segunda-feira, dezembro 30, 2019

Vergonhosa bandidagem: Juiz Carlos Alexandre "estupefacto" com desaparecimento de 60 milhões de euros do arresto do caso BES/GES

Obrigações apreendidas à ordem dos autos do caso BES foram declaradas extintas em 2016, mas Novo Banco só informou a Justiça em 2019. MP abre inquérito e Carlos Alexandre diz que nunca viu nada assim. É um caso raro — único mesmo, segundo o juiz Carlos Alexandre. Cerca de 60 milhões de euros de títulos obrigacionistas que tinham sido apreendidos à ordem do processo principal do caso BES desapareceram quando estavam sob custódia do Novo Banco. Ou melhor: os títulos foram declarados extintos por emitentes e credores, o que quer dizer que já não valem nada — e a Justiça ficou com menos 60 milhões de euros para indemnizar no futuro os lesados do BES.
“Em 15 anos, nunca me tinha sido dado a conhecer que, após uma apreensão, o que estava à guarda do fiel depositário [neste caso, o Novo Banco] fosse movimentado sem conhecimento do tribunal.” As palavras de “estupefação” são de Carlos Alexandre e constam de um despacho judicial de 22 de novembro no qual, após promoção do Ministério Público, o juiz ordenou ao Novo Banco o depósito de uma caução de 60 milhões de euros para repor o valor total das obrigações que foram declaradas extintas.
A instituição liderada por António Ramalho vai contestar a decisão junto do Tribunal da Relação de Lisboa por alegar que não tem qualquer responsabilidade na matéria. “A atuação do banco é apenas de mero custodiante, pelo que é totalmente alheio” à extinção dos títulos por não ser nem emitente da obrigação nem credor, defende fonte oficial do Novo Banco.

Contudo, os procuradores que investigam a gestão do BES e do GES, e que ainda não conseguiram encerrar nenhum dos sete inquéritos abertos desde 2014, decidiu abrir uma nova investigação para determinar as circunstâncias da extinção dos títulos arrestados que estavam à guarda do Novo Banco por ordem do juiz Carlos Alexandre.
Títulos terão sido adquiridos com dinheiro desviado dos clientes do BES
Tudo começou quando o procurador Antero Taveira, que está encarregue em exclusividade de zelar pela boa gestão dos bens apreendidos no âmbito do caso BES/GES, solicitou ao Novo Banco um ponto da situação sobre os títulos obrigacionistas depositados em nome da sociedade veículo Zyrcan Hartan Corporation no Espírito Santo Bank Panamá.
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A Zyrcan era uma entidade do universo Eurofin — sociedade de direito suíço que terá sido cúmplice de Ricardo Salgado nos atos de gestão fraudulenta que são imputados ao ex-líder executivo do BES. Na prática, a Zyrcan terá investido fundos alegadamente desviados dos clientes do banco, estando assim envolvida em alegados crimes de abuso de confiança, burla qualificada, fraude fiscal e branqueamento de capitais. Daí todos os fundos e títulos dessa sociedade estarem apreendidos à ordem dos autos do caso BES/GES.
Ora, após a notificação do Ministério Público, o Novo Banco informou a 8 de novembro que os títulos da Zyrcan tinham sido declarados extintos. Que títulos eram estes? E como foram declarados extintos? Segundo a informação prestada pelo Novo Banco ao Ministério Público, os factos são os seguintes:
A extinção dos títulos obrigacionistas do Le Meridien (a emitente), avaliados em 8.890.000 euros, foi acordada a 17 de junho de 2016 entre a conhecida cadeia de hotéis franceses, a Martz Brenan (outra entidade do universo Eurofin) e a ECI Finance. Tal extinção foi decretada por novação do empréstimo. Isto é, terá sido constituída uma nova obrigação que substitui a que foi extinta. Na prática, ter-se-á trocado as obrigações Le Meridien por outros títulos (que ainda não foram identificados), sendo que os primeiros deixaram de ter valor.
Também a 17 de junho de 2016 verificou-se outro acordo de extinção dos títulos obrigacionistas da sociedade luxemburguesa EI Europa Imobiliére — títulos estes que estavam avaliados em 46,5 milhões de dólares (na data em que foram adquiridos estavam avaliados em mais de 50 milhões de euros). Também aqui foi utilizada a figura jurídica da novação de empréstimo, logo as obrigações da EI Europa Imobiliére também deixaram de ter valor.
Resumindo e concluindo: o grande problema para o Novo Banco é que, apesar de as extinções daqueles títulos obrigacionistas terem sido decretadas a 17 de junho de 2016, quando a instituição era liderada por Stock da Cunha, essa comunicação só foi feita ao Tribunal Central de Instrução Criminal e ao Ministério Público no passado mês, mais concretamente a 8 de novembro. Ou seja, durante mais de três anos ter-se-á verificado uma alegada omissão na obrigatoriedade de informar a Justiça sobre qualquer evento relevante com os títulos detidos pela Zyrcan.
Novo Banco foi alvo de buscas judiciais e é visado em novo inquérito autónomo
Esta omissão levou o Ministério Público a promover buscas judiciais no Novo Banco no dia 12 de novembro, mais concretamente no Departamento de Execução de Operações (DEO), tendo as mesmas sido autorizadas pelo juiz Carlos Alexandre. O procurador Antero Taveira quis identificar as circunstâncias em que se deu a dissipação desse património financeiro avaliado em cerca de 60 milhões de euros e, além de inquirir vários responsáveis do DEO e do compliance do Novo Banco na qualidade de testemunhas, ordenou a apreensão de um conjunto diversificado de emails desses departamentos.
Em alguns desses emails será possível constatar que os colaboradores do DEO tinham consciência que as contas da Zyrcan estavam bloqueadas e os respetivos valores apreendidos à ordem dos autos do caso BES/GES. Existirá mesmo um email em que um funcionário do DEO pergunta a um responsável do Novo Banco se seria possível autorizar a saída das 56 milhões de títulos obrigacionistas da EI Europa Imobiliére que estavam depositadas no Espírito Santo Bank Panamá.
Certo é que o procurador Antero Taveira entende que a proposta de acordo no sentido dos títulos obrigacionistas Meridien e EI Europa Imobiliére serem extintos deveria ter sido comunicada pelo Novo Banco ao Tribunal Central de Instrução Criminal logo em 2016 para ser deduzida a respetiva oposição — o que não aconteceu.
Daí ter ordenado a abertura de um novo inquérito autónomo para investigar não só o alegado crime de desobediência qualificada do Novo Banco, como também para tentar perceber os responsáveis pela omissão informativa e tentar descobrir os novos títulos com que a Zyrcan e a Martz Brenan terão ficado.
Essa investigação tentará ainda descobrir os contornos particulares de outro facto relevante: os títulos da Zyrcan e da Martz Brenan estavam depositados numa conta do Espírito Santo Bank Panamá aberta em nome de uma sociedade offshore chamada Santa Cecilia Investments.
Tal como o Observador avançou aqui, Santa Cecilia é uma das 30 sociedades offshore ligadas ao poder político e económico da Venezuela que receberam pagamentos da Espírito Santo (ES) Enterprises, o famoso saco azul do GES. A sociedade terá como beneficiária Maria de Los Angeles Hernandez, administradora financeira do Banco de Desenvolvimento Económico e Social da Venezuela, que terá recebido cerca de três milhões de euros para adquirir títulos de dívida de diversas empresas do GES.
Carlos Alexandre ordena depósito de caução de 60 milhões e Novo Banco recorre
O Ministério Público promoveu igualmente junto do Tribunal Central de Investigação e Ação Penal o depósito de uma caução de cerca de 60 milhões de euros por parte do Novo Banco. Isto para acautelar a reposição desse valor no arresto de mais de mil milhões de euros que foi decretado nos autos do caso BES/GES.
O juiz Carlos Alexandre concordou a 22 de novembro com essa promoção e o Novo Banco já foi notificado dessa ordem judicial. No seu despacho, ao que o Observador apurou, o magistrado do Tribunal Central de Investigação e Ação Penal fez questão de escrever uma frase forte: “Em 15 anos nunca me tinha sido dado a conhecer que, após uma apreensão, o que estava à guarda do fiel depositário fosse movimentado sem conhecimento do tribunal.” Daí a sua “estupefação” perante este caso que ainda tem contornos por esclarecer.
Ao que o Observador apurou, o Novo Banco vai recorrer desta decisão do juiz para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Contactada pelo Observador, fonte oficial do Novo Banco esclareceu que “a atuação do banco” neste caso foi “apenas de mero custodiante, pelo que é totalmente alheio a qualquer evento obrigatório relativo a títulos de clientes que se encontrem integrados no Euroclear” — uma plataforma onde são registados, entre outros tipos de títulos, os obrigacionistas. Isto é, o Novo Banco alega que nada podia ter feito, pois verificou-se um acordo entre os emitentes (Le Meridien e EI Europa Imobiliére) e os credores (a Zyrcan e a Martz Brenan). A instituição de crédito que substituiu o BES tinha apenas a custódia dos títulos.
Fonte oficial do banco liderado por António Ramalho acrescenta que, “existindo alguma falha na comunicação de informação relativa a operações de extinção de títulos comunicadas através da Euroclear, o banco avaliará internamente a existência de eventuais deficiências operacionais neste âmbito.”
E enfatiza que, desde o início das investigações do caso BES/GES em 2014, o “Novo Banco tem prestado de forma permanente e diligente inúmera informação às autoridades judiciárias no processo BES”: “Isto representa um esforço enorme em termos operacionais e de recursos e que, no entanto, continuaremos a prestar até à conclusão das investigações.”
O Observador enviou igualmente um conjunto de questões para a Procuradoria-Geral da República mas não obteve qualquer resposta (texto do jornalista Luís Rosa, Observador)

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