terça-feira, novembro 28, 2023

Expresso - Levadas: As veias aquáticas da Madeira esperam o veredicto da UNESCO

A candidatura das levadas da Madeira a património mundial está entregue. Oito das 134 levadas da ilha aguardam o reconhecimento do valor excecional destas construções que sulcam a ilha desde há 600 anos, levando a água das nascentes, na serra, até aonde dela precisam. É novembro e a água corre fininha e segura no canal. Um silvo delicado de vida que escorre pela ilha, levada pela gravidade desde a nascente no alto da serra, em carreiros esculpidos na pedra e na terra. É esta água que chega às torneiras, às plantações de banana, aos campos de golfe, e aciona as centrais hidroelétricas e engenhos antigos, como os moinhos. E é esta água que acompanha os passeios ao longo das levadas, nos vários itinerários turísticos na Madeira.

“Dizemos Madeira é como se a Madeira tivesse um sistema sanguíneo, com as veias, as artérias e os vasos capilares. As artérias, que transportam a água no seu melhor estado, desde a origem, são as levadas principais que distribuem a água pelas secundárias e as secundárias fazem chegar a água aos diferentes campos agrícolas. A Madeira é como se fosse um grande corpo vivo irrigada por água. Se na sua origem teve a lava, na atualidade tem a água”. Susana Fontinha é bióloga e a coordenadora da equipa multidisciplinar que durante três anos preparou a candidatura das levadas da Madeira a património mundial da UNESCO na categoria de paisagem cultural.

O grupo de trabalho, que envolveu várias entidades sob coordenação da Secretaria Regional de Agricultura e Ambiente, escolheu oito levadas principais para submeter à apreciação da UNESCO: As levadas dos Tornos, do Rei, do Caldeirão Verde e da Serra do Faial, na zona oriental da ilha, e as levadas do Norte, do Risco, das 25 Fontes e do Alecrim, na zona ocidental. “Foram candidatas oito levadas localizadas em dois maciços, o maciço montanhoso oriental e ocidental, porque é onde estão as nascentes. Contemplámos a levada desde a origem até pontos de entrega de água”, explica Susana Fontinha.

A TÉCNICA VEIO DO NORTE DE PORTUGAL

A Madeira tem 134 levadas, 3100 quilómetros de canais, dos quais 800 de levadas principais. “Não poderíamos candidatar todas, 3100 quilómetros, ou ficávamos com a ilha transformada numa enorme zona tampão”, diz. A candidatura foi apresentada oficialmente em janeiro, e está a ser analisada pelo ICOMOS: “No verão veio cá uma perita para conferir in loco as levadas candidatas. Foram colocadas questões, às quais já respondemos. Uma candidatura desta ordem não fala apenas na história, do estado da arte, fala também no sistema de gestão, no estado de conservação. É uma candidatura complexa e multidisciplinar”.

A classificação visa reconhecer o valor excecional deste sistema hidráulico presente na ilha desde o seu povoamento. As primeiras levadas remontam a meados do século XV, as mais recentes ao século XX. “Pensa-se que o conhecimento inicial da construção das levadas veio do Norte de Portugal e foi adaptado às características da ilha. Não é só na ilha da Madeira que existem levadas.

Noutras zonas do território português, nos Açores, também existem. Esse conhecimento tem a ver com quem cá chegou e teve a responsabilidade de trabalhar as terras. A maior parte das levadas do início foram construídas por causa da cultura da cana-de-açúcar, para irrigar os canaviais e para ter água usada nos próprios engenhos que faziam a transformação da cana para a produção do açúcar”, enquadra.

LEVADEIRO: ENTREGA DE ÁGUA COM HORA MARCADA

A construção das levadas teve várias fases e desenvolveu-se a várias cotas. No século XIX houve um grande investimento nas levadas que transportavam água do Norte, onde abundava a água, para o Sul da ilha, onde ela era mais necessária e onde se fixaram mais as pessoas e se desenvolveu a agricultura. É aqui que estão muitos bananais, beneficiando da exposição solar e da água que os levadeiros vão gerindo e fazendo chegar aos terrenos, com hora marcada.

Vítor Pita é um desses profissionais que só existem nesta ilha. Há 12 anos que a sua ocupação é cuidar da entrega da água na freguesia das Canhas aos agricultores e a quem mais dela precisar, abrindo e fechando as portas metálicas do sistema hidráulico de 16 levadas sob a sua alçada para encaminhar a água. É nos meses de verão, quando a água é mais escassa, que o trabalho deste e dos outros levadeiros está no centro das atenções.

Nessa altura é implementado o chamado “giro” em que a água é entregue com intervalos temporais alargados, fazendo a gestão das reservas da ilha. Existe um calendário que é disponibilizado no início do estio, que todos os agricultores conhecem e que indica a que dia e hora a água vai chegar ao canal ou canais que irrigam os seus terrenos. O trabalho dos levadeiros da ilha é intenso e implica o reforço das equipas para que o recurso natural não seja desperdiçado: “Não podemos deitar água fora para o ribeiro por estarmos de folga”, diz Vítor Pita.

Este verão, o intervalo do giro foi de 14 dias. Foi um ano bom: “Há muito tempo que não me lembrava de fazer o verão todo com 14 dias. Foi graças à chuva do mês de junho”, aponta. A água que vem da serra é retida em grandes depósitos espalhados pela ilha, e libertada consoante a disponibilidade e necessidade. A gestão é feita por zonas, responsabilidade da Águas e Resíduos da Madeira (ARM), a que todos os levadeiros e encarregados de canal respondem.

Para quem está de fora, é bastante curioso perceber que um canal que transporta água a céu aberto faz entregas com hora marcada. Mas é isso mesmo acontece no terreno onde António Freitas cultiva bananas há nove anos. Quando sabe que a água vai chegar, cria uma barreira no canal com panos, provocando o alagamento de todo o terreno e assim regar as bananeiras. “Agora a água de giro está a vir à segunda e à terça”, conta-nos sob as copas verdes.

LEVAR A ÁGUA DE NORTE PARA SUL

Os levadeiros andam de moto-quatro pela ilha, com uma indispensável foice, que lhes permite não só fazer a abertura das várias pequenas portas, mas também ir limpando os canais de folhagem, paus e outros resíduos que se acumulam impedindo a passagem da água. “É um trabalho que exige bastante responsabilidade”, diz Vítor. Se a água tem de chegar às 8 da manhã a um agricultor, não pode falhar. E para que isso aconteça, há todo um trabalho prévio de abertura e fecho de portas ilha abaixo que tem de ser acautelado.

As más-línguas dizem que quando chove na ilha estes profissionais entram de folga, mas Vítor logo desfaz os equívocos: é nessas alturas que aproveitam para fazer a limpeza dos canais principais. Tem 44 anos e antes foi pintor de construção civil. Já tinha na família um levadeiro, o seu pai, que chegou a chefe de equipa das Canhas. Gosta do que faz e do papel que tem neste complexo sistema de gestão e de preservação da água: “a água parece que vai perdida, a céu aberto, mas não, ela tem um destino”.

A água que brota na Madeira serve também para gerar energia elétrica nas centrais colocadas a cotas elevadas, aproveitando a força da água gerada na descida. Nada que se compare com o deslizar suave que os caminhantes testemunham nos vários percursos assinalados ao longo da ilha. As levadas foram construídas com uma pequeníssima inclinação e continuam, na sua maioria, a transportar água num pequeno declive, o suficiente para a água não estagnar ao longo do seu percurso.

Estes caminhos de água aguardam o reconhecimento da UNESCO, que deverá trazer renovado interesse a uma ilha já bastante procurada pelo turismo. Até junho do próximo ano deverá chegar o veredito. “É um sistema que continua a existir praticamente desde os seus primórdios e mantém a sua autenticidade. Isto é a demostração de que as levadas têm um valor universal excecional, continuam a ser autênticas e mantêm a sua identidade. A candidatura reflete isso, a especificidade de um território com a nossa orografia e com o ordenamento do território que nós temos. Se não tivéssemos conseguido trazer a água do Norte para o Sul da ilha, não teríamos conseguido ter o desenvolvimento socio económico que a ilha tem”, conclui Susana Fontinha (Expresso, texto da jornalista Marina Almeida e fotos de Duarte Sá)

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