sábado, março 13, 2021

Dos cruzeiros às tintas se fazem os novos donos dos media

 

A 24 de novembro os novos acionistas da Media Capital fizeram uma conferência de imprensa em que contestaram decisões tomadas pelo regulador dos media, a ERC. À agricultura e ao imobiliário, a família que detém o grupo Lusiaves juntou um novo investimento, tal como fez o cantor Tony Carreira à música ou o empresário Marco Galinha à distribuição e venda em máquinas de produtos como o tabaco. Aos cruzeiros (e a todos os seus negócios), o empresário Mário Ferreira adicionou um investimento num sector onde já tinha uma pequena experiência, como fez o empresário João Serrenho às tintas e vernizes da marca CIN. Que sector? Os media.

A Media Capital e a Global Media são as protagonistas das recentes mudanças na comunicação social, com os antigos ‘tubarões’ do programa de empreendedores “Shark Tank”, da SIC, à cabeça.

Mário Ferreira tornou-se em 2020 o maior acionista da Media Capital, com 30,22%, e conseguiu levar para a proprie­tária da TVI uma série de investidores de diferentes áreas de negócio, nomeadamente de indústrias sedeadas no Norte. Substituíram a espanhola Prisa que ao fim de várias tentativas vendeu 94,69% da Media Capital e saiu de Portugal. O negócio do dono da Douro Azul com o grupo espanhol foi esta semana alvo de uma decisão da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que defende que foi feito sem a autorização prévia obrigatória, mas que, ainda assim, abre portas a que as irregularidades sejam sanadas. Já Marco Galinha tem neste momento 29,75% da Global Media e um acordo para chegar à maioria do capital da empresa que edita o “Diário de Notícias” e o “Jornal de Notícias”.

A existência de estruturas com acionistas diversos de vários sectores, sem um grupo de controlo, como na Impresa, dona da SIC e do Expresso, ou na Cofina, proprietária do “Correio da Manhã”, vinha já sendo experimentada pelo “Observador” e pelo “Eco”. Aliás, alguns dos acionistas da Media Capital, como Mário Ferreira, Luís Guimarães, da Polopiqué, e João Serrenho, da CIN, são acionistas do jornal de informação financeira.

Este ano está previsto o lançamento de um semanário, que comprou a marca SOL, por um grupo de acionistas. Um deles, o gestor francês Patrice de Maistre, foi condenado a três anos de prisão por abuso de confiança e branqueamento de capitais. Na estrutura acionista da Media Capital também há quem esteja a contas com a justiça: Avelino Gaspar, dono da Lusiaves, foi acusado de falência dolosa e branqueamento de capitais.

TRANSPARÊNCIA PRECISA-SE

Se a chegada destes investidores traz dinheiro aos grupos de media e potencia novos investimentos, também levanta dúvidas: o que leva empresários de outros sectores de atividade a investir nos media, sector onde as receitas estão sob pressão há vários anos?

Arons de Carvalho, membro do Conselho Geral Independente da RTP, diz ter “alguma preocupação” com estas movimentações. “O aparecimento, de há uns anos a esta parte, de grupos empresariais que investem nos media e não são originariamente deste sector faz levantar a suspeita de que pretendem através desses investimentos não propriamente ter lucros e uma atividade rentável mas ganhar influência social e política, favorecendo indiretamente outros sectores de atividade económica onde estão”, afirma o também antigo vice-presidente da ERC.

Considerando que “esta suspeita não é fácil de confirmar”, Arons de Carvalho entende que falta mais informação para se poder entender a racionalidade destes investimentos. “Pode-se aumentar as regras da transparência no sector, por um lado, e, por outro, tentar assegurar a autonomia dos jornalistas, as suas liberdades face aos grupos empresariais onde trabalham”, afirma. Ressalva, por outro lado, que a chegada de capital aos media pode ser uma boa notícia se aumentar “a pluralidade de vozes, a independência dos jornalistas e as condições de sustentabilidade das empresas”.

Elsa Costa e Silva, professora do Instituto de Ciências da Universidade do Minho, também defende que os investimentos recentes devem ser acompanhados “com cuidado”, pois são acionistas “que não têm conhecimento deste mercado, que é muito particular”. E diz que, atendendo à atual conjuntura, “não se percebe muito bem a operação destes grupos. Se vierem com a perspetiva de sustentar os media portugueses, para não os deixar morrer porque são um ativo importante para a democracia e para o pluralismo, acho bem”. Mas, perante as dúvidas, pugna por uma maior atuação do regulador: “A ERC tem toda a cobertura legal para interrogar estes grupos e saber ao que vêm.” E deve acompanhar mais o trabalho das redações de forma a garantir a independência editorial.

SUSPEITAS “SAUDÁVEIS”

“Todas as suspeitas são legítimas quando vemos um grupo entrar num sector que atravessa dificuldades e que sabemos que tem um forte impacto na opinião pública. Estes ativos podem não ser importantes do ponto de vista económico, mas são importantes para a democracia e, por isso, temos de ter esta suspeição saudável relativamente a todos os que estejam no mercado dos media. Não é estar a acusá-los de nada, mas temos de acompanhar o seu funcionamento no dia a dia”, continua a professora.

Elsa Costa e Silva lembra que “não é propriamente novidade haver grupos de fora do sector a investir na comunicação social”. Foi o que aconteceu nos anos 90 com a Cofina, que era um grupo industrial, ou com a Sonae, que investiu no “Público” desafiada por um grupo de jornalistas. Mas nessa altura “o negócio estava em alta, os media eram um produto apetecível do ponto de vista económico, estávamos numa fase de expansão e ainda não havia grandes concorrentes como o Facebook ou a Google, que tiraram as receitas publicitárias aos media, fragilizando financeiramente as empresas do sector”.

Neste momento, muito se joga a nível europeu. “Vamos ver como vai ser regulada a atividade destas grandes tecnológicas. Se começarem a pagar aos meios de comunicação social pelo aproveitamento que fazem dos conteúdos, como na Austrália, o mercado pode mudar um bocadinho e pode justificar o investimento”, adianta.

Também a presidente do Sindicato dos Jornalistas (SJ) não tem dúvidas de que há falta de transparência nas mais recentes alterações acionistas. “Ficamos todos a pensar se não haverá tentativas de instrumentalização para montar áreas de influência”, diz Sofia Branco. “A informação deve ser tratada como um bem público e como tal a transparência e a fiscalização nos media deviam ter uma regulamentação mais eficaz”. Todas as entidades interessadas em entrar no sector deveriam explicar quais os seus objetivos para se poder aferir das suas intenções, e a Assembleia da República também devia estar envolvida de forma a escrutinar o que é feito com esse “bem público”, defende.

O SJ revela preocupação com o tema, tal como com a “excessiva concentração do sector”. E lembra o carácter transnacional de alguns investimentos, como o capital angolano que investiu nos jornais “Sol” e “i” ou o capital chinês na Global Media. “Tudo é mais complicado quando a regulação e a fiscalização têm de ir além-fronteiras”, acrescenta.

Ao Expresso, o secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media, Nuno Artur Silva, diz que “o Governo acompanha com atenção” as recentes mudanças acionistas, mas não quis fazer mais comentários atendendo a que se trata de negócios entre privados.

O Expresso questionou os principais acionistas da Media Capital sobre os motivos que os levaram a investir nos media, mas poucos quiseram comentar (ver caixa). Do lado da Global Media, Marco Galinha explica que a aposta que está a fazer se justifica porque acredita no sector e reconhece a sua importância para o país. Também contactou a Impresa e a Cofina, que recusaram comentar o assunto.

ACIONISTAS DE ÁREAS “RELACIONADAS”

Entre os principais acionistas da Media Capital está a Biz Partners (com 11,973%), veículo criado em setembro que junta empresários como José Santana, dono da empresa de eventos NIU e do restaurante Praia, e o cantor Tony Carreira. “O investimento e a energia colocados no projeto da Media Capital por parte da Biz Partners têm tanto de natural quanto de estratégico para os seus acionistas”, indica a empresa. “Temos experiências convergentes em áreas diretamente relacionadas com os media, tanto do lado dos maiores anunciantes nacionais como da parte das agências de meios, ativação e produção de conteúdos, por onde andamos e andámos durante grande parte das nossas vidas”, continua. Deste veículo saíram entretanto as imobiliárias IBG e Castro Group. “Quando se vive em democracia, a independência não depende dos interesses ou das experiências de cada um, depende do que cada um faz. E temos toda a confiança na transparência e na independência de quem dirige, com comprovado sucesso, a Media Capital”, acrescenta a Biz Partners. O Expresso contactou também Mário Ferreira e a Triun, que alegaram que, estando a decorrer uma oferta pública de aquisição sobre a Media Capital, “este não é o momento adequado” para falar sobre este investimento. Zenithodyssey e CIN também declinaram comentar, esta última porque defende que o investimento é do seu presidente (Expresso, texto dos jornalistas DIOGO CAVALEIRO e PEDRO LIMA e INFOGRAFIA de JAIME FIGUEIREDO)

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