Sabemos como é a conversa nos dias que correm. Diz-se que os partidos já não são o que eram, que já não nos representam, que não pensam nos interesses do país, que deviam abrir-se mais à sociedade, que a disciplina de voto é um mero pretexto para servir os objetivos das lideranças. Nos últimos tempos ouvimos até mais do que isso: políticos a criticar os velhos políticos, partidos novos a criticar os antigos, até líderes políticos a defender soluções estranhas, como a de que a abstenção devia "eleger" cadeiras vazias no Parlamento, assim como quem puxa as orelhas aos que se portam mal.
A conversa de café segue simples, até que a polémica num pequeno partido nos obriga a pensar outra vez.
Veja o que aconteceu no Livre. Um partido jovem consegue eleger pela primeira vez uma deputada; a deputada começa por dar nas vistas, menos pela sua assumida gaguez, mais pela forma como reage às críticas dos comentadores (lembra-se da polémica com o Daniel Oliveira?). Depois assume um voto sem consultar o partido. Por fim, perde-se na burocracia do Parlamento e deixa por agendar a principal proposta da campanha (deixando mal representados os seus eleitores, como anotava o Ricardo Costa). Pelo meio, a deputada e a direcção trocaram acusações na praça pública, acordaram seguir em frente, mas a deputada continuou a disparar contra o partido ("golpe", disse ela), violando até um sigilo prometido. Em apenas um mês, coube tudo isto - até a inevitável acusação aos jornalistas, com uma evitável escolta policial.
Na Comissão Política de terça-feira, discutimos a origem do problema sem conseguir chegar a um consenso (haverá ou não um problema de liderança aqui também?). Mas concordámos nisto: o modo como o Livre escolhe os seus candidatos a deputados - em primárias abertas, com participação de cidadãos que não têm sequer um vínculo ao partido - pode parecer um belo princípio, mas deslaça a ligação entre quem é eleito e as ideias do partido que supostamente representa. Hoje, Joacine Katar Moreira, acredita ter uma legitimidade maior do que a do Livre. Mas formalmente não tem. Não é por acaso que, nas eleições legislativas, nenhum de nós vota num candidato: votamos sim num partido.
Eu sei, já não parece ser bem assim: quando votamos pomos a cruz no símbolo do partido, mas votamos sobretudo no seu líder. Verdade?
Pois é, mas talvez a formalidade tenha um sentido. Talvez à luz disto se perceba melhor por que razão as regras ainda ditam que devemos votar em partidos e não em candidatos, por que é que não é possível os independentes se candidatarem sem terem que integrar uma lista partidária. Talvez depois desta polémica se perceba melhor por que razão os partidos têm regras próprias, por que motivo privilegiam os seus militantes quando escolhem candidatos, porque é que ainda há essa coisa antiga da disciplina de voto - e até por que razão a velha proposta de criação de círculos uninominais não é tão unânime como se pensa (como bem sublinhava o Daniel Oliveira).
Por tudo isto, quando ouvir dizer mal dos "velhos partidos", pense nisto. Pense em como, com todos os seus defeitos, os partidos nasceram a representar mais do que os seus candidatos: um conjunto de valores, de propostas, de ideais, enquadrados num quadro coerente, em que muitos portugueses se revêem. Se quiser, lembre-se também de como a perda destes velhos valores no velho Partido Republicano (e do peso dos seus mais importantes senadores) abriu espaço há quatro anos para a nomeação de Donald Trump - e lhe deu espaço para refazer toda a política americana, tornando-a permeável a uma liderança autocrática. Talvez os "velhos partidos", afinal, mantenham as velhas regras por outros motivos que não os das novas conversas de café. Talvez, só talvez, eles ainda sejam assim por outros motivos (texto de David Dinis, Director-adjunto do Expresso)
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