segunda-feira, novembro 27, 2023

Operação Lawrence, investigação do Expresso: A aventura do banqueiro Ricardo Salgado no país do coronel Kadhafi (1)

Apoderou-se da gestão do único banco líbio exclusivamente privado, o Aman Bank. Corrompeu o governador do banco central. Criou uma brigada de operacionais que remunerou através do ‘saco azul’. Teceu uma teia de influências que se estendeu a políticos e diplomatas portugueses nos Governos de Sócrates e de Passos Coelho. Lavou e expatriou a fortuna de Kadhafi. Contornou sanções internacionais e lucrou com os dois lados da guerra. Uma investigação do Expresso, da SIC e do “Setenta e Quatro” com base na agenda de Ricardo Salgado. Na viragem do milénio, o ‘reabilitado’ Mouammar Kadhafi converteu-se no astro mais luminoso da galáxia geopolítica mundial. A Líbia, até então uma nação pária sob sequestro internacional, emergiu do deserto como uma espécie de novo eldorado petrolífero para as democracias ocidentais. Portugal posicionou-se na linha da frente na corrida ao ouro negro líbio.

Em menos de cinco anos, entre outubro de 2005 e setembro de 2010, José Sócrates visitou a Líbia quatro vezes. E até deixou que Kadhafi armasse a sua tenda de campanha no forte de São Julião da Barra, durante a segunda cimeira União Europeia-África, que decorreu em Lisboa, em dezembro de 2007. Enquanto os media e a opinião pública se entretinham com as extravagâncias do líder magrebino, o Governo português tratava de “lançar a rede” aos fundos de investimento, ao gás natural e ao petróleo líbios. Já Ricardo Salgado ficou com uma cifra a ressoar nos ouvidos: 180 mil milhões de dólares. O valor dos fundos soberanos que a Líbia prometia despender entre 2008 e 2010.

Ricardo Salgado não perdeu tempo e soltou os seus “batedores” de confiança no terreno. A 11, 12 e 18 de dezembro de 2008, o banqueiro recebeu no seu gabinete Alexandre Barreto, referenciado no processo-crime Universo Espírito Santo como “uma espécie de ministro dos Negócios Estrangeiros” ao serviço do presidente do BES.

O “diplomata” do banqueiro trazia notícias do Norte de África, recolhidas através do seu “colega e amigo” Fernando Costa Freire. O antigo conselheiro diplomático de Durão Barroso, e funcionário da ONU nos governos de Cavaco Silva, contou que tinha “um contacto no fundo soberano da Líbia que poderia ter interesse como potencial investidor no GES”, revelou Alexandre Barreto ao Expresso.

Desde 11 de dezembro de 2008, Costa Freire aparece referenciado 68 vezes na agenda de Ricardo Salgado. E logo na primeira oportunidade, o antigo conselheiro de Durão Barroso terá posto em cima da secretária do banqueiro uma “toupeira” capaz de escavar o túnel dos dinheiros líbios: Farhat Bengdara, à data governador do Banco Central da Líbia e atual presidente da poderosa Libyan National Oil Corporation.

Farhat Bengdara terá incentivado o banqueiro português a protagonizar a missão supostamente impossível de adquirir um banco na Líbia, contornando os apertados crivos protecionistas da legislação nacional, que o próprio regulava. Na mira, o Aman Bank. Neste negócio, Bengdara desempenhou o duplo papel de “regulador” e de conselheiro de Ricardo Salgado, avençado pelo BES “a título extraorçamental”.

Estava montado um esquema de corrupção que o Expresso pôde desmontar através da leitura de diversos documentos inéditos. Na ata da Comissão Executiva do BES, de 16 de maio de 2012, está inscrita uma verba de 300 mil euros anuais, “acrescidos de despesas de representação e com possibilidade de pagamento de prémios de desempenho adicionais”, a pagar à Noor Consultancy JTL. Um veículo offshore com sede no Dubai que se propunha prestar ao BES “aconselhamentos com autoridades financeiras e instituições públicas”. Único beneficiário da empresa: Farhat Bengdara.

Noutra ata do Banco Espírito Santo, com data de 5 de fevereiro de 2013, foi aprovada uma “proposta de intenção de gastos relativa aos valores a pagar em 2013, em virtude dos contratos estabelecidos na sequência da aquisição da participação no Aman Bank, aos senhores Dr. Fernando Costa Freire, Dr. Adel Dajani e Dr. Farhat Bengdara”. A Comissão Executiva do BES autorizou o “pagamento das respetivas faturas até ao montante global, para o total do ano, de €875.000”.

UM BANQUEIRO DAS ARÁBIAS

Farhat Bengdara, Adel Dajani e Fernando Costa Freire formaram o tridente com o qual Ricardo Salgado arpoou a questão líbia. Enquanto Bengdara, à frente do banco central, tratou de aligeirar processos, Dajani e Freire foram os “sapadores” que no terreno fecharam o cerco ao principal acionista do Aman Bank, Mokhtar Eshili.

Num relatório sobre os resultados de uma reunião ocorrida em Túnis, a 29 de junho de 2009, Costa Freire e Dajani informaram Ricardo Salgado que Eshili “estava visivelmente nervoso” devido à “pressão muito forte da nossa parte para ceder o controlo do banco, incluindo o controlo acionista”. O banqueiro líbio ameaçou “interromper as negociações”, uma vez que o Aman Bank “era o seu projeto pessoal” e não se mostrava “disposto a ficar de fora”.

Adel Dajani, financeiro líbio próximo de Fernando Costa Freire, confidenciou-nos em entrevista que naquela altura “houve uma iniciativa do Banco Central da Líbia (...) para atrair bancos estrangeiros (...) e o Aman Bank fez parte desta estratégia”. É aqui que o “trabalho” de Farhat Bengdara se torna relevante. E a escolha do Aman Bank não foi propriamente fruto do acaso. Tratava-se da única instituição financeira líbia com capitais exclusivamente privados. De acordo com o citado relatório redigido por Freire e Dajani, o Aman Bank era um “veículo virtualmente único para alcançar o domínio no mercado líbio”. Era precisamente essa a ambição do presidente do BES

A 14 de julho de 2009, uma embaixada do Aman Bank liderada por Mokhtar Eshili deslocou-se a Lisboa para assinar o memorando de entendimento que concedia a passagem de 40% das ações e a gestão futura do banco líbio para o BES. O negócio, na ordem dos 39,8 milhões de euros, consumou-se a 15 de abril de 2010. Pelo seu envolvimento, Fernando Costa Freire recebeu através do “saco azul”, entre março e junho de 2010, meio milhão de euros na forma de success fee. Livres de impostos.

ESTAVA EM MARCHA O DENOMINADO PROJECT LAWRENCE

Entre maio e agosto de 2010, Ricardo Salgado referenciou quatro vezes na sua agenda o nome de José Sócrates, reuniu duas vezes com Luís Amado e foi almoçar a Belém com Cavaco Silva. O BES tinha de “beneficiar” da agressiva política externa portuguesa em relação à Líbia. E os resultados não se fizeram esperar. Em maio de 2010, segundo o relatório semestral da Autoridade Líbia de Investimentos, Kadhafi investiu 13,5 milhões de dólares em obrigações do Banco Espírito Santo. Uma “ninharia” em relação aos 1300 milhões que a Líbia realizou em remessas na Caixa Geral de Depósitos.

A 1 de setembro, Sócrates estava de regresso à Líbia, naquele que seria o seu quinto e último encontro oficial com Kadhafi. Uma visita que Ricardo Salgado, na sombra, preparou ao detalhe. Conferindo a sua agenda de trabalho, entre 23 e 31 de agosto de 2010, o presidente do BES reuniu com a “linha da frente”: Costa Freire, Adel Dajani, Mokhtar Eshili e Pedro Homem, o quadro de confiança que Salgado designou para a administração do Aman Bank. Objetivo único, influenciar e recolher “benefício” da presença do primeiro-ministro na Líbia, como o comprova a referência inscrita a 26 de agosto na sua agenda: “Papel para o 1º Min Aman Bank. Enviado ao professor Vítor Escária, assessor do 1º Ministro Economia”.

Logo na primeira oportunidade, Costa Freire, antigo conselheiro de Durão Barroso, terá posto em cima da secretária do banqueiro uma “toupeira” capaz de escavar o túnel dos dinheiros líbios. Assessor de José Sócrates para os assuntos económicos entre 2005 e 2011 e figura central das investigações judiciárias que levaram à recente queda do Governo de António Costa, Vítor Escária transmitiu que não tencionava “corresponder positivamente” ao pedido de entrevista que lhe enviámos. Mas o conteúdo do “papel” que o banqueiro lhe confiou é revelado pelos próprios factos. Em 2011. O ano da morte de Mouammar Kadhafi.

O HOMEM DEIXA A SUA REPUTAÇÃO

A 5 de janeiro de 2011, Portugal tomou assento, como membro não-permanente, no Conselho de Segurança das Nações Unidas para o biénio 2011-2012, assumindo a presidência de três dos seus órgãos subsidiários. Entre eles, o Comité de Sanções à Líbia. O embaixador Moraes Cabral, antigo chefe de gabinete de Jorge Sampaio, foi o diplomata escolhido por José Sócrates e Luís Amado para a presidência do Conselho de Segurança, em Nova Iorque. Já para a capital dos Estados Unidos da América, o Governo socialista enviou, quase em simultâneo, o atual embaixador em Londres, Nuno Brito.

Ricardo Salgado manteve-se atento às movimentações da diplomacia portuguesa. E à geopolítica internacional, no seu todo. A “primavera árabe” ainda não tinha chegado à Líbia (a guerra civil estalou em Bengasi a 17 de fevereiro), mas adivinhava-se a cada instante. A 21 de janeiro de 2011, como primeira tarefa do dia, o presidente executivo do BES reuniu com Fernando Costa Freire e com o “embaixador Nuno Brito, futuro em Washington” (apenas tomou posse a 23 de fevereiro). A Líbia de Kadhafi, o posicionamento americano face a um presumível conflito e o futuro do Aman Bank passaram inevitavelmente pela mesa do pequeno-almoço.

Durante os “dias de chumbo” da revolução líbia, Costa Freire foi o mais próximo de entre os mais chegados homens de confiança do banqueiro, como testemunha o diário do presidente do BES. Esteve inclusive presente quando Ricardo Salgado tornou a “chamar Nuno Brito, embaixador nos EUA”, a meio da tarde de 10 de março de 2011, numa altura em que era imperativo preservar o Aman Bank a salvo das sanções internacionais impostas à Líbia.

O embaixador Nuno Brito, que não quis responder às questões que lhe colocámos, estaria no local exato e na altura ideal para interceder a favor da salvaguarda do Aman Bank. Da mesma forma que Allan Katz, o embaixador norte-americano em Lisboa, se encontrava numa posição determinante para a persecução dos interesses do banqueiro quando o mundo ocidental virou as costas a Kadhafi. Entre 21 de julho de 2010 e 15 de janeiro de 2014 constam no diário de Ricardo Salgado pelo menos 15 referências a Katz. Duas delas, 4 e 7 de março de 2011, coincidentes com o período em que “todos” os bancos líbios ficaram sob sequestro das autoridades internacionais. À exceção do Aman Bank.

Ricardo Salgado soube movimentar as suas peças nos diferentes tabuleiros do conflito. Num telefonema intercetado pela Polícia Judiciária, a cujo relatório o Expresso teve acesso, o presidente do BES garantiu ao chairman do Aman Bank, Mokhtar Eshili, que “através do Governo português poderá conseguir neutralizar as sanções das Nações Unidas”, concluindo que “a pessoa que está à frente” do Comité das Sanções à Líbia “era português”. Apesar das várias tentativas de contacto, o embaixador Moraes Cabral, confrontado com o conteúdo desta escuta, acabou por não exercer o contraditório.

QUASE MORTO NO DESERTO

O embaixador Allan Katz também não. Mas de entre o vasto leque de documentos inéditos que possuímos e recorrendo a notas trocadas com jornalistas do “The Wall Street Journal”, é fundado concluir que o diplomata americano destacado em Lisboa terá contactado Ricardo Salgado, solicitando-lhe que os pagamentos aos funcionários da embaixada norte-americana em Trípoli passassem a ser processados através do Aman Bank.

Há uma comunicação de Pedro Homem que ficou em ata da Comissão Executiva do BES, a 1 de junho de 2011, que atesta as estreitas relações entre o banqueiro e o corpo diplomático norte-americano. A Administração americana estendia a mão a Ricardo Salgado, salvando um projeto que, de outra forma, estaria condenado a morrer no deserto. E fazendo do Aman Bank o epicentro de toda a atividade bancária num país cujas finanças e fundos permaneciam ainda encobertos sob o manto de Mouammar Kadhafi, da sua família e dos seus partidários mais chegados.

É neste quadro de instabilidade que o líder líbio, cada vez mais isolado interna e externamente, dá indicações para movimentar verbas para fora do país. Mais de 200 mil milhões de dólares, segundo uma investigação do “Los Angeles Times” publicada em outubro de 2011: “cerca de 30 mil dólares por cada cidadão líbio”, pressupunha então o jornal norte-americano.

Muito desse dinheiro terá passado pelo Aman Bank. Segundo o que o Expresso conseguiu apurar junto de um elemento do SIRP (Sistema de Informações da República Portuguesa), o banco líbio foi, quando estava sob gestão do GES, um dos principais veículos que Kadhafi utilizou para, de forma ilegítima, “extrair” verbas do país, antes dos rebeldes tomarem Trípoli.

Sem reservas nem escrutínio, o Aman Bank “servia” em simultâneo as duas partes do conflito líbio. Ao mesmo tempo que se impunha no terreno como o único veículo bancário para as missões internacionais operarem na Líbia. Na reunião do Conselho de Administração do BES, de 28 de maio de 2011, é deixado em ata que “o estrito cumprimento das normas internacionais (...) levou o grupo a solicitar, e a obter, a aprovação da ONU para a continuação da atividade do Aman Bank na Líbia”. O BES estava “em fase de expansão para a Líbia” e a captar “elevados volumes de recursos locais”, referiu Pedro Homem.

A LUTA CONTINUA

Mouammar Kadhafi não se encontrava em Trípoli quando a 21 de agosto de 2011 os rebeldes, que já haviam tomado parte significativa do país, entraram na capital. Mesmo em local incerto, o carismático líder continuava a manter o controlo sobre o tesouro e a fazenda líbias. Daí se explique a demora que alguns países do Ocidente evidenciaram em reconhecer a autoridade do Conselho Nacional de Transição (CNT). Nomeadamente, Portugal.

A 21 de junho de 2011, Paulo Portas sucedeu a Luís Amado na pasta dos Negócios Estrangeiros. Passada apenas uma semana, a 29 de junho, o ministro recém-empossado legitimou as novas autoridades líbias: “Portugal foi, tanto quanto pude reconstituir, o 14º país da União Europeia a reconhecer o CNT”, revelou ao Expresso Paulo Portas. Foi “uma decisão inevitável. Se Portugal não o fizesse”, concluiu o ex-líder do CDS-PP, “ficaria de fora de futuras etapas daquele país”.

Mouammar Kadhafi foi assassinado e exposto em público a 20 de outubro de 2011. Para manter o Aman Bank em pleno funcionamento, Ricardo Salgado contratou pelo menos dois gabinetes de advogados britânicos especialistas em “embargos internacionais”. A Clyde & Co ficou com a tarefa de tratar dos “assuntos relacionados com a atividade de trade finance”. Ou seja, para facilitar as transações internacionais de produtos e serviços financeiros.

A 7 de setembro de 2011, o novo ministro dos Negócios Estrangeiros fez uma visita surpresa à Líbia. Portas reuniu em Bengasi com Mustafa Abdel-Jalil, tendo obtido a garantia por parte do presidente do Conselho Nacional de Transição que todos os contratos e acordos estabelecidos com Kadhafi se manteriam inalterados. Mensagem que Paulo Portas transmitiu a Ricardo Salgado, mal regressou a Portugal. O banqueiro instou o novo ministro a comparecer numa reunião na sede do BES, a 13 de setembro de 2011, e Portas não recusou o convite. “Acho natural que me tenha perguntado a opinião sobre a evolução da Líbia”, transmitiu-nos o ex-governante. “O BES tinha lá um ativo relevante e a situação político-militar era delicada.”

Entretanto, a 19 de setembro de 2011, Ricardo Salgado enviou para o terreno uma “brigada de combate” composta por gente da sua estreita confiança. Integraram a missão, entre outros, Pedro Homem, Rui Guerra, Eduardo Pinto e Rui Cupertino. Este último fez parte da equipa inaugural do Aman Bank enquanto diretor de risco (CRO) e foi promovido a diretor-executivo (CEO), cargo que exerceu até 2018, altura em que assumiu a vice-presidência do banco. Em abril do presente ano regressou a Portugal, abandonando, de um dia para o outro, a cadeira de conselheiro sénior na presidência do Aman Bank.

Rui Cupertino não aceitou falar connosco de viva voz. Mas o seu nome emergiu a meio de uma conversa que mantivemos recentemente em Lisboa com um elemento de uma agência baseada em Trípoli que investiga o paradeiro dos ativos líbios ilegalmente desviados para fora do país. No início deste ano foi realizada uma ação de inspeção ao Aman Bank, onde Cupertino se encontrava a trabalhar. Segundo o inspetor, que quis preservar o anonimato, o antigo quadro do BES, quando interpelado, mostrou-se “incomodado” e “muito nervoso”. Poucos dias depois estava de regresso a Portugal.

Em 2013, o Governo líbio chefiado pelo “liberal” Ali Zeidan contratou uma empresa norte-americana de recuperação de ativos financeiros, a Command Global Services. Haig Melkessetian, um ex-agente da CIA, foi um dos “detetives” que tentou então seguir o rasto do tesouro financeiro de Kadhafi. Melkessetian revelou que foi informado por funcionários do banco e por outras individualidades locais que o Aman Bank “tinha desempenhado esse papel [movimentações financeiras ilícitas e lavagem de dinheiro] para membros da família de Kadhafi, com o conhecimento dos executivos do Banco Espírito Santo em Portugal”.

Estas palavras do ex-agente da CIA foram registadas por jornalistas do “The Wall Street Journal”, com quem partilhámos dados e informações. Não nos foi possível retomar o contacto com Melkessetian, apesar das sucessivas tentativas. Aquele jornal norte-americano apurou junto de um antigo funcionário do BES que “os executivos do Banco Espírito Santo facilitavam transferências bancárias para retirar dinheiro do país para clientes do Aman Bank e para outros credores”. Parte desse dinheiro terá sido encaminhado para bancos da família Espírito Santo na Suíça e no Dubai. Perdendo-se-lhe aí o rasto. O “valor mínimo” para entrar na “lavandaria” do Aman Bank estaria situado nos 10 milhões de euros e as comissões recebidas pelo BES seriam “altíssimas”, de acordo com a nossa fonte no SIRP.

O Expresso contactou o advogado de Ricardo Salgado, solicitando-lhe comentários sobre os protagonistas e os acontecimentos que os diários de trabalho do ex-banqueiro expõem. Francisco Proença de Carvalho respondeu que não poderia participar numa reportagem “que parece assentar em devassa e especulação em torno do conteúdo das agendas pessoais do meu cliente.”

VIRA O DISCO E TOCA AOS MESMOS

Na segunda vez que visitou a Líbia, a 19 de março de 2012, Paulo Portas teve um encontro com o sucessor de Farhat Bengdara no Banco Central da Líbia, o “intrigante” Siddiq Kabir. Num aprofundado perfil publicado pela “New Lines Magazine” é possível constatar que Kabir “reflete muitas das contradições da Líbia pós-Kadhafi: o financiamento estatal das fações beligerantes, as alianças em constante mudança e o conluio entre adversários políticos”. Foi a este banqueiro que o ministro dos Negócios Estrangeiros português solicitou “que desse proteção de segurança” ao banco de Ricardo Salgado e aos cidadãos portugueses que lá trabalhavam. Segundo Paulo Portas, “não foi difícil fazê-lo, porque o Aman Bank seria uma das poucas instituições financeiras locais que processava salários de funcionários dos dois lados da guerra civil”.

Paulo Portas nega, porém, que tivesse ido à Líbia prestar qualquer tipo de favor ao presidente do BES. A agenda de trabalho de Ricardo Salgado sugere uma ideia diferente. A 24 de janeiro e a 14 de fevereiro de 2012, antecipando a visita ministerial, banqueiro e governante terão jantado juntos. E numa escuta telefónica intercetada pela Polícia Judiciária, o presidente do BES informou o seu sócio líbio, Mokhtar Eshili, que tinha “um compromisso com o Governo português” e que o ministro dos Negócios Estrangeiros “já foi à Líbia” e “vai outra vez esta semana”.

Nas respostas que enviou ao Expresso, Portas garantiu-nos ter mantido com Ricardo Salgado uma “relação normal”, mas passou por cima da questão do eventual “compromisso” que o banqueiro afirmou ter estabelecido com a administração portuguesa em relação à Líbia. “O Governo português, na pessoa do ministro dos Negócios Estrangeiros, tem vindo a interceder telefonicamente e formalmente junto do CNT, do Governo líbio e do Banco Central da Líbia, com total conhecimento e reporte à CE do BES”. Este testemunho foi retirado de uma exposição expedida por Rui Guerra, que esteve na administração do Aman Bank entre 2010 e 2012, a Rui Silveira, administrador do BES, a 11 de junho de 2012.

Ricardo Salgado deixava, por agora, apenas uma “ponta solta”: Mokhtar Eshili. O velho amigo de Mouammar Kadhafi e do seu cunhado, o implacável chefe dos serviços secretos líbios, Abdullah Senussi. A 2 de maio de 2012, o Conselho Nacional de Transição fez publicar a Lei Nº 36: uma lista com 338 empresas e pessoas próximas de Kadhafi, cujos bens e propriedades foram arrestados. Entre eles, Eshili.

Eshili foi um dos banqueiros de maior confiança de Kadhafi e as novas autoridades líbias estavam a tomar as primeiras iniciativas para reaver a fortuna do antigo líder do país. Caracterizado como um “homem perigoso” pela nossa fonte na agência líbia de recuperação de capitais, o fundador do Aman Bank estava no centro do turbilhão, levando à inclusão do Aman Bank, a 24 de maio, na lista das entidades arrestadas. As campainhas de alarme tocaram na sede do BES. Nesse mesmo dia, como se constata em ata do Banco Espírito Santo, Salgado estabelece contacto telefónico com o regulador líbio, tendo-lhe sido “reafirmada total confiança”.

As portas do Aman Bank abriam-se aos novos interesses que se estabeleceram na Líbia. Obrigado a incorporar na direção do banco três elementos designados pelo governador líbio, Salgado estendia a passadeira a Siddiq Kabir. A 17 de julho de 2012, o Aman Bank foi retirado da “lista negra” e voltou a operar “normalmente”. E Mokhtar Eshili foi reabilitado pelo novo regime, tal como aconteceu com a grande maioria dos prosélitos de Kadhafi.

Nos primeiros dias de outubro de 2012, segundo a agenda do banqueiro, Salgado, Eshili e Kabir estiveram juntos em Portugal. O governador do banco central veio a Lisboa tratar dos fundos que Kadhafi tinha investido na Caixa Geral de Depósitos. Dinheiro que Salgado e o seu “sócio” Eshili nunca desistiram de perseguir. “Depois da morte de Kadhafi”, garante o nosso contacto na Líbia, “foram os novos senhores no poder que passaram a usar o Aman Bank para lavar dinheiro”.

O LEOPARDO DEIXA A SUA PELE

A partir de fevereiro de 2014, Costa Freire e Adel Dajani deixaram de constar na agenda de Ricardo Salgado. A 25 de junho de 2014, foram substituídos no Conselho de Administração do Aman Bank por Bruno Catarino e Hélder Carvalho. Em ata da Comissão Executiva do BES consta que os contratos anteriormente celebrados com Dajani e Freire, “enquanto especialistas para consultoria e prospeção de negócios na África e Médio Oriente”, foram rescindidos, tendo sido “negociado um valor compensatório até ao máximo de €270 mil por pessoa, excluindo prémios”.

Ricardo Salgado sentia a corda no pescoço. O império Espírito Santo desabava em todas as suas geografias. E, porventura, também na Líbia. Na manhã de 17 de janeiro de 2014, o presidente do BES chamou ao seu gabinete Mokhtar Eshili, Amílcar Morais Pires e Francisco Santos, assessor para o desenvolvimento internacional, para prepararem o caminho a dar ao Aman Bank.

Os resultados consolidados do BES, em maio de 2014, davam conta que o Aman Bank estava entre os “devedores mais significativos” do grupo: 31 milhões de euros. Na mesma data, foram detetados roubos de caixa de 3,5 milhões de euros e uma fraude que custou mais de 2,6 milhões de euros ao Aman Bank. O banco estava duplamente a saque. Em Lisboa e em Trípoli.

A 16 de julho, os últimos expatriados do BES em serviço no Aman Bank abandonavam a Líbia.

Consideradas “lixo”, as ações do BES no Aman Bank foram parar ao “banco mau”. A administração interina do banco líbio ficou nas mãos de Francisco Santos, Paula Ferreira Borges, Guilherme Morais Sarmento, Bruno Catarino e Hélder Carvalho, todos eles ex-quadros de relevo e de confiança no falecido BES de Ricardo Salgado. Francisco Santos até participou na última reunião com Eshili. Bruno Catarino e Hélder Carvalho foram escolhas do presidente do BES para substituir Fernando Costa Freire e Adel Dajani na administração do Aman Bank, onde já constava Guilherme Morais Sarmento, um “companheiro” de longa data.

A 2 de março de 2015 foi alienada a participação de 40% que o BES detinha no Aman Bank por 3,9 milhões de euros. Um décimo do valor pago por Salgado. Entidade compradora das ações: Freslake Limited. Uma empresa que não deixa rasto na internet e foi criada (e logo extinta) nas Ilhas Virgens Britânicas com o desígnio de carimbar um verdadeiro “negócio das arábias”.

O Banco de Portugal não investigou a origem nem a idoneidade da Freslake Limited. O regulador “considerou que a venda cumpria o objetivo de maximização do valor que viria a integrar a massa insolvente do BES, pelo que não se opôs à concretização” do negócio.

Falámos com um ex-quadro do Aman Bank e também estabelecemos contacto com o antigo sócio de Salgado na Líbia. O primeiro garantiu-nos que a Freslake Limited era detida por Mokhtar Eshili. O próprio Eshili confirmou-nos que “o Aman Bank é agora um banco 100% líbio” e que “todos os acionistas são líbios”, não estando “autorizado” a dizer-nos “mais nada”. Embora se saiba que ele, Eshili, anda neste momento “à procura de um novo parceiro internacional”. A história tem tendência a repetir-se (Expresso, texto do jornalista PAULO BARRIGA e ilustrações de MÓNICA DAMAS, om Filipe Teles, Micael Pereira e Pedro Coelho)

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