O velho dizer popular que assegura que “quem não tem dinheiro não tem
vícios” tem raízes antigas mas não deve ser levado demasiado à letra. Pode
dar-se o caso de, quem dinheiro não tem, arranjar forma de o encontrar e,
assim, sustentar os seus vícios. Se for um país que quer atrair multinacionais
basta oferecer-lhes uma série de benesses e pagá-las com o dinheiro dos outros.
Dito assim até pode parecer forte, mas é o que acontece sempre que a Irlanda ou
outros países europeus dão benefícios fiscais com dinheiro que não têm e deixam
a fatura para a vizinhança pagar. Quando vários países europeus chumbam, como aconteceu na semana passada,
uma diretiva para tornar mais transparentes as operações das multinacionais na
Europa, é disso que estamos a falar. De um grupo de países que não quer que se
saiba o que andam a fazer. ‘Roubar’ diariamente milhões de euros em impostos
aos vizinhos é muito rentável e não dá para todos. Não vale a pena
esconderem-se atrás de expressões cifradas como “preços de transferência”,
“royalties” e outras que tais, que, na prática, são verdadeiros vistos gold
para os lucros circularem livremente na Europa e escapar à tributação.
A Europa tem um gigantesco elefante na sala: os lucros das
multinacionais que fogem aos impostos com ajuda de alguns países.
É como se existisse uma espécie de variante da lei da atração universal,
em que, quase misteriosamente, os lucros são atraídos por aqueles países onde
pagam pouco ou nenhum imposto. Como foi possível que Einstein deixasse escapar
algo tão óbvio? É só comparar o volume de negócios de gigantes como a Google, o
Facebook ou outros semelhantes em Portugal com os impostos que pagam para se
perceber a dimensão do esquema. Claro que o Estado português também não está
isento de truques. Também tem o regime de residentes não habituais, que tanto
tem desagradado a vários dos nossos parceiros europeus. Mas achar que umas
centenas de reformados são o mesmo que milhares de milhões de euros a fugir
todos os anos é não (querer) ver o elefante que está bem no meio da Europa.
Em 2016, quando a Comissão Europeia obrigou a Apple a devolver
benefícios fiscais de vários anos à Irlanda, o paquiderme pesava 13 mil milhões
de euros. Praticamente, o equivalente a um ano de IRS ou IVA em Portugal. Claro
que Dublin não o queria receber. Talvez por ter bem consciência de que o
dinheiro não era seu. Na verdade, segundo contas avançadas então pelo “Financial
Times”, o valor que Bruxelas estava a obrigar a empresa americana a pagar — uma
decisão que o CEO da empresa, Tim Cook, chamou “political crap” (porcaria
política) e motivou uma carta de mais de 100 empresários americanos
desagradados — correspondia a 38 vezes o total pago no conjunto dos restantes
países da União Europeia. Em relação aos impostos pagos pela empresa em
Portugal, é o equivalente a 7647 anos de cobrança. É caso para dizer que, ao
contrário da atração dos lucros pelos paraísos fiscais que devia ser estudada
pela astrofísica, a análise à receita do Fisco português com estas empresas é
mais do ramo da Física Quântica. E o caso da Apple é apenas uma pequena parte
do problema. Há muitas mais empresas a fazer o mesmo.
Perguntar-se-á o leitor: o que ganham então os países com estas
políticas se chegam até a não cobrar impostos em alguns casos? No caso da
Apple, a resposta tem meras quatro letras: Cork. Foi a primeira sede da empresa
fora dos EUA, é lá que funciona a Apple Sales International, que fatura tudo o
que se vende fora do mercado americano, e é lá que a empresa tem mais de 3000
trabalhadores. Parece pouco para uma fatura de 13 mil milhões de euros? Nem por
isso. É até bastante barato. Desde que seja com os impostos da vizinha (texto
de opinião do jornalista do Expresso, João Silvestre)
P.S.: A Web Summit, com quem o Estado português gasta milhões, continua
sem apresentar contas. Onde está a sede da empresa que a organiza? Aceitam-se
apostas.
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