sexta-feira, fevereiro 17, 2023

Primeira-ministra da Escócia demite-se. “Só muito recentemente comecei a compreender o impacto físico e mental que isto tem em mim”

Nicola Sturgeon anuncia a partida de forma inesperada. Chefia o governo regional e o partido independentista SNP desde 2014 e pretendia fazer das próximas eleições regionais um plebiscito de autodeterminação, depois de o Supremo Tribunal britânico a ter proibido de convocar novo referendo. Nicola Sturgeon vai abandonar a chefia do Governo regional da Escócia e do Partido Nacional Escocês (SNP). A decisão inesperada foi anunciada numa conferência de imprensa, esta quarta-feira, em Edimburgo. Declarando-se orgulhosa do trabalho feito, a dirigente considera que parte da boa governação é “saber quase instintivamente quando sair”. E afirma que sabe agora, “na cabeça e no coração”, que é o melhor para o SNP e a Escócia. Ficará em funções até à eleição de um sucessor, afirmou.

Aos que fiquem “chocados, desapontados ou até zangados” consigo pela demissão, pede compreensão. “Esta decisão não é uma reação a pressões de curto prazo”, afirma, referindo-se a polémicas recentes. Essas, garante, todos os governos enfrentam. E diz que há semanas que se debatia com esta questão.

“Tenho tido de me esforçar mais nos últimos tempos”, reconhece, para se convencer de que é capaz de continuar no cargo por mais anos. “Cheguei à conclusão de que não.” Alegando que os mais de oito anos no poder propiciaram que se criassem ideias “fixas e difíceis de mudar” sobre si, admite: “Acho que só muito recentemente comecei a compreender, já nem digo a processar, o impacto físico e mental que isto tem em mim.”

“Não espero violinos”, assegurou, negando estar a querer jogar a cartada emocional. Mas só admite dedicar-se ao trabalho “dando absolutamente tudo”, o que não é sustentável se se prolongar demasiado. “Uma primeira-ministra nunca está fora de serviço, em particular nesta era em que praticamente não há privacidade.” Apela ainda a menor polarização na política escocesa e britânica.

REVESES EM CATADUPA

A saída de Sturgeon, no cargo desde 2014, acontece após reveses como a troca de líder parlamentar na Câmara dos Comuns, uma decisão desfavorável do Supremo Tribunal britânico sobre o poder do governo regional para convocar um referendo sobre a independência e a polémica gerada pelo caso de um violador transgénero condenado a cumprir pena numa prisão de mulheres.

Nascida em 1970 em Irvine, perto de Glasgow, Sturgeon é formada em Direito. Entrou para a política escocesa como deputada regional, em 1999. Integrou o governo autónomo de Alex Salmond, então líder do SNP, tendo ocupado as pastas da Saúde e Bem-Estar (2008-12) e Infraestruturas, Investimento e Cidades (2012-14, período em que foi também vice-primeira-ministra da Escócia).

Quando os escoceses rejeitaram a independência no referendo de 2014, Salmond demitiu-se e Sturgeon era a sucessora natural. Foi a primeira mulher a chefiar o governo de um dos países constituintes do Reino Unido. Veio a vencer eleições em 2016 e 2021.

Salmond, entretanto, saiu do SNP em desavença com Sturgeon e fundou o partido Alba, também independentista. Em causa esteve um processo por abuso sexual, de que o ex-primeiro-ministro escocês viria a ser absolvido, e no qual acredita ter havido mão da sucessora para prejudicá-lo.

Há menos de um mês, Sturgeon afirmara à BBC que a sua saída “não estava nada perto”. Empenhada em conseguir uma segunda consulta popular de autodeterminação, argumentava que a saída do Reino Unido da União Europeia — decidida num referendo, em 2016, por 52%-48%, mas em que 62% dos escoceses votaram pela permanência — era uma alteração de monta que justificava voltar ap perguntar-lhes se queriam continuar ligados a Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte.

EM BUSCA DO PLEBISCITO

No entanto, uma decisão recente do Supremo Tribunal britânico decretou que Edimburgo só pode convocar referendos com autorização do Governo do Reino Unido. Ora, os primeiros-ministros britânicos desde a saída da UE, todos conservadores (Theresa May, Boris Johnson, Liz Truss e o atual, Rishi Sunak) são todos contra nova votação.

Sturgeon sai do cargo sem eleições nacionais nem regionais marcadas para breve, o que sugere que quer dar tempo a quem lhe suceda para se afirmar junto do eleitorado. As legislativas britânicas devem acontecer no final de 2024 e as regionais escocesas em maio de 2026. Nas últimas sondagens o SNP surge com 44 a 46% das intenções de voto, bem frente de trabalhistas (26-27%), conservadores (17%), liberais (7%) e verdes (2%).

Quando o Supremo lhe travou a intenção de convocar novo referendo, Sturgeon afirmou que a decisão do painel de cinco juízes significava que o Reino Unido deixara de ser uma união voluntária de nações, já que a Escócia não podia decidir ficar ou sair.

Recusando-se a ir “de mão estendida” pedir permissão a Sunak, avisou: “Quanto mais desprezo o regime de Westminster mostrar pela democracia escocesa, mais certo é a Escócia votar ‘sim’ na hora da escolha”. Decidiu testar a posição do eleitorado escocês sobre a independência nas próximas eleições. Se mais de 50% preferissem partidos nacionalistas, argumentou então, teriam de ser ouvidos. Além do SNP, as forças independentistas são os Verdes escoceses e o Alba.

Ao anunciar a partida, Sturgeon reafirmou a convicção de que há uma maioria pró-soberania na Escócia. Mas, avisa, esta “precisa de ser consolidada e crescer mais”. Face ao “escândalo democrático” que é negarem-lhe o referendo, deixa à próxima liderança do SNP a escolha de como reagir. “Liberto o SNP para escolher a via que considerar correta.”

CONTROVÉRSIA COM LEI TRANS

A luta mais recente de Sturgeon foi, porém, a favor de uma lei para facilitar o processo de mudança de género a partir dos 16 anos na Escócia. O primeiro-ministro britânico decidiu vetá-la, alegando ser necessário “garantir a segurança de mulheres e crianças”.

O Governo britânico anunciou que iria invocar pela primeira vez o artigo 35.º da Lei da Autonomia escocesa de 1998 para “vetar” a Lei de Reforma do Reconhecimento do Género. Segundo o ministro para a Escócia, Alistair Jack, a legislação escocesa poderia criar dois sistemas de reconhecimento de género diferentes dentro do Reino Unido.

A lei reduzia a idade mínima em que uma pessoa pode requerer um certificado de reconhecimento de género de 18 para 16 anos e a eliminação da necessidade de diagnóstico médico e provas de ter vivido durante dois anos no género adquirido. Jack enumerou como riscos o impacto no funcionamento de clubes, associações e escolas unissexo, e questões como a igualdade de remuneração.

Sturgeon considerou a decisão de Londres um “ataque frontal” à autonomia do Parlamento escocês e prometeu recorrer em tribunal. O caso de uma mulher trans condenada por violação quando tinha identidade masculina e colocada numa prisão de mulheres fragilizou a posição da primeira-ministra escocesa junto da opinião pública.

A ROLETA DA SUCESSÃO

Sturgeon assegura que não interferirá na escolha do próximo chefe do SNP. Na imprensa circulam nomes como John Swinney, o atual vice-primeiro-ministro escocês e figura mais experiente do seu Governo. Já foi líder interino entre mandatos do ex-líder Alex Salmond. Outro putativo candidato é Angus Robertson, que foi líder parlamentar do SNP na Câmara dos Comuns Another e é hoje responsável pela Cultura e Assuntos Externos no executivo regional. É, com Swinney, dos poucos que restam do tempo de Salmond.

Kate Forbes tem a pasta das Finanças e poderia assumir as rédeas do partido, tornando-se a sua mais jovem líder. Fala gaélico, é cristã (ponto que poderá ditar choques entre posições pessoais e as do partido). Já o muçulmano Humza Yousaf, titular da tutela da Saúde, é outro aspirante referido pelos jornais (Expresso, texto do jornalista Pedro Cordeiro)

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