O preço das rendas em Lisboa e Algarve obriga os docentes que dão aulas longe
de casa a viver em condições precárias. Outros recusam horários por não
conseguirem pagar despesas. Centenas de alunos continuam sem aulas em várias
disciplinas. É no sofá
da sala numa casa em Odivelas que Natércia dorme três noites por semana. Não
tem direito a mais do que duas gavetas de uma cómoda e a partilhar casa de
banho e cozinha com mais duas pessoas. São estas as condições a que a
professora de Matemática de 44 anos, a dar aulas há 20, teve de se sujeitar
para conseguir uma renda mais baixa. Ficou a pagar €10 por noite e uma parte
das despesas da casa. Feitas as contas, ao fim de um mês, é bem menos do que os
€350 que lhe pediram por um quarto nos arredores de Lisboa. E foi a única
solução para conseguir manter-se, pelo sexto ano consecutivo, a dar aulas na
capital, a 300 km de Santa Maria da Feira, onde tem a família que tenta visitar
todas as semanas, acrescentando mais €200 às despesas mensais fixas. Mesmo
optando pela estrada nacional, que sai mais barato. “Não tenho espaço para as
minhas coisas e tenho de andar de mala às costas. Mas é melhor que um hostel,
onde nem duas gavetas teria.”
Conseguir
arrendar uma casa ou apenas um quarto tornou-se um problema nos centros urbanos
devido ao aumento das rendas e atingiu em cheio milhares de professores
colocados longe da área de residência. A Grande Lisboa e o Algarve são as zonas
do país que mais precisam de professores mas onde se tornou mais difícil
encontrar casa acessível. Basta somar as despesas com renda, deslocações e alimentação,
retiradas de um salário de cerca de 1100 euros limpos, para que muitos
professores nem aceitem a vaga. E por isso há horários por preencher desde o
início do ano letivo.
“Se já é complicado para um professor com um
horário completo ter dinheiro para as despesas, é incomportável quando é
incompleto. Nesses casos, recebem entre 400 e 500 euros. Isso já quase não
chega para um quarto”, alerta César Paulo, porta-voz da Associação Nacional de
Professores Contratados. “A maioria destes professores tem mais de 40 anos e
crianças em idade escolar, o que os leva a não continuarem a fazer estas
deslocações. E os que têm menos de 30 anos, e que estariam mais disponíveis,
são muito poucos e têm o problema das rendas.” Júlia Azevedo, presidente do
Sindicato Independente de Professores e Educadores (SIPE), não duvida que a
falta de professores tem vindo a agravar-se. “A curto ou médio prazo, a
situação será mesmo insustentável.”
Questionado
pelo Expresso, o Ministério da Educação avança que estão “em análise e em
articulação com outros ministérios soluções que visem incentivar a colocação de
professores em certos territórios”, sem concretizar hipóteses ou prazos.
Guilherme,
professor de Geografia, (na foto) faz parte de 1% dos docentes com menos de 30 anos, e
dos muitos mais que juntam à precariedade de não saber se têm trabalho, de um
ano para o outro, a dificuldade de encontrar casa. Natural da Covilhã, sem
hipóteses de colocação em escolas da região, sabe que tem de procurar no resto
do país uma oportunidade que lhe permita somar tempo de serviço para ficar
efetivo.
“Já tinha posto Lisboa e Porto de parte por
causa das rendas. E comecei a concorrer para o Algarve. No ano passado, em
Lagos, tive sorte em encontrar um estúdio barato. Mas este ano, em Loulé, foi
um desespero completo. A maior parte dos anúncios pede para sairmos em maio ou
junho, por causa dos turistas, e nós trabalhamos até 31 de julho. E os preços
são um abuso”, descreve Guilherme, que chegou a encontrar um T0 a €750. A
solução acabou por recair na partilha de casa com dois colegas, onde paga €200
por um quarto, fora as contas. “A minha rotina diária, antes de adormecer, é
ver os sites do OLX e do Custo Justo à procura de um T0 ou T1 que possa pagar e
ter a minha privacidade.”
Colocada
também no Algarve está Liliana Vieira, professora de Geografia há 12 anos,
natural de Vila Verde (Braga) e sempre colocada em escolas diferentes. Dá agora
aulas em Faro, mas só arranjou apartamento a cerca de 15 km, em Loulé. E admite
ter sido uma sorte. “Estou a pagar €320 por um T2, de uma professora que foi
deslocada para outra zona. Há quem peça €500 por um T0 ou entre €350 e €450
apenas por um quarto.” Tal como Guilherme, também vive o problema do turismo.
“Em julho, há professores a ficar em sofás ou em casas de outros, porque perdem
aquela onde estão.” E em setembro, quando começam as aulas, a dificuldade
repete-se, pois muitos senhorios só disponibilizam a casa em outubro, depois de
acabar a época alta.
Liliana dá
aulas no Agrupamento Pinheiro e Rosa, onde o diretor, Francisco Soares, todos
os anos tem dificuldade em arranjar professores para completar os horários. Em
setembro, tinha “seis ou sete por preencher”. A situação já melhorou, mas a
baixa médica de uma professora de História deixou os alunos do secundário sem
aulas no último mês. “Já fizemos tudo, mas quem telefonava não aceitava receber
€1000 e ficar a pagar €350 por um quarto ou €600 por uma casa”, conta. Sem
candidatos, o horário vai ser atribuído a outros professores do agrupamento.
“Sai mais caro, com as horas extraordinárias que têm de ser pagas, mas são
alunos que vão ser sujeitos a exame nacional e tínhamos de encontrar uma
solução.”
Quarto sem vista por €350
No
Facebook, há vários grupos para ajudar professores a encontrar casa e um deles
tem quase 13 mil membros. “Vemos aparecer de tudo e optamos por eliminar casos
indignos, como o de um quarto com cama e mesa de cabeceira em Lisboa por €350,
sem janela e sem acesso à cozinha”, conta Ana Branquinho, uma das gestoras do
grupo e também ela professora, em Viana do Castelo. “Perante a realidade, assim
como eu, muitos outros professores já desistiram de concorrer para o Sul do
país. Não vale a pena e também não quero deixar cá as minhas filhas. Só que
ficar aqui obriga a ter mais empregos.”
Nascida em
Aveiro e colocada em Lisboa, Paula tem 39 anos, um filho de 12 e outro de dois.
Há mais de dez anos que todas as semanas deixa a família em casa para ir dar
aulas, tendo passado por uma dezena de escolas. Nos últimos anos conseguiu dois
contratos consecutivos e só lhe falta um para vincular. “É esse o meu único
objetivo”, realça. O problema é que a casa que tem estado a partilhar, em
Loures, acabou de ser vendida. “Temos de sair até ao fim deste mês e não temos
para onde ir”, conta a colega de casa, Cláudia, 41 anos, que também deixa a
filha de oito anos todas as semanas com os avós. “Se no início do ano letivo já
é difícil encontrar quarto, agora é impossível. Ninguém quer arrendar uma casa
por sete meses. Além disso, não dá para pagar uma renda de €500 porque já temos
despesas fixas com as nossas famílias.”
Há formas
de tornar as contas menos pesadas e Inês, professora do Porto contratada em
Lisboa, optou por entrar num grupo de boleias partilhadas criado no Facebook.
Foi lá que conheceu a proprietária da casa onde mora e que partilha com mais
duas docentes — uma de Braga e outra de Macedo de Cavaleiros —, a €300 o
quarto. “É absurdo pagar isto, mas tenho a noção de que não é dos mais caros.”
Aos 40 anos, espera mais uma renovação de contrato que lhe permita vincular.
“Só a partir daí posso pensar em ter casa só para mim.”
As Câmaras
de Lisboa, Oeiras e Faro já aprovaram moções a pedir ao Governo que arranje
soluções para este problema. “Tem de ser garantido um subsídio de alojamento e
ajudas de custo para a deslocação”, defende Júlia Azevedo, do SIPE. Estes
apoios já existem para médicos ou juízes. Mas César Paulo defende que é preciso
ir mais longe. “Estes apoios são apenas paliativos. É preciso estabilizar o
corpo docente nas áreas geográficas mais próximas das suas residências. Assim,
garantia-se que ficavam no ensino e estancava-se a perda de professores que,
perante este cenário, nos últimos anos têm procurado noutras profissões uma
alternativa de vida.” (texto das jornalista do Expresso, Isabel Leiria e Raquel
Albuquerque com João Mira Godinho)
NÚMEROS
42 anos - é
a média de idades dos professores contratados, segundo as contas de Arlindo
Ferreira e Davide Martins, do blogue ‘ArLindo’
1100 euros
- é o valor aproximado do salário líquido de um professor contratado com
horário completo
58% dos
professores poderão aposentar-se até 2030. Entre os grupos mais envelhecidos
estão Educação Tecnológica e Estudos Sociais/História
300 euros -
é o valor abaixo do qual é quase impossível encontrar um quarto em Lisboa. Valores
chegam a ultrapassar os 400 euros
Sem comentários:
Enviar um comentário