terça-feira, novembro 28, 2023

Expresso - Madeirensidade: Um jeito de falar que é mais do que um sotaque

Os estudos desenvolvidos pela Universidade da Madeira no âmbito da linguística mostram que a forma de falar dos madeirenses é mais do que um sotaque: tem um léxico próprio e uma sintaxe diferente do português falado no continente. E os vários inquéritos para teses de sócio-linguística revelaram que a população tem um sentimento de dupla pertença: é português, mas é madeirense e sente orgulho na maneira como fala. Se há característica que permite identificar um português nascido e criado na Madeira é forma como fala. Essa mistura de sotaque, léxico e sintaxe à qual é leal e sente orgulho. “Os madeirenses não têm um problema de auto-estima. Os vários estudos e inquéritos em sócio-linguística que fizemos mostram isso mesmo: há uma lealdade, um sentimento de pertença à comunidade que se traduz na forma como se fala. E esse orgulho é evidente nas classes sociais mais desfavorecidas e menos escolarizadas, entre os jovens universitários e nas elites”.

Aline Bazenga é professora da Universidade da Madeira e, nos últimos anos, tem orientado vários trabalhos académicos a propósito do português que é falado na ilha, essa variedade madeirense que, na verdade, tem várias camadas. Num espaço isolado a forma de falar trazida pelos povoadores no século XV misturou-se com as influências vindas de fora e o léxico próprio de atividades económicas desenvolvidas pela população em 600 anos de História.

“O português foi plantado aqui na ilha no século XV e teve a sua evolução muitas vezes paralela àquilo que se observou no continente. E ao mesmo tempo há conservação de formas antigas. A configuração da ilha permite isso seja assim. E um exemplo desse português antigo é usar o verbo ter em vez do verbo haver existencial. Dizer frases como estas: o Funchal tem muitos apartamentos vazios; a Madeira tem muitas festas este fim de semana”.

Segundo Aline Bazenga esta construção já existiu no português europeu e só desapareceu no século XVII. Na ilha ficou, mas usa-se quase sempre no presente. O falar da Madeira inclui o uso recorrente do gerúndio e de “a gente” em vez de “nós”. “O mais característico é “a gente vai-se à festa” ou “a gente ia-se a pé para a escola”. Há autores que falam em duplo sujeito, existe no francês, mas na Madeira ninguém sabe explicar a razão”.

“A Madeira foi, na verdade, uma ponte entre a Europa, a metrópole, e as variedades coloniais do português: as africanas e a brasileira”. Além das diferenças na construção de frases, há recurso a vocabulário próprio e particularidades como dizer “uma hora de tempo” - e que distinguia da “hora de água”, expressão do sistema de rega madeirense em que cada terreno agrícola tinha associado um certo número horas de água por mês. Estas diferenças são usadas apenas no modo de falar, a escrita é a do português europeu.

“Os madeirenses aprendem na escola uma língua padrão, um português que é uma língua para ser escrita, quase estrangeira ao seu falar. Isso nota-se por exemplo na relutância em usar os pronomes nas conversas”.

Os inquéritos e estudos desenvolvidos nos últimos anos pela Universidade da Madeira indicam, no entanto, que os falantes desta variedade madeirense do português sentem orgulho no sotaque, na construção das frases e no vocabulário. “Há uns anos fizemos um inquérito com uma amostra de 18 madeirenses em cada concelho – a amostra inclui homens, mulheres, com estudos, sem estudos, mais novos, mais velhos – e uma das conclusões é a dupla pertença: sente-se português sem dúvida, mas é madeirense e está sempre nesse equilíbrio. Não sei o que está em primeiro lugar”.

As respostas a esse estudo sobre sotaques e formas de falar revelaram que, na ilha, o português padrão é o de Lisboa e que o madeirense entende que fala um português muito próximo desse padrão. Não está próximo do Porto ou dos Açores, aliás não gosta que confundam as maneiras de falar dos dois arquipélagos. “É um português muito estimado, as pessoas não pensam que falam mal. De uma maneira geral têm orgulho na maneira como falam, todos o apreciam positivamente nas várias componentes: léxico, sotaque, sintaxe, até os jovens”.

Aline Bazenga refere que esse orgulho está ligado ao desenvolvimento, à autonomia e é transversal. “As elites podiam falar à continental, podia acontecer essa aproximação, mas não, antes pelo contrário. As elites têm trabalhado muito nisso em valorizar a diferença, a autonomia e, claro, o modo de falar. Esse modo de falar cimenta o grupo, traz esse sentimento de pertença, de lealdade à comunidade. As elites têm o reconhecimento interno e não sentem qualquer necessidade de reconhecimento ou aprovação exterior” (Expresso, texto da jornalista Marta Caires e fotos de Duarte Sá)

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