“O livro do ex-ministro da
Economia é um testemunho da sua passagem pelo Governo, logo, uma visão
unilateral que serve para passar a sua mensagem. Editado após o fim do programa
da troika, mas ainda durante o mandato do Executivo do qual fez parte, mostra
as desavenças com Portas e Gaspar, revela que não confiava nos contas oficiais
do desemprego, e elenca os lóbis sectoriais. Poucos meses de ter sido nomeado
ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira publicou Portugal na hora da
verdade, e, por essa altura, este professor universitário, independente dos
partidos, já estava ligado ao PSD, ajudando, nomeadamente, Passos Coelho nas
negociações com a troika. Agora que saiu do Governo, e trabalha na OCDE, é a
vez de, como ex-ministro, editar uma nova obra, intitulada Reformar sem medo,
um independente no Governo. Editada pela Gradiva, chega esta semana às
livrarias.
É
um ajuste de contas com a história, e, através do seu olhar, das suas palavras,
apontamentos e memórias, somos conduzidos ao interior do Executivo formado pelo
PSD e pelo CDS, tendo como pano de fundo o plano de trabalhos que liderou
enquanto ministro. Ao todo, são 420 páginas, que olham também para o futuro, o
qual, diz, tem de passar por “um reescalonamento a longo prazo da dívida dos
países europeus mais endividados”. Além disso, defende, “se não baixarmos os
impostos das empresas e das famílias, o país nunca conseguirá atrair
investimento significativo.”
Sobre
o passado, revela os atritos com Vítor Gaspar, sublinha o seu desprezo por
Paulo Portas, e elenca, embora de forma pouco aprofundada, a forma como lidou
com os lóbis. Enquanto responsável pela pasta do Emprego, é também
surpreendente saber que não confiava nas estatísticas oficiais, tendo compilado
os seus próprios dados. Seguem-se excertos do livro, seleccionados pelo
PÚBLICO, sobre alguns dos temas abordados por Santos Pereira.
Sobre
ele próprio e o Governo
–
"(…) o principal sacrifício dos dois anos de governação foi familiar.
Houve muito menos atenção e muito menos tempo do que eu gostaria para passar com
os meus filhos e a Isabel, de modo que eles ressentiram-se e o meu casamento
ressentiu-se. Esse foi o verdadeiro custo, ou pelo menos o mais penoso, de dois
anos de Governo.”
–
“Reflectindo sobre o meu percurso na gestão do maior ministério da história da
democracia, penso que parece óbvio que os primeiros meses acabaram por
determinar um pouco o resto do meu período no Governo. O facto de ter sido um
independente que entrou para o Governo sem experiência política e sem aliados
políticos fez com que tivesse levado tempo a construir coligações e alianças.”
–
"(…) como fazer um contraponto ao Ministro das Finanças mais poderoso
desde Salazar seria sempre delicado, é de certa forma natural que houvesse uma
grande impaciência nos primeiros meses em relação ao ministro da Economia e do
Emprego.”
– “Como o ministro das Finanças era quase
intocável, e como o líder do segundo partido da coligação preferiu não lidar
com a troika e com as razões da crise, o descontentamento sobrou facilmente
para aquele que vinha de fora (o "emigrante"), aquele que não
conhecia a realidade do país (o "estrangeirado"), aquele que não
tinha a força política (que, aliás, nenhum outro ministro tinha) para enfrentar
as Finanças e a troika.”
–
“É verdade, isso sim, que eu não tive peso político para travar a saída da
AICEP do Ministério da Economia, um erro que viria a ser parcialmente colmatado
com a minha saída e a correspondente entrada do CDS para o ministério... Sim, é
verdade que eu não tive peso político para travar a subida do IVA da
restauração, até porque a troika e outros eram a favor de tal subida. Sim, é
verdade que não tive peso político para, durante largos meses, convencer a
troika, o Banco de Portugal, e o Ministério das Finanças que a falta de
financiamento das nossas empresas era o principal risco para o Programa de
Ajustamento".
–
"(…) É caso para perguntar: se, sem peso político, eu e a minha equipa
conseguimos tanto, o que é que aconteceria se tivéssemos tido peso político? A
resposta é relativamente simples: a reforma do IRC teria culminado na taxa mais
competitiva da Europa, os impostos não teriam aumentado como aumentaram em 2012
e muito menos em 2013, as rendas da EDP teriam sido cortadas ainda mais, a
AICEP não teria saído do Ministério da Economia e tínhamos tido mais e melhores
mecanismos de financiamento das nossas PMEs.”
Sobre
o desemprego
–
“Quando tomámos posse em Junho de 2011, já era mais do que patente que o
principal problema social que teríamos pela frente era o enorme aumento do
desemprego”
–
“(…) provavelmente ninguém, nem no Governo, nem na Oposição, pensaria que o
desemprego iria subir tanto. Ou, pelo menos, tão depressa.”
–
“Porque é que o desemprego aumentou tanto e tão rapidamente, então? Houve dois
factores principais: a contracção do crédito (…) e a severidade da recessão”.
–
“Como ficou rapidamente patente que as estatísticas existentes não eram muito
realistas, decidimos fazer as nossas próprias estimativas para os meses
seguintes, tendo em linha de conta a contracção do crédito (que, recordo,
alguns negavam estar a acontecer) e o quase colapso do sector da construção”.
“Quando chegaram os resultados, foi imediatamente evidente que as nossas
previsões eram bastante mais pessimistas do que as estatísticas oficiais.”
Sobre
a troika
–
“A chegada da troika foi fundamental para evitarmos a bancarrota e cair numa
situação de colapso financeiro, bancário, orçamental e económico, o que teria
tido consequências sociais desastrosas.” “(…) Ainda assim, isto não quer dizer
que tudo o que seja relacionado com a troika esteja certo ou deva ser aceite
por nós passivamente.”
–
“O crédito para as PMEs caiu mais de 20 mil milhões de euros, o que corresponde
a uma quebra de quase 15% do crédito registado no início de 2011. Uma redução
brutal e brusca do financiamento, que acabou por matar muitas das nossas
empresas endividadas, muitas delas desnecessariamente. (…) durante meses eu e
a minha equipa tentámos por todos os meios alertar a troika, o Ministério das
Finanças e o próprio Banco de Portugal para a calamidade que estava prestes a
acontecer. E se estes dois últimos acabaram por reconhecer o problema (até
devido à grande pressão que o próprio primeiro-ministro começou a exercer), a
verdade é que a troika nunca se mostrou realmente preocupada com o assunto, pelo
menos até muito tarde no Programa de Ajustamento.”
–
“[A] ausência de estímulos fortes ao investimento foi (e é) um dos grandes
erros do Memorando original.” “(…) E se o Governo de Sócrates não teve a
competência nem a visão para colocar este tipo de incentivos ao investimento no
Memorando, a verdade é que tanto a ortodoxia do Ministério das Finanças no XIX
Governo como a intransigência da troika impediram que esses incentivos pudessem
avançar nos dois anos seguintes. Um erro, como é óbvio.”
–
“Infelizmente, o funcionamento da Concertação Social foi algo que a troika
nunca percebeu muito bem, o que é natural, pois esta é uma instituição
portuguesa com as suas naturais especificidades.”
Sobre
as rendas da energia
–
“Encetámos uma série de negociações com os produtores eléctricos para tentar
chegar a acordo em relação aos cortes das rendas excessivas, algo que seria
sempre difícil, mas que teria de ser tentado. (…) Infelizmente, o ministro das
Finanças não concordou, pois não queria que nada pudesse pôr em causa o encaixe
da privatização da EDP. (…)
–
"Nos dias que se seguiram, o secretário de Estado Henrique Gomes falou
comigo e pediu a demissão do Governo, pois entendia que não tinha condições
políticas nem anímicas para continuar".
– "[Mais tarde] Artur Trindade [o novo
secretário de Estado da energia] e a sua equipa concentraram-se em encontrar
soluções para os cortes das rendas da energia. Só que desta vez eu achei que
devia também ter mais apoios para conseguir ir para a frente com esses cortes.
E o melhor apoio que poderia ter era a troika, que também estava empenhada em
cortar as rendas excessivas do sector. Só que as coisas teriam de ser feitas
nos bastidores e sem levantar suspeitas de que estávamos a preparar uma nova
investida contra os poderosos interesses do sector. Assim, falei privadamente
com os chefes de missão (…) encetámos inúmeras reuniões e contactos com todos
os produtores de energia sob o pretexto de a troika estar a ser muito
"fundamentalista" sobre o assunto. Dissemos-lhes ainda que, se eles
não concordassem com as nossas propostas de cortes, era provável que a troika
acabasse por ser ainda mais dura com eles.”
–
(…) pois quem ousa lutar contra os interesses instalados no sector da energia
pode ter a garantia mais do que absoluta de que o resultado será certamente
ataques nos jornais e nos restantes meios de comunicação social. Basta lembrar
que mais de um quarto da publicidade existente nesses meios de comunicação é
feita, directa ou indirectamente, pelos produtores de energia. (…) o ataque
contra quem ousar lutar contra estes interesses instalados nunca acontece
directamente, nem apareceria ligado à questão da política energética. E nós
sabíamos isso perfeitamente. (…) Meu dito, meu feito, pois, menos de uma semana
depois, os jornais anunciavam uma guerra sem tréguas entre o Ministério das
Finanças e o Ministério da Economia por causa da gestão do QREN, e que Vítor
Gaspar tinha ganhado. Surgiu então todo o tipo de especulação, de maneira que
nos dias seguintes um jornal anunciou que eu me tinha demitido. Uma notícia
totalmente falsa (…)
Sobre
os lóbis
–
"Se há algo que me orgulho de ter feito durante a minha governação foi a
luta contra os lóbis e os interesses instalados."
– "(…) tenho a certeza de que os lóbis
contra quem lutei também abriram garrafas de champanhe ou comemoraram quando eu
saí da Horta Seca. Espero que seja sol de pouca dura."
– “não tenho ilusões quanto a haver ainda
muito para fazer na luta contra os interesses e contra os lóbis no país.”
– “Nos próximos tempos, é absolutamente vital
que os governos mantenham e até reforcem o combate contra os lóbis e os grupos
de interesse em Portugal. É igualmente fundamental que uma estratégia
anticorrupção seja proposta e consensualizada entre os principais partidos
portugueses, de forma a acabar com os comportamentos menos transparentes, por
vezes altamente lesivos do interesse público.”
–
“Uma outra questão relacionada com as privatizações tinha a ver com as rendas
da energia. (…) Eu próprio tive alguns colegas de Governos europeus a
relembrarem-me ser importante não nos esquecermos da solidariedade que tínhamos
recebido da Europa, solidariedade que devia ser reconhecida nos processos de
privatização. Confesso que achei essas "lembranças", no mínimo,
indecorosas.” (...) “O termo do processo de privatização da EDP teve lugar no
final de 2011 e a proposta chinesa foi de tal forma superior às restantes que
não suscitou grande polémica em Conselho de Ministros. Só um ministro de opôs
e mostrou preferência pelo projecto alemão, tal como, lamentavelmente, foi
revelado pela comunicação social na manhã seguinte.”
–
“(…) um dos membros da minha equipa foi abordado por um representante dos
produtores da energia lhe disse que como sabia que estávamos muito ocupados e
não tínhamos recursos, eles próprios poderiam fazer as transposições de
directivas e que depois nos entregariam as leis para fazermos o que
entendêssemos. Pelo que parece isso já tinha acontecido no passado. Como é
óbvio, nós agradecemos mas declinámos a "gentileza"".
–
“Outro dos dossiês que fui aconselhado por muita gente a deixar de lado foi o
das contrapartidas militares. Porquê? Porque o tema das contrapartidas foi
sempre bastante controverso, envolvendo inúmeras suspeitas e acusações de
corrupção e de financiamento partidário. Por isso, para muitos, esse era um
assunto era proibido.”
–
“[Houve casos em que] tivemos de enfrentar com determinação as reivindicações
sindicais. Como já disse, a minha atitude foi sempre de grande disponibilidade
para o diálogo. Porém, também estive sempre pronto a ir para a guerra quando as
demandas dos sindicatos não eram razoáveis ou quando o país era posto sob
chantagem por esses sindicatos. Por isso, ao longo dos dois anos, tivemos ainda
inúmeros conflitos mais ou menos públicos com os sindicatos dos transportes
públicos, da TAP, dos estivadores, bem como outros sindicatos sectoriais. (…)
Perante uma ameaça de chantagem, a nossa reacção foi sempre abertura para o
diálogo, mas não ceder às ameaças. E foi assim que conseguimos debelar praticamente
todas as crises e embates que tivemos com o movimento sindical. Tivemos ainda
de enfrentar inúmeras manifestações, principalmente organizadas pelos
sindicatos mais afectos ao Partido Comunista, algumas das quais poderiam ter
facilmente ficado um pouco fora de controlo”.
– “Um dos outros grupos de interesse que foram
alvo de uma reforma alargada levada a cabo pelo Ministério da Economia e do
Emprego foram as Ordens e Câmaras Profissionais. Mais uma vez, esta alteração
só pode ocorrer por o Emprego estar junto com a Economia. As razões para esta
reforma são relativamente simples de explicar. Nos últimos anos, houve uma
proliferação desmesurada de Ordens e Câmaras Profissionais, bem como uma
regulamentação excessiva de muitas profissões.”
–
“(…) como é nosso costume, passámos do 8 ao 80 e, aos poucos e poucos, demos um
poder excessivo aos ambientalistas, principalmente no que diz respeito às suas
facções mais extremistas. Assim, ao longo dos anos, revimos legislação para
ambientalistas, mas demos uma primazia exagerada aos excessos dos mais radicais
em detrimento do desenvolvimento económico.(…) Defender o Ambiente não é
sinónimo de impor metas ambientais irrealistas ou regulamentações e
burocracias excessivas. Mas foi exactamente isso que se passou em Portugal nos
últimos anos.”
Sobre
Paulo Portas
–
“A crise política de 2013 ficou na memória dos nossos parceiros internacionais,
e será sempre um elemento de incerteza perturbadora na longa caminhada para
restaurarmos plenamente a nossa credibilidade.”
–
“Senti que a Pátria tinha sido traída e que o país tinha sido atirado à lama. E
pensei que tínhamos acabado de deitar o trabalho dos últimos dois anos para o
lixo.”
–
“Para mim era óbvio que a exoneração de Vítor Gaspar era totalmente distinta da
demissão de Paulo Portas por uma simples razão: enquanto Gaspar (por muito
poderoso que tivesse sido) era um independente que poderia ser substituído,
Portas era o líder do segundo partido da coligação governamental. Assim, a
demissão do líder do CDS poderia significar o fim do Governo e eleições
antecipadas.”
–
“O ministro [do CDS] disse que as coisas estavam muito mal entre os dois
partidos, que não havia confiança entre eles, e que o melhor mesmo era o CDS
sair do Governo e haver um acordo de incidência parlamentar até ao final da
legislatura”.
–
“Saí de Berlim convencido de que era muito provável que Paulo Portas
reivindicasse para si o Ministério da Economia, não só porque essa era uma
ambição sua desde o primeiro dia, mas também porque era preciso desviar as atenções
sobre o dano que tinha sido causado ao país. Acontecesse o que acontecesse, eu
tinha decidido e tinha comunicado à minha família que não havia condições para
continuar no Governo se Paulo Portas permanecesse no Executivo. Há limites que
não devem e não podem ser ultrapassados.
–
“(…) A conversa com o primeiro-ministro [no momento de saída do Governo] foi
bastante cordial e esclarecedora (…) Só achava que o Ministério da Economia e
do Emprego devia ter ido para o PSD. Dar tudo e mais alguma coisa a quem tinha
feito o que fez não tinha sentido. Como já disse, um princípio básico quando se
está sob chantagem é que nunca se deve ceder.”
–
“No encerramento do debate do Estado da Nação de 11 de Julho mantive a minha
compostura e fiquei sentado a ouvir o discurso de alguém que fez o que fez ao
país. E que ainda teve a coragem de citar Sá Carneiro para dizer que o
interesse do país estava à frente dos interesses partidários, e que estes
estavam à frente dos interesses pessoais. Quando tinha feito exactamente o contrário.
Confesso que a decisão de assistir a esse discurso foi dos momentos mais
difíceis que tive nos dois anos de governação.
–
"Eu sei que política é política. E que, por vezes, é preciso engolir
sapos para atingirmos os nossos objectivos. Contudo, há limites. Por isso, uns
dias mais tarde, no debate da moção de censura apresentada pelos Verdes, quando
a presidente da Assembleia da República anunciou que Paulo Portas ia
discursar, eu saí do hemiciclo e só reentrei quando o discurso acabou. Na
tomada de posse dos novos ministros optei igualmente por não ir, pois
recusei-me a apertar a mão a alguém que tinha feito algo tão prejudicial para o
país.”
Sobre
a dívida pública
–
“Não é com os programas de ajustamento actuais que vamos lá. Podemos até ganhar
algum tempo, mas não é assim que debelaremos a situação. E se os programas de
ajustamento não resolvem definitivamente o problema da dívida, o que é que se
pode fazer? Como poderá ser resolvido todo este elevadíssimo endividamento?
Sinceramente, penso que a crise da dívida europeia só será resolvida com um
reescalonamento a longo prazo da dívida dos países europeus mais endividados”
Sobre
a crise
–
"(…) para que seja possível sair da crise mais rapidamente, não tenho a
menor dúvida de que:
1)
terá de haver uma solução europeia para resolver a crise da dívida;
2)
terá de haver reescalonamento dessa mesma dívida;
3)
teremos de continuar a diminuir a despesa do Estado nos próximos anos e fazer
uma verdadeira reforma da Segurança Social;
4)
teremos de continuar a consolidação e a contenção orçamentais no futuro
próximo;
5)
terá de haver uma estratégia de fomento industrial e económico relativamente
consensualizada entre os principais partidos políticos e forças sociais;
6)
terá de haver uma continuação da aposta nos sectores produtivos e no
aproveitamento dos nossos recursos naturais. E, claro, teremos de continuar a
investir na educação, na inovação, e na formação profissional virada para o
contexto de trabalho. Ao mesmo tempo, e para reanimarmos a economia e atrairmos
mais investimento, é fundamental baixarmos os impostos e cortarmos a burocracia
do Estado central e local. Se não baixarmos os impostos das empresas e das
famílias, o país nunca conseguirá atrair investimento significativo. É tão
simples como isso." (Texto do jornalista do Público, LUÍS VILLALOBOS, com
a devida vénia)