sexta-feira, fevereiro 24, 2023

Guerra na Ucrânia vai deixar marcas permanentes na economia da Europa

 

Um ano depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, o choque sobre a inflação e o crescimento não levou a uma recessão severa na UE. Mas, perda de rendimentos reais, maior conflitualidade social, a aumento do protecionismo e da despesa militar são marcas para o futuro. Foi em plena recuperação da crise pandémica que a invasão da Ucrânia pela Rússia, a 24 de fevereiro de 2022, apanhou a economia europeia. O impacto sobre a inflação e o crescimento foi (quase) imediato: a escalada dos preços atingiu níveis inéditos na história do euro e a expansão do Produto Interno Bruto (PIB) foi abrandando até quase estagnar. O conflito tornou a Europa — Portugal incluído — mais pobre. Ainda assim, um ano depois, os receios de uma recessão severa não se concretizaram e os economistas esperam um regresso à normalidade no crescimento e na inflação. Mas avisam de que há marcas que vão ficar para o futuro, como a perda de rendimentos reais, maior conflitualidade social e aumento do protecionismo e da despesa militar. O aumento dos preços da energia, sobretudo do gás natural, foi um dos efeitos da guerra com maior impacto na economia da União Europeia (UE). Como quase todos os países da UE são importadores de energia, houve “um enorme aumento nos custos de produção, que inflacionou os preços e diminuiu a produção e consumo”, frisa Ricardo Reis, professor da London School of Economics. A que se somou o aumento no preço de bens agrícolas e alguns minérios. “Ambos os efeitos causam uma recessão, sobem a inflação e tornam-nos mais pobres”, vinca o economista.

“A subida da inflação e o impacto adverso sobre o crescimento resultaram do impacto que a guerra e as sanções sobre a Rússia tiveram no fornecimento de bens agrícolas, alimentares e energéticos, e adicionaram-se no início à disrupção nas cadeias de abastecimento mundiais em resultado da pandemia”, afirma, por sua vez, Miguel St. Aubyn, professor do ISEG e membro do Conselho das Finanças Públicas.

Qual a dimensão desse impacto? O economista Abel Mateus compara as projeções da Comissão Europeia feitas no outono de 2021 — antes da guerra — e no outono de 2022, notando que “se somarmos as diferenças para 2022, 2023 e 2024, verificamos que o PIB na UE teve um corte de 4 pontos percentuais e a inflação uma subida de 13,2 pontos percentuais”. Já para Portugal “o impacto no PIB foi bastante menor (menos 0,9 pontos percentuais), mas o impacto na inflação foi semelhante (mais 12,7 pontos percentuais)”.

Sendo certo o choque negativo, “o impacto económico é muito maior e pior na Rússia”, segundo Ricardo Reis, afirmando que para a UE “seria sempre uma recessão normal, ou ligeira, e não uma crise como em 2020, 2011 ou 2008”. Aliás, os dados mostram um forte abrandamento da economia europeia — a que Portugal não escapou —, mas evitando uma contração. E a inflação já está a descer.

Nesta evolução, Ricardo Reis considera “extraordinária” a adaptação da indústria europeia (sobretudo no Centro da Europa) para usar outras fontes de energia que não o gás. No caso da Alemanha, por exemplo, a redução na utilização de gás foi de entre um terço e 50%. Ao mesmo tempo, houve “capacidade dos mercados de produzirem mais energia (por exemplo, petróleo) num curto prazo, respondendo ao aumento dos preços”, nota.

“Algumas expectativas mais pessimistas não se materializaram, nomeadamente no que respeita à escassez energética”, salienta Miguel St. Aubyn, antecipando que “pela própria natureza do fenómeno, em conjunção com as respostas de política económica, se assistirá ao retorno a uma normalidade de inflação baixa”.

MARCAS PARA O FUTURO

Mantendo-se a guerra no estado ­atual, “não adivinho mais impactos significativos negativos sobre a nossa economia”, afirma Ricardo Reis. Contudo, para Miguel St. Aubyn “as consequências económicas em Portugal e na Europa da invasão da Ucrânia pela Rússia são profundas”, sublinhando “marcas permanentes”. A começar pela “perda de rendimentos reais de todos os que não viram os seus ganhos nominais aumentar na mesma proporção dos preços”, e, em sentido contrário, “os ganhos daqueles que viram as suas receitas aumentar acima dos custos”, levando a “uma acrescida conflitualidade social em torno da repartição do rendimento”. O reconhecimento de que “a inflação baixa é um ganho económico e social de grande importância” é outra marca que, para o economista, fica para o futuro.

Ao mesmo tempo, a guerra na Ucrânia trouxe “a confirmação de que ao fim da Guerra Fria nos anos 90 do século passado não se seguiria qualquer ‘fim da história’, com um mundo globalizado, liberal e sempre mais próspero, caracterizado por trocas económicas de vantagem mútua e um ambiente pacífico de que todos tiram partido”, alerta Miguel St. Aubyn. Para a Europa, esta guerra, “com a potência invasora armada com armas nucleares, tem consequências económicas estruturais e de longo prazo que vão bem para além dos efeitos sobre a inflação ou sobre o menor crescimento do PIB em 2023”.

Quais? Em primeiro lugar, “funcionamento da economia cada vez mais enquadrado numa lógica de ‘zonas de influência’, com recrudescimento de fissuras protecionistas”, considera Miguel St. Aubyn. Segundo, maior peso das despesas com a defesa e as indústrias a ela associadas. E, terceiro, “redirecionamento das políticas energética e industrial, tendendo a assegurar maior autonomia e menor dependência de espaços geopolíticos”. Abel Mateus destaca “a alteração profunda da geopolítica e o início da desagregação da globalização a favor da tríade internacional”. E remata: “As economias não podem apenas confiar nas vantagens comparativas do velho David Ricardo, mas têm que tomar em linha de conta a dimensão da segurança. Por exemplo, as cadeias de produção globais e vem ser revistas para reduzir o risco geopolítico.” (Expresso, texto da jornalista Sónia M. Lourenço)

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