domingo, dezembro 29, 2019

Pobreza: Metade da população está a perder peso no rendimento nacional desde 1984 e ganha menos do que os 10% mais ricos

Desigualdade
As desigualdades na sociedade portuguesa agravaram-se nos últimos 40 anos, apesar da adesão à União Europeia e à Zona Euro. O facto mais chocante é que os 10% mais ricos da população ficaram ainda mais ricos, viram o seu peso no rendimento nacional subir 5,3 pontos percentuais desde o princípio dos anos 80 do século passado. Em contraste flagrante com os 50% de mais baixos rendimentos, ou seja, metade da população, que registou uma redução de 5,2 pontos percentuais no bolo total, segundo os dados da World Inequality Database (WID), localizada na École d’ Économie de Paris. A WID é um projeto sobre as desigualdades à escala mundial liderado pelo economista francês Thomas Piketty, que dispõe de uma enorme massa de dados, incluindo sobre a distribuição do rendimento para Portugal até 2016 (ver gráfico). Não conta, contudo, com informação sobre a desigualdade na distribuição de riqueza em Portugal e na esmagadora maioria dos países, fornecendo apenas dados para Estados Unidos, França, Rússia, China e Índia. A dificuldade no acesso a informação fiscal oficial na maioria dos países tem limitado a avaliação da riqueza, ou seja, do património fixo dos cidadãos. “Uma das principais limitações que temos em Portugal é que os investigadores não têm tido acesso aos dados das Finanças”, sublinha Carlos Farinha Rodrigues, professor do ISEG em Lisboa, e coordenador do projeto Portugal Desigual.
Pobres perdem mais em Portugal
A situação portuguesa não escapa ao que se tem observado noutras economias desenvolvidas, mas apresenta algumas peculiaridades, para pior e para melhor. O trambolhão de 5 pontos percentuais é mais do dobro do que ocorreu aos 50% de mais baixos rendimentos na União Europeia naquele período de 40 anos. Ou seja, o conjunto dos pobres e remediados em Portugal, que são metade dos grupos de rendimento, perdeu mais do que na União a que o país pertence oficialmente desde 1986.
Os do topo em Portugal recuperaram rapidamente das cinco crises que rebentaram nesse longo período, e nomeadamente das duas últimas — da recessão global de 2009 e da crise da dívida que se seguiu. Mas, os de baixo, desde 1982, estão sempre a perder peso no rendimento, a tal ponto que os 10% mais ricos detêm agora 32,8% do rendimento, muito mais do que os 50% de menos rendimentos, cuja fatia caiu para 21,9%. Os mais ricos dos ricos, que ocupam 1% do topo, ficaram também mais ricos, subindo de 6,6% para 7,4% no rendimento do país. Estas conclusões podem estar aquém da realidade. “Não há informação detalhada sobre a parte superior da distribuição, sobre os mais ricos. Há, por isso, na informação oficial uma subavaliação dos rendimentos no topo”, alerta Farinha Rodrigues.
Mas há um facto surpreendente que se destaca da análise dos dados da WID: a classe média portuguesa aguentou-se. Há 40 anos tinha a maior fatia dos rendimentos, na ordem de 45,4%, e continua a tê-la, tendo descido ligeiramente para 45,3%. O que distingue o caso português do conjunto da União Europeia (UE), onde os grupos intermédios de rendimento perderam, nos últimos 40 anos, 2,1 pontos percentuais, enquanto os 10% mais ricos engordaram 5 pontos percentuais. Conseguiu inclusive passar pelo período de crise mundial e da dívida portuguesa com um peso no rendimento superior ao que registava em 2007. O contraste entre o declive no peso da fatia da classe média e a subida acentuada na parte dos ricos à escala mundial levou os economistas Christoph Lakner e Branko Milanovic a falarem de um efeito ‘tromba de elefante’ (em que a parte final da tromba está muito empinada). Outros falam inclusive de um disparo no peso dos mais ricos que se parece mais com o ‘pescoço’ muito longo do monstro da lenda escocesa do Lago Ness. Ora, esse contraste não se verificou em Portugal. Além disso, em Portugal o peso nos rendimentos por parte da classe média e da classe baixa em conjunto é superior ao registado na UE — 67,2% e 66,2%, respetivamente. Outro facto curioso é que os Açores e a Madeira, com o poder de compra por habitante mais baixo do país, são as regiões com maior desigualdade.
AS REGIÕES MAIS DESIGUAIS
Os Açores são a região do país onde o fosso entre ricos e pobres é maior, se a desigualdade for analisada pelo coeficiente de Gini, para dados de 2018. A distância para a média do país é de quase 6 pontos percentuais. No pódio da desigualdade seguem-se a Madeira, a Área Metropolitana de Lisboa (AML) e o Algarve. As menos desiguais são o Centro e o Norte. Para dados de 2017, os Açores têm um poder de compra per capita superior ao da Madeira, mas estão 30% abaixo do registado para a AML. Os concelhos com maior poder de compra são Lisboa, Porto, Oeiras, Faro, Coimbra e Aveiro.
Espanha e Itália mais desiguais
Apesar dos contrastes portugueses, Espanha, Grécia e Itália são atualmente sociedades ainda mais desiguais, e a própria Alemanha, o farol da zona euro, está quase colada a Portugal, se tomarmos em linha de conta os coeficientes de Gini em 2018, que medem a desigualdade na distribuição de rendimentos. A desigualdade tinha vindo a diminuir acentuadamente depois da crise de 2003, mas foi interrompida pelo período do resgate da troika. Essa rutura pode ser observada tanto na evolução do coeficiente de Gini como no rácio entre o rendimento dos 20% do topo e os 20% de menos rendimentos. Mas o quadro de desigualdades em Portugal não se fica pelas dimensões captadas pelo coeficiente de Gini ou pelas séries do projeto de Piketty. É muito mais vasto (ver Quadro de Desonra).
QUADRO DE DESONRA
► 1,8 milhões de portugueses em risco de pobreza (17,2% da população) em 2018. No pico do resgate eram mais de 2 milhões
► 528 mil são assalariados considerados abaixo da linha de pobreza em 2018. São 10,8% da população empregada. Em 2015 registaram um pico de 10,9%
► 141 mil trabalhadores a tempo parcial subempregados no terceiro trimestre de 2019, os mais precários dos precários. No pico do resgate chegaram a 260 mil
► 154 mil desempregados de longa duração no final do terceiro trimestre de 2019. No pico da troika chegaram a 480 mil. A maioria está desempregada há mais de dois anos
► 1 milhão e oitenta mil receberam salário mínimo em 2018. São 22,1% da população empregada. O pico, neste século, foi em 2016 com 23,3%, mais do que nos anos do resgate
A desigualdade crescente nas próprias economias desenvolvidas tornou-se um tópico político escaldante, nomea­damente na atual campanha eleitoral para as presidenciais nos EUA em 2020. Entre os economistas, o tema ganhou projeção, de novo, após a publicação do mais recente livro de Piketty em França, “Capital et Idéologie”, a que o Expresso já se referiu, e além-Atlântico a obra de “The Triumph of Injustice: How the Rich Dodge Taxes and How to Make Them Pay”, dos economistas franceses Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, da Universidade da Califórnia em Berkeley, está a influenciar os candidatos mais à esquerda nas presidências norte-americanas. Saez e Zucman fazem parte do projeto WID. Em Portugal, a desigualdade regressou à ribalta com o debate sobre a política de rendimentos do trabalho, em mais uma ronda de negociações na concertação social, e com a polémica acerca da política fiscal no quadro do Orçamento de Estado para 2020. Políticas como a progressividade nas taxas de impostos e englobamento de todos os tipos de rendimento de modo a tributar efetivamente a riqueza têm estado no centro das propostas de Piketty, Saez e Zucman.
Apesar da recuperação salarial e de emprego, os mais pobres ainda estão 5% abaixo do rendimento que tinham em 2009
“Durante o período da crise portuguesa tivemos, de facto, uma situação muito particular. O rendimento em todos os grupos desceu bastante, mas no caso dos 20% mais pobres desceu muito mais do que no resto”, diz Carlos Farinha Rodrigues, coordenador do projeto Portugal Desigual.
O académico sublinha, depois, que “o que marcou aquele período foi uma queda global dos rendimentos na ordem de 14%, mas o rendimento dos de baixo caiu muito mais, entre 15% até 29%, nos mais pobres dos pobres”. E acrescenta: “O aumento brutal do desemprego afetou sobretudo a parte inferior da distribuição do rendimento. O congelamento do salário mínimo, a redução do Rendimento Social de Inserção e a contenção nas prestações sociais desempenharam, também, o seu papel.” “A bateria de medidas de política adotadas pela troika e pelo governo PSD-CDS foi muito eficaz a embaratecer o fator trabalho, o tal processo de desvalorização interna, e, por causa disso, a desequilibrar a distribuição do rendimento”, sublinha, por seu lado, Alexandre Abreu, também professor do ISEG.
Melhoria depois do fim do resgate
A situação melhorou depois da saída do resgate. Os três grupos dos rendimentos mais baixos recuperaram, até 2017, entre 15% e 35%, enquanto a média global registou um ganho de 10%, acentua Farinha Rodrigues. “A recuperação de emprego, a subida do salário mínimo, o aumento das prestações sociais e a devolução de rendimentos foram determinantes”, refere. No entanto, apesar de tudo isso, em 2017, os mais pobres dos mais pobres ainda estavam 5% abaixo do rendimento que tinham em 2009, de acordo com os dados de Farinha Rodrigues.
Outra das tendências de longo prazo que se acentuou com a crise recente foi a queda do peso dos rendimentos do trabalho no Produto Interno Bruto (PIB) português, refere Alexandre Abreu. O economista escolheu a série da Comissão Europeia comparando os rendimentos do trabalho em relação ao PIB a custo de fatores para salientar que atingiram em 2016 um mínimo desde os anos 60 do século passado (ver gráfico nesta página). O peso caiu para 59% do PIB, um nível tão baixo jamais atingido nos últimos 60 anos, a tal ponto que o peso atual é muito inferior ao da última década da ditadura. Desde o início do século XXI foi a quinta maior queda entre 180 países abrangidos pelas estatísticas da Organização Internacional do Trabalho. “Isso deveu-se sobretudo às sucessivas alterações à legislação laboral no sentido da fragilização da posição negocial dos trabalhadores”, sublinha o académico. A trajetória inverteu-se, entretanto, e o peso deverá atingir 60,8% no final deste ano, segundo as projeções da Comissão Europeia, mesmo assim a larga distância dos 67,2% de 1960 (Textos Jorge Nascimento Rodrigues e Sónia M.Lourenço do Expresso)

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