É de manhã que tudo acontece. Os grandes navios chegam, sorrateiros, durante a noite, modificando a paisagem do Funchal. Na ilha todos sabem quais são os cruzeiros, a que horas chegam, de onde vêm e para onde vão, porque são estas cidades flutuantes que contribuem para o sustento de muita gente. Acorrem ao porto os táxis amarelos, carrinhas brancas de nove lugares, autocarros e jipes. Enquanto alguns passageiros se espreguiçam à varanda, outros apressam-se no pequeno-almoço para irem ocupar o seu lugar nas viagens organizadas.
Os que preferem caminhar até ao centro da cidade, a poucos metros, não tardarão a encontrar o Mercado dos Lavradores. Aqui, a algazarra é feita de turistas, de locais e de vendedores, que alimentam coloridas bancas de flores, frutas, de paredes de piripíri, frutos secos e especiarias. Um jovem casal alemão faz as primeiras férias com o bebé de meses. A Madeira estava nos planos desde a pandemia por causa das imagens de sonho que viram no Instagram. A descrição é próxima da de Xavier, um espanhol que está a percorrer a Levada dos Balcões, no centro da ilha. Tem 25 anos e veio com uma amiga, que neste dia preferiu ir fazer mergulho. O jovem, que trabalha num teatro, conta que descobriu a Madeira a fazer scroll e encantou-se com as fotografias. Mais à frente, Alexandre e Joana, de 29 e 28 anos, de Torres Vedras. As imagens que (também) viram antes não os prepararam para o que estavam a viver naquele momento no Miradouro dos Balcões: Joana exibe um tentilhão, pequeno pássaro de tom azulado, na sua mão. É certo que levaram comida para aves, seguindo as recomendações de um amigo, mas não imaginavam que iriam estar num miradouro com uma vista incrível sobre a ilha com um pássaro na mão. Não eram os únicos. Os tentilhões aqui não passam fome — antes pelo contrário.
“VIERAM COMO FORMIGUINHAS”
A pandemia marca um antes e um depois no turismo da Madeira. Todos o reconhecem e os números atestam-no. “Vieram como formiguinhas”, diz-nos Maria Isabel, enfermeira aposentada, que ocupa uma das mesas da esplanada do histórico café Golden Gate, no centro do Funchal, com três amigas. Bem-dispostas, nenhuma hesita em saudar o turismo nem os turistas e, apesar de reconhecerem que a vida ficou mais complicada para quem procura casa na ilha (o imobiliário está pressionado não só pela procura para Alojamentos Locais mas também para residências de cidadãos estrangeiros), entendem que é importante para a economia.
Até à pandemia, a organização do turismo na região estava muito dependente dos operadores turísticos. Depois passou a ter novos canais, como as plataformas online. A procura disparou e chegou um perfil de turista diferente, mais jovem. O número de dormidas em setembro superou este ano, pela primeira vez, o milhão (um aumento de 9,4% em comparação com o mês homólogo, em que se registaram 951,6 mil dormidas). O entusiasmo alastra ao rendimento por quarto, que passou os €100. Também a oferta de camas aumentou, em especial no Alojamento Local: passou de 19.597 em 2019 para 28.365 em 2023. Um incremento expressivo, que se reflete nos proveitos totais: em 2022 atingiram os €529,5 milhões, o valor mais elevado de sempre na Região Autónoma, e em setembro deste ano situavam-se nos €505,1 milhões, perspetivando novo recorde.
Esta explosão do turismo numa ilha tradicionalmente já habituada a ele traduziu-se ainda num enorme aumento de empresas de rent-a-car. O movimento de carros alugados é visível em toda a ilha, especialmente em pontos obrigatórios no itinerário turístico, como o início de alguns percursos pedestres ou no pico do Areeiro. Mais uma vez os números confirmam: num ano, o número de pedidos de licenciamento de empresas de rent-a-car praticamente duplicou. Se em 2022 foram autorizadas pela Direção Regional de Economia e Transportes Terrestres 34 empresas, este ano já são 62 novas. No total, operam 154 na região.
CEM QUILOS DE FILETES
Apesar da profusão de carros e turistas, novembro é considerado época baixa. Os três navios de cruzeiro no mesmo dia no porto do Funchal e os enxames de turistas de pala sobre os olhos só impressionam quem não está habituado. Na zona do peixe do Mercado dos Lavradores jazem dezenas de cabeças de peixe-espada-preto no meio de uma azáfama que os turistas fotografam do cimo das escadas. Numa bancada alinham-se reluzentes lombos brancos. O jovem peixeiro tira o avental, que estende sobre a laje de pedra. É quase hora de almoço e está desde as 7 da manhã a cortar o peixe em filetes. São uns 100 quilos de filetes de peixe-espada-preto que vão seguir para os restaurantes. O turismo ajuda o negócio, não? “Nem por isso, este mês está fraco.”
Os olhos estão agora postos no fogo de artifício do Ano Novo, que leva milhares à baía do Funchal. Na cidade ainda se instalam as iluminações de Natal. Ao fim do dia, os gigantes dos mares já voltaram a sugar todos os seus passageiros. Escutam-se três longos silvos na voz grossa dos grandes barcos e os clientes temporários da ilha partem pela estrada do Atlântico. Amanhã há mais (Expresso, texto da jornalista Marina Almeida)
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