quarta-feira, julho 17, 2024

Estado não está interessado em saber se gasta bem ou mal o seu dinheiro, conclui Tribunal de Contas

A implementação de revisões da despesa não foi bem-sucedida nas duas últimas vezes em que foi implementada, durante os anos da troika e entre 2016 e 2023, por descoordenação entre instituições e indefinição dos critérios, diz o Tribunal de Contas. A terceira tentativa foi uma “obrigação” do PRR e está em curso. O Estado português não esteve particularmente interessado em perceber se, como, e onde estaria a despender mal o seu dinheiro. É a conclusão de um relatório do Tribunal de Contas (TdC) sobre as três tentativas de implementação de mecanismos de análise sistemática da despesa pública postas em prática na última década. De 2013 a 2023, falharam as tentativas de implementar revisões da despesa em linha com as recomendações do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), pecando pela falta de objetivos claros e pouca transparência, e não tendo gerado nenhumas poupanças.

E isto apesar de os diferentes ministérios das Finanças terem promovido a criação de vários grupos de trabalho para estudar a implementação destas revisões da despesa, interrogando-se também o TdC sobre o trabalho efetuado e os resultados conseguidos por estas estruturas.

O tribunal que audita a despesa pública solicitou contraditório a uma lista vasta de ministros e ex-ministros com responsabilidades na alocação de despesa. Os ex-ministros Mário Centeno e João Leão não responderam à notificação do TdC. Já Fernando Medina, o ministro das Finanças do último governo de António Costa, optou por não tecer comentários em relação às conclusões da auditoria.

Isso levou o TdC a inferir que “não houve uma efetiva responsabilidade política pela implementação deste instrumento de racionalização da despesa pública, o que constitui, seguramente, um dos fatores explicativos da ausência de resultados com o exercício da revisão da despesa”.

Carlos Moedas, antigo coordenador da Estrutura de Acompanhamento dos Memorandos do governo de Passos Coelho, então secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro (e atual presidente da Câmara Municipal de Lisboa), defendeu a primeira abordagem às spending reviews no Estado e justificou as dificuldades na adoção desta ferramenta com a intransigência dos partidos em alterar “níveis de despesa pública anteriormente associada a projetos e programas municipais idealizados por anteriores executivos municipais, mas que (…) ficaram aquém dos objetivos que tinham sido apontados (…) das métricas de economia, eficiência e eficácia da despesa pública”.

O QUE SÃO REVISÕES DE DESPESA?

As conclusões do relatório do TdC indicam que a implementação de exercícios de revisão da despesa pública, instrumento que analisaria sistematicamente onde e como estaria a ser aplicado o dinheiro do Estado, falhou em Portugal.

Apesar de serem defendidos por organizações como a OCDE e o FMI, os exercícios de revisão da despesa pública, entre 2013 e 2023, só foram implementados em três ocasiões: durante o resgate da troika; entre 2016 e 2023; e, numa nova modalidade, desde 2023. Em todas as vezes, ficaram muito aquém das boas referências internacionais, pecaram pela falta de transparência e, acima de tudo, de eficácia: nem conseguiam identificar ineficiências de forma concreta, nem resultaram numa correção de má despesa pública.

Estas revisões da despesa servem, de acordo com a definição da OCDE, para perceber quanto gasta o Estado no seu todo, em que áreas gasta mal o seu dinheiro, e em que áreas podia gastar melhor, promovendo uma maior eficácia das medidas dos governos.

Para se traduzirem em ganhos concretos, devem ser indissociáveis dos processos de construção dos orçamentos do Estado; a sua realização deve ter o apoio político dos governos vigentes; e as recomendações saídas das análises da despesa devem ser executadas em coordenação com o Ministério das Finanças e os ministérios setoriais. Os três critérios falharam nas duas últimas tentativas de implementar, em Portugal, spending reviews.

A troco dos milhões do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), a Comissão Europeia exigiu diversas reformas a nível do processo orçamental. Uma delas implica que “as revisões de despesa se tornem um elemento estrutural do processo orçamental de Portugal” e, em resposta a esta alínea, criou-se, em 2023, um novo grupo de trabalho para o efeito e um novo modelo de avaliação, no qual as Finanças definem os setores que deverão ser alvo de uma revisão, em vez do que acontecia antes, em que todos os subsetores tinham de apresentar a sua lista de potenciais poupanças num formulário chamado Anexo X.

Já com o Orçamento do Estado de 2024 na mira, no ano passado conduziram-se duas revisões setoriais de despesa: uma que incidiu no Serviço Nacional de Saúde (SNS), e outra no ECO.AP 2030 - Programa de Eficiência de Recursos na Administração Pública. No primeiro caso, identificaram-se potenciais poupanças em 2024 de 67,7 milhões de euros em áreas como reabilitação, diálise e na dispensa de medicamentos. Na segunda revisão, concluiu-se que poderiam ser alcançadas poupanças de 16,3 milhões de euros corrigindo gastos em combustíveis, material de escritório e encargos com instalações.

O QUE FALHOU NAS ÚLTIMAS VEZES?

Se nos anos de 2013 e 2014, em que Portugal estava sob assistência financeira, a experiência imposta pelos credores, com o FMI à cabeça, “foi fortemente marcada pela necessidade de alcançar, no curto prazo, reduções substanciais no volume de despesa pública” e pela “falta de transparência do exercício e de definição clara dos papéis dos intervenientes no processo”, a experiência seguinte, que abrangeu o consulado de três ministros das Finanças socialistas (Mário Centeno, João Leão e Fernando Medina) falhou devido à descoordenação das várias entidades envolvidas e por ninguém saber muito bem para que servia aquele exercício, alega o Tribunal de Contas.

A experiência entre 2016 e 2023 foi “marcada pela ambiguidade quanto aos objetivos e âmbito do exercício, pela fragilidade da estrutura de governança responsável pela sua execução e pela tentativa de envolvimento de um grande número de entidades no exercício através da recolha de iniciativas individuais geradoras de poupanças no processo de preparação anual do Orçamento do Estado”, descreve.

Nesta tentativa, exigiu-se às entidades envolvidas no processo orçamental o preenchimento de um novo anexo, o Anexo X, criado pela DGO para servir como suporte para o exercício de revisão da despesa. Este anexo em ficheiro Excel, no qual as entidades deveriam apresentar propostas de eficiência e controlo dos gastos, “veio a revelar-se inútil enquanto mecanismo para uma maior racionalização da despesa pública”, segundo os relatores.

Entre os problemas detetados, as propostas não parecem ter sido levadas em conta nos orçamentos, nem sequer houve qualquer tipo de análise das medidas, ou acompanhamento destas pelas tutelas. Apesar de ter sido “claramente inoperante” por ter sido “implementado acriticamente”, o Anexo X continuou a ser entregue até 2023 à DGO pelas instituições do Estado. Firmou-se a ideia de que se tratava de uma mera “obrigação administrativa necessária à aprovação do orçamento”, o que se refletiu na má qualidade dos dados fornecidos pelas instituições, segundo o TdC.

Foi até criado, em 2017, um Sistema de Incentivos à Eficiência da Despesa Pública (SIEF), que visava a criação de eficiências em instituições públicas a troco de incentivos financeiros ou não-financeiros, como formação para trabalhadores. Porém, segundo o TdC, este programa só recebeu candidaturas em 2018 e 2019, oito mais especificamente.

Até 2023, “apenas uma única candidatura viria a obter avaliação final e proposta de atribuição de incentivos”: a da Inspeção-Geral de Finanças, uma das entidades responsáveis pela gestão do próprio SIEF.

À TERCEIRA É DE VEZ?

A terceira fase da implementação deste instrumento de análise do gasto público, que permite identificar ineficiências e possibilidades de poupança, vem com as exigências do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) da Comissão Europeia (CE), que, a troco do desembolso de milhares de milhões de euros a fundo perdido, exige reformas aos países beneficiários.

Para abordar estas exigências, foi criado um grupo de trabalho em 2023 para avaliar a experiência anterior e preparar a inclusão destes mecanismos de avaliação da despesa. E, “apesar de contemplar uma reestruturação do modelo de revisão da despesa face às experiências anteriores, que traduz um maior alinhamento com as boas práticas internacionais, ainda não produziu resultados efetivos, uma vez que a implementação da maioria das opções de política decorrerá ao longo do ano de 2024, com produção de efeitos nos anos seguintes”.

Apesar de considerar esta nova tentativa como a “que apresenta maior alinhamento com as melhores práticas internacionais”, o Tribunal alerta para a existência de “riscos na capacidade de assegurar a transição para as etapas mais exigentes do processo: a implementação das ações de política, a monitorização dessa implementação e a avaliação ex-post do processo". Isto é, as etapas que obrigariam o Estado a comprometer-se com as conclusões da revisão da despesa, acabando efetivamente com eventuais gastos desnecessários.

A revisão da despesa é, hoje, um mecanismo que ainda não faz parte integrante do processo de Orçamento do Estado de forma a permitir “o escrutínio detalhado, coordenado e sistemático da despesa base, com evidência devidamente quantificada em unidades monetárias e fundamentada sobre o aproveitamento das oportunidades para reduzir ou redirecionar despesa pública”.

“A maturidade do exercício e a sua capacidade para gerar informação útil à tomada de decisões, de acordo com os objetivos propostos pela revisão da despesa, tem sido comprometida, sobretudo, pela sua falta de institucionalização, pela reduzida transparência na sua condução e pela insuficiência de apoio e patrocínio políticos, determinantes para assegurar a sua implementação e afirmar a sua utilidade e relevância”, defende o TdC (Expresso, texto do jornalista Pedro Carreira Garcia)

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