sexta-feira, fevereiro 24, 2023

Paraísos fiscais custam €500 mil milhões em impostos por ano, e regulamentação da União Europeia e OCDE "não é suficiente"

Mais quatro nomes na “lista negra”. Na semana passada, o Conselho Europeu acrescentou quatro países à lista de jurisdições que não colaboram com a União Europeia em assuntos fiscais: Ilhas Virgens Britânicas, Costa Rica, Ilhas Marshall e Rússia. A decisão foi tomada por Maria José Garde, economista espanhola que este mês assumiu a liderança do “grupo do Código de Conduta”, responsável pela elaboração da lista. A iniciativa não tem consequências práticas: o objetivo de Bruxelas, lê-se na página do Conselho Europeu, “não é envergonhar os países” visados, mas sim “encorajar melhorias nas suas legislações fiscais” através de cooperação com a UE. Antes de assumir o novo cargo, Maria José Garde foi diretora-geral dos Impostos em Espanha. Durante a sua alçada, em 2020, a transferência de dinheiro por parte de grandes empresas para paraísos fiscais disparou 131%. Mais de 40% dos lucros das principais companhias espanholas acabaram em contas abertas em territórios como as Bermudas e as Ilhas Virgem Britânicas, segundo o estudo “Missing Profits of Nations”, da Universidade de Berkeley e do National Bureau of Economic Research (NBER), publicado este ano. Os paraísos fiscais são associados a duas atividades: lavar dinheiro proveniente de crimes como o tráfico de armas ou de seres humanos; e evitar impostos. À partida, esta última finalidade não é ilegal: a arte de reduzir o esforço fiscal tem sido continuamente aperfeiçoada por milionários e empresas multinacionais nas últimas décadas, e investigações como os Panamá Papers (2016), Paradise Papers (2017) ou Pandora Papers (2021) mostraram como é uma arte obscura e complexa.

A Europol estima que mais de 10% do PIB mundial esteja em contas offshore — qualquer coisa como 7,5 biliões de euros. Por ano, o mundo perde mais de 480 mil milhões de euros em impostos não tributados a empresas multinacionais, estima a Tax Justice Network (TJN), uma organização não governamental. “Os paraísos fiscais têm impactos negativos sobre a justiça fiscal e a aceitação dos sistemas fiscais nacionais”, sublinha Mário Marques, especialista em finanças e fiscalidade na Faculdade de Economia do Porto. E lembra isto: os países pobres são mais afetados por este fenómeno em termos relativos, quando comparados com países desenvolvidos.

Desde a década de 90 que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) tem imposto regras para limitar os paraísos fiscais, mas também tem sido criticada pela fragilidade da regulamentação: por exemplo, a implementação de troca de informações entre países de forma voluntária e não obrigatória. “Infelizmente, a OCDE tem um fraco compromisso com a transparência”, diz ao Expresso Mark Bou Mansour, diretor de comunicação da TJN, falando num “clube de países ricos”.

O argumento de que a OCDE está a regulamentar em causa própria é atendível. Dos 30 países com menos transparência financeira a nível mundial, 18 fazem parte da organização. Só a rede montada pelo Reino Unido através de territórios da Commonwealth — sobretudo as Ilhas Caimão — é responsável por um terço das perdas fiscais a nível mundial. No total, os 36 principais bancos europeus guardam mais de 20 mil milhões de euros dos seus lucros em paraísos fiscais: se esse valor fosse taxado a 15%, seriam 3 mil milhões de euros em impostos, estima o observatório fiscal da UE.

SINAIS DE MUDANÇA

Há propostas em cima da mesa, incluindo exigir a multinacionais que tornem públicos os relatórios de todos os países onde operam, em vez de disponibilizarem a informação apenas às autoridades tributárias. Empresas como a Vodafone já levam a cabo essa prática de forma voluntária, por exemplo. A evidência científica diz que esta medida é eficaz a diminuir a transferência de lucros para offshores: se fosse aplicada, em 2021 ter-se-ia traduzido em cerca de 83 mil milhões em impostos, estima a TJN.

“Estas iniciativas têm impacto, mas não são suficientes”, aponta Mário Marques. “Por isso é que tem ganho expressão a ideia de haver uma taxa de imposto mínima global para as multinacionais”, acrescenta. As Nações Unidas já deram o primeiro passo: a 23 de novembro, aprovaram o início das negociações para a criação de um imposto internacional comum sobre grandes empresas, dando voz a todos os 193 países. O texto foi votado favoravelmente por unanimidade e a TJN considerou a decisão “histórica”. Há outros sinais idênticos. No ano passado, a Austrália tornou-se o primeiro país do mundo a exigir às suas multinacionais a publicação total dos seus relatórios, afastando-se dos regulamentos menos exigentes da OCDE. Por ano, o país perde cerca de 5 mil milhões em impostos para países fiscais.

“Muito continua por fazer quanto à riqueza offshore”, disse José António Campo, ministro das Finanças da Colômbia, em janeiro. O governante escolheu o Fórum de Davos para anunciar isto: a primeira conferência entre países da América Latina para debater e propor regras fiscais comuns. O encontro terá lugar na cidade colombiana de Cartagena, em julho. “Cada vez mais pessoas estão a perceber que os abusos fiscais levados a cabo pelas grandes empresas são maus para a sociedade, para os negócios, e para o planeta. Os governos vão ter mais dificuldades para justificar o porquê de estarem a seguir a abordagem cega da OCDE”, garante Mark Bou Mansour.

No início do ano, o deputado britânico Nadhim Zahawi foi demitido do Governo por falta de transparência nas suas declarações fiscais. “É óbvio que houve uma violação do código de conduta ministerial”, justificou Rishi Sunak, primeiro-ministro. Uma sondagem feita pela empresa YouGov para a organização “Common Sense” mostra que 87% a 95% dos cidadãos são a favor de mais restrições contra os paraísos fiscais, até para ajudar na recuperação da pandemia. O trabalho foi feito em 2021: foram entrevistadas mais de 14 mil pessoas nos Estados Unidos, França, Itália, Alemanha, Países Baixos e Reino Unido — alguns dos países que mais utilizam e beneficiam de offshores.

A pressão da opinião pública está a aumentar, corrobora Mário Marques. “Está a ganhar expressão um movimento institucional e político voltado para a cooperação fiscal internacional por razões de justiça.” Acabar com os paraísos fiscais num futuro próximo seria o “cenário ideal”, acrescenta Vasco Valdez, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais em governos do PSD. “É preciso vontade política global para isso acontecer.” (Expresso, texto dos jornalista Tiago Soares e Carlos Esteves)

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