quarta-feira, fevereiro 17, 2021

E se o BCE perdoasse a dívida aos países?

 


Se Christine Lagarde aceitasse a proposta de uma centena de economistas europeus, entre eles Thomas Piketty e Francisco Louçã, para que o Banco Central Europeu (BCE) anulasse os quase €3 biliões que detém em dívida pública dos países do euro, o nível de endividamento português cairia para perto de 100% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo as contas do Expresso (ver gráfico).

O perdão daria, no caso português, uma folga ao longo de vários anos de €68 mil milhões, que é o total da carteira de dívida portuguesa que o BCE detém atualmente, e cujo prazo médio de vencimento é de sete anos. É claro que Lagarde já disse, no ano passado, que nem pensar. “Os Tratados proíbem-no. Ponto final.”

Esta proposta libertaria um montante que é superior em uma vez e meia à soma que virá para Lisboa das subvenções da chamada ‘bazuca’ da Next Generation (cerca de 13 mil milhões) com os fundos do Quadro Financeiro Plurianual da União até 2027 (cerca de 30 mil milhões).

Essa liquidez adicional aumentaria a “margem de manobra orçamental, já que o Ministério das Finanças faz tudo para que as respostas orçamentais se façam pelo mínimo”, diz José Reis, coordenador do Observatório sobre as Crises e Alternativas em Coimbra. Se somarmos os mais €20 mil milhões que o BCE deverá comprar este ano, a dívida nas mãos de Lagarde será quase o dobro do empréstimo que falta pagar aos dois fundos europeus do resgate pela troika.

O que os economistas europeus do manifesto propõem é que o BCE, no momento em que as obrigações que detém cheguem ao seu vencimento, as troque por novos títulos sem prazo definido e até sem pagamento de um juro periódico, assumindo essas perdas. Ou, no mínimo, que trocasse a carteira por dívida de muito longo prazo, o que recorda o que Portugal conseguiu na reestruturação da dívida em 1902 ao convencer os credores externos a aceitar novos títulos amortizáveis dali a 99 anos.

SER OU NÃO SER ILEGAL?

Mas a palavra “anulação” da dívida provoca logo calafrios e as discordâncias entre os economistas portugueses são óbvias. “Não consigo levar isto sequer a sério. Seria uma claríssima monetização da dívida pública e retiraria a independência ao BCE”, diz, à partida, Ricardo Reis, professor na London School of Economics, e colunista do Expresso.

Por seu lado, o académico francês Éric Dor diz que não passa sequer no crivo da legalidade. Viola a letra dos Tratados, que proíbe inclusive que o BCE atue a descoberto, e vai contra os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia. Este último, recorda Dor, aceitou o programa lançado por Mario Draghi na condição de o BCE “manter permanentemente em aberto a possibilidade de revender os títulos no mercado”. Ora, uma dívida transformada em perpétua seria uma clara violação, diz o professor da Universidade de Lille, em França.

Francisco Louçã, professor no ISEG em Lisboa e colunista do Expresso, que é subscritor do manifesto, considera que a opção de trocar os títulos por nova dívida sem prazo “é a tecnicamente mais fácil e, porventura, a mais indiscutível do ponto de vista legal”. Os proponentes da anulação alegam, ainda, que o BCE poderia “funcionar com fundos próprios negativos”, tapando o buraco das perdas com “a criação de moeda, o que está previsto pelo protocolo nº4 anexo ao Tratado sobre o funcionamento da União Europeia”. O economista Abel Mateus vê na operação o risco de descredibilização total do BCE e de convite ao disparo da inflação. “Até houve alguns casos na América Latina numa situação temporária com inflação elevada à mistura”, diz Mateus.

No entanto, o ex-ministro Eduardo Catroga adverte que “uma parcela da dívida pública vai tornar-se na prática dívida perpétua, mesmo que tal não seja oficialmente admitido”. O economista acrescenta que os próprios mercados acabarão por “interiorizar” essa situação.

PROPOSTA CONTRAPRODUCENTE

“A proposta é até contraproducente”, finaliza Éric Dor, pois “o esquema atual tornou o endividamento quase gratuito”. O juro implícito, no caso das emissões portuguesas em 2020, desceu para um mínimo de 0,5%. Além do mais, permite um circuito em que o sistema dos bancos centrais do euro tem lucros — quase 10 mil milhões em 10 anos. Os lucros são tributados, a favor do fisco, e os bancos centrais distribuem dividendos aos governos. O economista francês finaliza chamando a atenção para o programa de reinvestimentos que o BCE aplica desde 2017. Este ano, vai reinvestir 80,6 mil milhões, incluindo a parte que detém na obrigação do Tesouro português que vence em abril. Na prática, é uma forma de reescalonar a dívida.

O problema, recorda Louçã, é quando até os reinvestimentos forem descontinuados. O cenário é fácil de imaginar: “A não existir mais tal programa, o valor do juro poderá ser substancialmente alterado e fica feito o convite a operações especulativas contra a dívida de alguns países. Esse cenário destruiria o euro.” (Expresso, texto do jornalista JORGE NASCIMENTO RODRIGUES)

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