 2024?

Neste momento, não vejo nada no horizonte que me faça pensar que o regime de Maduro tem incentivos para facilitar uma escolha livre e soberana.

O que seria necessário para cimentar um futuro democrático na Venezuela?

Em primeiro lugar, tem de haver uma reconfiguração da chamada resistência, ou seja, da oposição. O único que tira proveito da anarquia é a ditadura. Como diz aquela máxima: ‘Divide e vencerás’. Tem de haver uma liderança composta por mulheres e homens absolutamente e unicamente dispostos a libertar a Venezuela. Só depois é que se pode começar a pensar nas diferenças e a desenvolver ambições pessoais.

Qual tem sido o papel das Forças Armadas no regime chavista-madurista? É necessária uma mudança nas Forças Armadas para se conquistar a democracia na Venezuela?

As Forças Armadas foram capturadas pelo regime, com base numa metodologia que faz parte do know-how do castrismo. Um dos objetivos desta ditadura é provocar uma ruptura nas Forças Armadas nacionais. Não podemos falar de umas Forças Armadas institucionais. As elites protocolares, as elites que dirigem as Forças Armadas, foram tomadas pela ditadura da Venezuela. E, por isso, essas Forças Armadas não são mais que uma guarda pretoriana, primeiro de Chávez e agora de Maduro. Estas Forças Armadas foram inoculadas com o veneno da corrupção. Os militares estão envolvidos em atos de corrupção, participaram no contrabando de gasolina quando havia gasolina, no contrabando de alimentos e em todo tipo de operações, incluindo no narcotráfico. Portanto, estas Forças Armadas não são nada mais que um bastão de comando de Maduro. Sim, há reservas morais nas Forças Armadas e oficiais dignos que se mostraram reticentes em continuar a tolerar semelhante decomposição e a prova de que há militares descontentes é o facto de que a Venezuela é atualmente um dos países do mundo com o maior número de militares que são presos políticos.

E um golpe precisa de militares, não?

Mais do que a falar sobre um golpe, estamos a falar de uma elite corrompida que continua a atacar a Constituição da Venezuela. O que pretendemos é que os militares restabeleçam o Estado de Direito e que virem costas a este regime que tem cometido todo o tipo de delitos.

A Venezuela já foi um grande produtor de petróleo. Mas com a má gestão e corrupção, a indústria petrolífera do país colapsou constantemente, provocando consequências económicas e uma crise humanitária. Esta decadência foi acelerada sob a administração de Trump, que aplicou sanções radicais  numa tentativa de pressionar e finalmente expulsar Maduro. Mas com Biden e as sanções do Ocidente à Rússia, Washington retomou as negociações com a Venezuela. O que acha que deve ser feito com os recursos venezuelanos?

Neste momento, a Venezuela, por exemplo, não tem capacidade para tirar partido do aumento dos preços do petróleo, por uma razão, a nossa indústria está a produzir escassos barris de petróleo. A maior parte vai para Cuba. Outros estão agora a ser utilizados para pagar parte das dívidas que o regime da Venezuela tem pendentes com empresas internacionais. Quando Hugo Chávez chegou ao poder, produziamos mais de 3 milhões de barris por dia. E hoje, o que se sabe é que produzimos pouco mais de 600 mil barris por dia. É um número insignificante. E tudo isso é consequência da corrupção. Converteram a PDVSA numa empresa ao serviço do regime. Chávez despediu mais de 20 mil trabalhadores petrolíferos da Venezuela e modificou a lei da exploração dos hidrocarbonetos.  Chávez e Maduro viraram as costas aos acordos internacionais que tinha assinado em nome da república no âmbito de parcerias estratégicas, o que resultou na queda da indústria petrolífera da Venezuela, que era uma das maiores do mundo desde que se fundou a empresa estatal conhecida como PDVSA. Estamos em sétimo lugar no mundo como um país com reservas de gás. Mas todos estes recursos naturais não se vão poder comercializar se não sairmos desta ditadura. Temos recursos naturais em abundância, mas também temos uma ditadura que é uma muralha, que nos impede de avançar na proteção desses recursos e no quadro da transição energética, porque a Venezuela também é um país comprometido com o acordo de Paris, que estabelece uma série de mecanismos para continuar a avançar no caminho da transição energética. É necessária uma nova lei para a exploração de hidrocarbonetos, é necessário que haja na Venezuela uma agência nacional para a exploração de hidrocarbonetos que substitua a PDVSA, é necessário retomar planos de conversão profunda, é necessária a reabilitação das refinarias que estão na Venezuela. E, claro, resolver o problema de uma das nossas empresas internacionais como a Citgo.

É justificável que os Estados Unidos e, por exemplo, Espanha retomem o diálogo com o governo de Maduro devido à conjuntura de guerra?

Bem, está claro que Maduro é um aliado de Putin. Como o é também do regime chinês e dos iranianos. Além disso, nem sequer o dissimula. Nem sequer o esconde. Demonstra-o em manifestações públicas e isso coloca Maduro como parte dessa aliança internacional. Por outro lado, temos o tema do diálogo. O diálogo não é uma coisa nova na Venezuela. Já entramos em mais de uma dúzia de diálogos. Isto mais parece uma história que nunca vai acabar, porque tanto Chávez como Maduro usam o diálogo para ganhar tempo. Esse é o chamariz que os atores internacionais continuam a validar quando vão dialogar com uma corporação criminosa, com um regime mafioso que tem atividades de narcotráfico, de terrorismo, de corrupção. A essa gente não há diálogo que valha.

Existe o risco de que as recentes negociações entre Washington e a Venezuela sejam frágeis, uma vez que Maduro está interessado num alívio das sanções, mas não está disposto a perder significativamente o poder?

Até agora, Nicolás Maduro conseguiu tudo o que pediu. Pediu que o seu sobrinho, que estava a ser processado nos Estados Unidos por tráfico de drogas, fosse libertado. Pediu que começassem a levantar as sanções. Pediu que o reconhecessem como presidente legítimo da Venezuela no diálogo do México. Concederam-lhe tudo o que pediu, mas do seu lado não se comprometeu com nada. Continuamos a ter na Venezuela presos políticos. Fala-se de uma eleição, mas é uma eleição no meio de uma tirania que controla as instituições como, por exemplo, o poder judicial. Estão agora a aprovar no Parlamento, também controlado por Maduro, uma lei para boicotar o funcionamento das organizações não-governamentais. Maduro mantém também a oposição inativa em muitos níveis. Mantém cadernos eleitorais que não são nada confiáveis e que deveriam ser atualizados. Há cerca de 9 milhões de eleitores que estão atualmente no limbo, que não sabem se vão ou não poder votar. Desses 9 milhões com direito a votar, 4 milhões estão no exílio, na diáspora. Os restantes 5 milhões são venezuelanos que estão dentro do país mas que foram migrantes no seu próprio país. Há muitas pessoas que viviam em Caracas que agora estão no sul. Essas migrações não foram formalizadas, e portanto também não foram atualizados os registos nos cadernos eleitorais. Depois, há ainda muitos novos votantes. Estamos a falar de 9 milhões de eleitores. Isto é quase 40% do eleitorado (Jornal i, texto da jornalista JOANA MOURÃO CARVALHO)

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