A avaliação foi feita por um historiador português a pedido do então ministro da Cultura. Pedro Adão e Silva, hoje na pasta, desconhece a sua existência revelada por parecer novo pedido por Berardo. O historiador de arte e crítico Bernardo Pinto de Almeida realizou para o Ministério da Cultura, há cinco anos, uma avaliação da Colecção Berardo que se manteve desconhecida até hoje, revela um parecer elaborado a pedido da Associação Colecção Berardo a que o PÚBLICO teve acesso.
O novo parecer foi pedido no início deste ano ao professor da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto pelo advogado André Luiz Gomes, considerado o braço-direito jurídico do empresário José Berardo, e foi entregue, segundo o jurista, a 17 de Fevereiro no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. O documento está integrado num requerimento pedindo a revogação da acção de arresto judicial que em Julho de 2019 visou a colecção de arte moderna e contemporânea do empresário depositada no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, desde 2006.
Segundo os termos do arresto decidido pelos tribunais, o CCB é o fiel depositário da colecção e o Ministério da Cultura deverá assegurar a sua fruição pública enquanto a colecção se mantiver nesta situação judicial. No final do ano, o actual ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, decidiu denunciar o acordo de comodato assinado com Berardo em 2006, o que teve como consequência mais imediata a extinção do Museu Colecção Berardo, embora a colecção continue exposta ao público em Belém. Assim, neste momento, a colecção encontra-se num limbo legal até a sua propriedade ser decidida pelos tribunais.
O novo parecer assinado por Bernardo Pinto de Almeida debruça-se, entre outras coisas, sobre o valor da Colecção Berardo e chega a números semelhantes aos encontrados pela recente avaliação, revelada em Outubro e pedida por Berardo, realizada pelo galerista e coleccionador norte-americano Gary Nader – 1,454 mil milhões de euros para o núcleo principal de 862 obras –, confirmou ao PÚBLICO Bernardo Pinto de Almeida.
A avaliação de Bernardo Pinto de Almeida foi feita peça a peça e, para os grandes artistas internacionais, como Picasso, Mondrian, Duchamp, Magritte, Bacon, Warhol, entre outros, com base nos valores médios alcançados por outras obras desses autores nos leilões da Sotheby’s e Christie’s ao longo dos últimos dez anos, contou o historiador de arte sobre o trabalho de 2018. “Fiz uma avaliação que me deu imenso trabalho, porque eram entre 800 e mil peças. Confirmei que era uma colecção excepcional e apresentei um valor que julgo que orçava, se bem me lembro, entre mil milhões e 1,5 mil milhões.”
A soma a que chegou a avaliação norte-americana nas mãos da defesa de Berardo ultrapassa os 962 milhões de euros das dívidas do empresário à Caixa Geral de Depósitos, ao BCP e ao Novo Banco e, segundo os advogados de Berardo têm argumentado, excede em mais de 400 milhões o valor do penhor à data da sua constituição. Ou seja, no requerimento entregue há uma semana, pedem novamente ao tribunal que o arresto não prossiga, o que já tinham feito quando as conclusões da avaliação do galerista norte-americano foram divulgadas em Outubro.
Bernardo Pinto de Almeida não conservou cópia do relatório entregue em 2018 ao Ministério da Cultura (MC), mas acrescenta que o “relatório” foi “apresentado reservadamente” a Castro Mendes e “se encontra hoje arquivado no MC”.
Actual ministro desconhece
O historiador de arte Bernardo Pinto de Almeida – que integrou a administração da Fundação Colecção Berardo, de 2006 a 2010, em representação do Estado português, cargo que ocupou a convite da então ministra da Cultura Isabel Pires de Lima – escreve no novo parecer, datado de 7 de Fevereiro: “O presente Parecer, elaborado a pedido da Associação Colecção Berardo, pretende ajudar a esclarecer e a actualizar, com base em novos dados entretanto surgidos, um anterior documento de avaliação, que elaborei a pedido do Exmo Senhor Dr. Luís Filipe Castro Mendes, Digníssimo Ministro da Cultura, e em que procurei não apenas avaliar a Colecção Berardo com critérios razoáveis à data em que foi entregue (Abril/Maio 2018), como devidamente explicar ao distinto Governante a necessidade de manter a Colecção na sua unidade programática, patrimonial e cultural.”
“É verdade”, confirmou Luís Filipe Castro Mendes numa curta conversa com o PÚBLICO, quando lhe pedimos para confirmar a existência dessa avaliação pedida em 2018, embora o antigo ministro não se recorde do valor financeiro atribuído à Colecção Berardo há cinco anos que o historiador afirma ter também entregue. “Não me lembro dos valores”, acrescentando que é incapaz de memorizar números.
“Achei que seria útil ter um elemento para eventuais acções futuras. Interessava-me ter uma avaliação em que confiássemos para poder contrariar as avaliações de Berardo e fazer novos cálculos.” Nessa altura, recorda, “os bancos ainda não tinham avançado para a execução” da dívida, o que só ocorreria no ano seguinte, mas já tinham anunciado em 2017 que iriam dar ordem de penhora à Colecção Berardo.
Um ano antes, em 2016, Castro Mendes tinha negociado a revisão do acordo de comodato. Na nova versão do documento, o Estado deixou de ter a opção de comprar a colecção por 316 milhões de euros, alteração que causou polémica na altura.
O historiador de arte Fernando António Baptista Pereira, que na altura era adjunto de Castro Mendes com o pelouro dos museus, recorda-se de Pinto de Almeida ter entregue a avaliação em mãos, mas também não consegue confirmar o valor total. “O que estava em causa era estabelecer o que não poderia absolutamente ser vendido, sob pena de desfigurar a colecção, e aquilo que efectivamente se poderia autorizar que fosse alienado. Não tenho memória do preço total da colecção, porque não era isso que estava em causa”, diz o actual presidente da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, lembrando que o ministro foi substituído em Outubro de 2018 pela ministra Graça Fonseca, antecessora do actual titular da Cultura, e que as negociações para que a avaliação foi pedida, que tentavam evitar a venda da colecção e a sua eventual saída do país, nunca chegaram a acontecer no tempo de Castro Mendes. “As negociações dependiam principalmente dos bancos e do empresário.”
O gabinete de Pedro Adão e Silva, numa resposta por email, diz que o actual ministro da Cultura “desconhece a existência de uma avaliação da Colecção Berardo datada de 2018” e não conseguiu localizar essa documentação a que o PÚBLICO pediu para ter acesso.
“O processo que inclui toda a documentação relativa ao dossier Berardo (José Berardo, Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Colecção Berardo e Associação Colecção Berardo) está na posse da Polícia Judiciária desde 29 de Junho de 2021, na sequência de uma operação de recolha de provas realizada no Ministério da Cultura no dia em que José Berardo foi detido por suspeita de burla, fraude fiscal e branqueamento de capitais” a propósito dos créditos obtidos junto da CGD, adianta o MC, acrescentando que, por esse motivo, não pode garantir a existência de qualquer documento com data anterior a esta busca judicial.
Segundo o gabinete, o que está acessível actualmente no MC é uma cópia de uma carta de três páginas onde Bernardo Pinto de Almeida dá um parecer sobre as obras que poderiam ser dispensadas da Colecção Berardo. O historiador de arte explicou ao PÚBLICO que essa carta é um dos anexos do trabalho realizado.
Do sigilo à revelação
O parecer de 13 páginas de Bernardo Pinto de Almeida lembra que, em 2019, em declarações ao jornal Correio da Manhã, reproduzidas na altura por outros órgãos de comunicação, o historiador já tinha revelado, sem referir a peritagem já realizada que entendeu dever manter reservada, que a totalidade da colecção já avaliada em 2009 pelo mesmo Gary Nader em 571 milhões, a pedido do empresário, poderia valer “talvez o dobro”.
A única avaliação já tornada pública pelo MC foi a realizada, em 2006, pela Christie’s, e estabelece um valor de 316 milhões para a colecção, aceite por Berardo, com base no qual foi assinado o acordo de comodato com o Estado em 2016. Seria esse o valor pelo qual, durante uma década, o Estado poderia ter adquirido a colecção.
Na conclusão do parecer, pode ler-se, a propósito da avaliação de 1,454 mil milhões de Gary Nader: “É assim meu Parecer técnico, em face de todo [SIC] o que para trás ficou exposto, que esta avaliação que já está próxima da que realizei em 2018 por encargo de sua Excelência o Ministro da Cultura, deverá ser considerada.”
“Mas é igualmente meu entendimento profissional”, acrescenta, “que [n]uma sua eventual venda em conjunto, associada ao nome prestigiado que [a colecção] tem internacionalmente – o que poderá ser facilmente comprovado –, o seu valor poderia superar, em 50 a 80%, e sem especulação, esse número tal como, se vendida em condições mais especulativas, i.e., peça a peça ou em conjunto em grandes leiloeiras internacionais e devidamente publicitada, mais do que poderia duplicar o mesmo e acima referido valor”.
Bernardo Pinto de Almeida não pensou mais no assunto até ter sido chamado a tribunal no processo interposto pelos bancos. Não consegue precisar a data, mas terá sido depois do início da pandemia, talvez nos finais de 2019. Interrogado em tribunal, o historiador de arte afirma que falou nessa altura da avaliação pedida pelo MC. A partir daí, deixou de se sentir obrigado ao sigilo que lhe tinha sido pedido pelo ministro e por isso aceitou fazer este parecer para os advogados de Berardo agora revelado.
Nova avaliação?
Adelaide Duarte, especialista em mercado da arte, considera o intervalo de mil milhões a 1,454 mil milhões para o valor da colecção “francamente inflacionado”. Em 2016, numa avaliação que fez juntamente com o coleccionador Francisco Capelo, que esteve na origem da Colecção Berardo, e com a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, cujas conclusões foram publicadas pela revista Sábado, chegou a números semelhantes aos propostos pela leiloeira dez anos antes.
Adelaide Duarte, coordenadora de uma pós-graduação em mercado da arte e coleccionismo da Universidade Nova de Lisboa, acredita que, actualmente, uma revisão da avaliação encontraria números superiores, porque as “obras-troféu” dos artistas mais importantes se valorizaram muito nos leilões nos últimos anos.
Até receber o parecer do historiador de arte, o advogado André Luiz Gomes também nunca tinha ouvido falar desta avaliação, que chama a atenção para o facto de Gary Nader ser um dos avaliadores aceite pelos bancos, como escreve a equipa de advogados num requerimento ao tribunal apresentado no ano passado: “Fiquei perplexo por saber que o Governo português tinha encomendado uma avaliação ao prestigiado professor de história de arte da Universidade do Porto e que o resultado da mesma não tenha sido divulgado publicamente ou pelo menos partilhada com o seu parceiro na constituição do museu de arte moderna de Lisboa Associação Colecção Berardo.”
O autor do novo parecer pergunta porque é que há tanto secretismo em volta das avaliações, interrogando-se também por que razão a avaliação de Gary Nader nas mãos de Berardo não foi divulgada na íntegra, incluindo valores peça a peça. Os advogados pedem no requerimento ao tribunal que o valor de cada peça seja tratado “confidencialmente” evocando preocupações de segurança com as obras mais valiosas.
Segundo Adelaide Duarte, deverá ser feita uma avaliação por entidades profissionais como a Sotheby’s, a Christie’s ou mesmo a Phillips. “Peça-se a duas leiloeiras e compare-se; como sabem que há concorrência vão tentar ser o mais rigorosas possível para mostrar credibilidade ao cliente. É evidente que isto é dispendioso, mas quem quer apurar o valor e a propriedade tem que investir. É fundamental apurar se o valor da colecção consegue cobrir o valor da dívida" (Publico, texto da jornalista Isabel Salema)
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