quarta-feira, fevereiro 17, 2021

Afinal, como se fazem os rankings que medem as liberdades?

 


Prioridade é que resultados sejam independentes e imunes a influências externas. A credibilidade é o segredo do negócio. Por detrás de uma “casa” com tradição e prestígio reconhecidos ao longo de décadas há um contexto de trabalho, uma equipa e uma metodologia. Porém, ao contrário das análises políticas, comentários ou previsões de tendências, que surgem normalmente associados ao nome de um autor, os índices que medem a ordem do mundo cultivam o anonimato.

Dito de outra maneira, o nome do autor é conhecido, porém ele é a verdadeira ponta do icebergue. Até se chegar à versão que leva a sua assinatura, há uma equipa que é menos mencionada e uma série de procedimentos de verificação que são impossíveis de seguir ou identificar na redação final.

No início de fevereiro foi publicado o “Índice da Democracia 2020 — Na doença e na saúde?”. Esta “fotografia do estado da democracia no mundo em 165 países e dois territórios”, feita anualmente desde 2006, provocou particular polémica nos países que viram a sua “categoria” cair no ranking global da qualidade da democracia. Foi o caso de Portugal. E de França, para mencionar a região da Europa Ocidental e a curta lista de “verdadeiras democracias”, que assim diminuiu.

A irritação, ou preocupação, e subsequente reação devem-se, antes de mais, ao facto de o estudo ser feito pela Economist Intelligence Unit (EIU), empresa de análise e investigação irmã da revista “The Economist”, que desde 1946 “ajuda empresas financeiras e Governos a compreenderem o modo como o mundo está a mudar e como isso cria oportunidades a aproveitar e riscos a gerir”. Depois, porque é uma aferição aguardada todos os anos por interessados de origens variadas, como Governos, partidos políticos que pretendem ganhar eleições ou manter-se no poder, investidores ou economistas.

Como o prestígio se constrói também da experiência e do reconhecimento dos pares, o “Índice da Democracia 2020” revela a sua metodologia explicando divergências relativas ao conceito de democracia utilizado pela organização congénere Freedom House, com sede nos Estados Unidos, que ausculta o estado das democra­cias desde 1970. Critérios, categorias e pontuações explicadas, a EIU fornece razões para as nuances de classificação dos países entre as suas “medidas” e as “medidas” utilizadas pela Freedom House.

“Somos independentes do Governo, de empresas e de qualquer interesse ou influência” e “os resultados ­anuais não são partilhados com nenhum Governo ou órgão de comunicação social antes da publicação”, explica ao Expresso a editora do “Índice da Democracia 2020”, Joan Hoey.

Para se ser credível há que ser imune à influência. E, para manter essa imunidade, o índice é compilado por especialistas de cada país, recrutados pela divisão de Análise de País da EIU. “Não consultamos Governos nem quaisquer organismos com vista à compilação do índice”, esclarece a editora, acrescentando a característica única da análise que fazem: “Além das verificações dos nossos peritos, usamos sondagens de opinião pública, sobretudo do World Values Survey, e também de outras fontes. Os indicadores baseados nestas sondagens são usados principalmente nas categorias ‘participação pública’ e ‘cultura política’ do índice.”

O MEU NOME É L., SÓ L.

Apesar de preferir não revelar o nome, L. descreve ao Expresso a forma como foi recrutada para participar na secção dedicada à Macedónia do relatório “Nations in Transit”, que fez durante quatro anos para a Free­dom House. A jornalista macedónia foi proposta por alguém, que nunca conseguiu identificar, e só depois contactada pela organização. Um corpo de perto de 10 especialistas avalia os conteúdos redigidos pelos relatores, aferindo o cumprimento dos critérios em todos os capítulos.

“Os autores como eu nunca sabem quem são esses especialistas que fazem as sucessivas revisões nem quem são os peritos nacionais. Só percebi que os meus relatórios foram revistos por quatro especialistas macedónios por causa do tipo de comentários que fizeram”, conta L. ao Expresso.

Um dos seus principais papéis é “avaliar se o meu relatório é tendencioso ou não, se sou objetiva, se os factos estão corretos ou se me esqueci de algum acontecimento importante”, acrescenta. O secretismo do processo mantém-se até depois da última das sucessivas versões que o relatório vai tendo, altura em que os autores são chamados a dar notas. Estas descrevem o progresso ou o retrocesso dos países nas categorias aplicadas, como seja a liberdade de expressão, sistema judicial, governação local ou nacional.

Depois de ajustado o texto em conformidade com os comentários dos peritos, estes reveem-no e fazem os ajustes das notas, se for caso disso. “Nunca vai além de meio ponto de ajuste, que me lembre”, acrescenta L. A leitura final sai das mãos dos relatores e fica nas do corpo de revisores e nas dos peritos nacionais.

O processo de passagem dos crité­rios a notas é bastante técnico. O “Índice da Democracia” do EIU usa 60 indicadores em cinco categorias: processo eleitoral e pluralismo, liberdades cívicas, funcionamento do Governo, participação política e cultura política.

DE DEMOCRATA A AUTORITÁRIO

“Os nossos analistas de país pontuam cada país pelos 60 indicadores e recebem indicações adicionais para as pontuações, em particular no tocante a desenvolvimentos internacionais importantes que afetem o índice”, explica Joan Hoey. Refere-se, por exemplo, a restrições às liberdades civis impostas pelos Governos para fazer frente às emergências sanitárias de 2020.

De seguida usam-se categorias dicotómicas, como 1-0 ou sim e não, e um sistema de notas de três pontos (0, 0,5 e 1). Este permite “preencher as áreas cinzentas dos 60 indicadores”, explica Hoey. Cada categoria tem uma escala de 0 a 10 e o índice resulta da média simples dos indexes das cinco categorias. “É assim que chegamos à nota de cada país, entre as 10 existentes. E é com base nessa nota total que os paí­ses são classificados num dos quatro tipos de regime”: democracias plenas (mais de 8), democracias com falhas (mais de 6 e até 8, inclusive), regimes híbridos (mais de 4 e até 6, inclusive) e regimes autoritários (até 4, inclusive).

Pontuações à parte, Joan Hoey alerta para a importância de ver restauradas as liberdades civis assim que a emergência da pandemia recue. “O objetivo do ‘Índice da Democracia’ é fornecer uma medida robusta e independente do estado da democracia no mundo e lançar luz sobre os desenvolvimentos positivos e negativos”, explica.

O relatório debate as “causas da recessão democrática mundial” em 2020 e, ao mesmo tempo, “reconhece os fatores excecionais que conduziram ao recuo das liberdades democráticas”. O relatório também debate o modo como a pandemia “expôs as falhas democráticas existentes e a forma como o público foi excluído dos processos de decisão democráticos nas décadas mais recentes”, conclui.

ÍNDICE 2020

- 26º em 165 é o lugar de Portugal no mais recente estudo. País cai da categoria de democracia plena para a de democracia com falhas

- 13ª edição do Índice analisa a forma como a pandemia de coronavírus enfraqueceu as democracias

- 5 categorias, 60 indicadores e notas de 1 a 10 avaliam o estado da democracia e da liberdade dos governos de todo o mundo (Expresso, texto da jornalista CRISTINA PERES)

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