Desigualdade
As desigualdades na sociedade portuguesa agravaram-se nos últimos 40 anos,
apesar da adesão à União Europeia e à Zona Euro. O facto mais chocante é que os
10% mais ricos da população ficaram ainda mais ricos, viram o seu peso no
rendimento nacional subir 5,3 pontos percentuais desde o princípio dos anos 80
do século passado. Em contraste flagrante com os 50% de mais baixos
rendimentos, ou seja, metade da população, que registou uma redução de 5,2
pontos percentuais no bolo total, segundo os dados da World Inequality Database
(WID), localizada na École d’ Économie de Paris. A WID é um projeto sobre as
desigualdades à escala mundial liderado pelo economista francês Thomas Piketty,
que dispõe de uma enorme massa de dados, incluindo sobre a distribuição do
rendimento para Portugal até 2016 (ver gráfico). Não conta, contudo, com informação
sobre a desigualdade na distribuição de riqueza em Portugal e na esmagadora
maioria dos países, fornecendo apenas dados para Estados Unidos, França,
Rússia, China e Índia. A dificuldade no acesso a informação fiscal oficial na
maioria dos países tem limitado a avaliação da riqueza, ou seja, do património
fixo dos cidadãos. “Uma das principais limitações que temos em Portugal é que
os investigadores não têm tido acesso aos dados das Finanças”, sublinha Carlos
Farinha Rodrigues, professor do ISEG em Lisboa, e coordenador do projeto
Portugal Desigual.
Pobres perdem mais em Portugal
A situação portuguesa não escapa ao que se tem observado noutras
economias desenvolvidas, mas apresenta algumas peculiaridades, para pior e para
melhor. O trambolhão de 5 pontos percentuais é mais do dobro do que ocorreu aos
50% de mais baixos rendimentos na União Europeia naquele período de 40 anos. Ou
seja, o conjunto dos pobres e remediados em Portugal, que são metade dos grupos
de rendimento, perdeu mais do que na União a que o país pertence oficialmente
desde 1986.
Os do topo em Portugal recuperaram rapidamente das cinco crises que
rebentaram nesse longo período, e nomeadamente das duas últimas — da recessão
global de 2009 e da crise da dívida que se seguiu. Mas, os de baixo, desde
1982, estão sempre a perder peso no rendimento, a tal ponto que os 10% mais
ricos detêm agora 32,8% do rendimento, muito mais do que os 50% de menos
rendimentos, cuja fatia caiu para 21,9%. Os mais ricos dos ricos, que ocupam 1%
do topo, ficaram também mais ricos, subindo de 6,6% para 7,4% no rendimento do
país. Estas conclusões podem estar aquém da realidade. “Não há informação
detalhada sobre a parte superior da distribuição, sobre os mais ricos. Há, por
isso, na informação oficial uma subavaliação dos rendimentos no topo”, alerta
Farinha Rodrigues.
Mas há um facto surpreendente que se destaca da análise dos dados da
WID: a classe média portuguesa aguentou-se. Há 40 anos tinha a maior fatia dos
rendimentos, na ordem de 45,4%, e continua a tê-la, tendo descido ligeiramente
para 45,3%. O que distingue o caso português do conjunto da União Europeia
(UE), onde os grupos intermédios de rendimento perderam, nos últimos 40 anos,
2,1 pontos percentuais, enquanto os 10% mais ricos engordaram 5 pontos
percentuais. Conseguiu inclusive passar pelo período de crise mundial e da
dívida portuguesa com um peso no rendimento superior ao que registava em 2007.
O contraste entre o declive no peso da fatia da classe média e a subida
acentuada na parte dos ricos à escala mundial levou os economistas Christoph
Lakner e Branko Milanovic a falarem de um efeito ‘tromba de elefante’ (em que a
parte final da tromba está muito empinada). Outros falam inclusive de um
disparo no peso dos mais ricos que se parece mais com o ‘pescoço’ muito longo
do monstro da lenda escocesa do Lago Ness. Ora, esse contraste não se verificou
em Portugal. Além disso, em Portugal o peso nos rendimentos por parte da classe
média e da classe baixa em conjunto é superior ao registado na UE — 67,2% e
66,2%, respetivamente. Outro facto curioso é que os Açores e a Madeira, com o
poder de compra por habitante mais baixo do país, são as regiões com maior
desigualdade.
AS REGIÕES MAIS
DESIGUAIS
Os Açores são a região do país onde o fosso entre ricos e pobres é
maior, se a desigualdade for analisada pelo coeficiente de Gini, para dados de
2018. A distância para a média do país é de quase 6 pontos percentuais. No
pódio da desigualdade seguem-se a Madeira, a Área Metropolitana de Lisboa (AML)
e o Algarve. As menos desiguais são o Centro e o Norte. Para dados de 2017, os
Açores têm um poder de compra per capita superior ao da Madeira, mas estão 30%
abaixo do registado para a AML. Os concelhos com maior poder de compra são
Lisboa, Porto, Oeiras, Faro, Coimbra e Aveiro.
Espanha e Itália mais desiguais
Apesar dos contrastes portugueses, Espanha, Grécia e Itália são
atualmente sociedades ainda mais desiguais, e a própria Alemanha, o farol da
zona euro, está quase colada a Portugal, se tomarmos em linha de conta os
coeficientes de Gini em 2018, que medem a desigualdade na distribuição de
rendimentos. A desigualdade tinha vindo a diminuir acentuadamente depois da
crise de 2003, mas foi interrompida pelo período do resgate da troika. Essa
rutura pode ser observada tanto na evolução do coeficiente de Gini como no
rácio entre o rendimento dos 20% do topo e os 20% de menos rendimentos. Mas o
quadro de desigualdades em Portugal não se fica pelas dimensões captadas pelo
coeficiente de Gini ou pelas séries do projeto de Piketty. É muito mais vasto
(ver Quadro de Desonra).
► 1,8 milhões de portugueses em risco de pobreza (17,2% da população) em
2018. No pico do resgate eram mais de 2 milhões
► 528 mil são assalariados considerados abaixo da linha de pobreza em
2018. São 10,8% da população empregada. Em 2015 registaram um pico de 10,9%
► 141 mil trabalhadores a tempo parcial subempregados no terceiro
trimestre de 2019, os mais precários dos precários. No pico do resgate chegaram
a 260 mil
► 154 mil desempregados de longa duração no final do terceiro trimestre
de 2019. No pico da troika chegaram a 480 mil. A maioria está desempregada há
mais de dois anos
► 1 milhão e oitenta mil receberam salário mínimo em 2018. São 22,1% da
população empregada. O pico, neste século, foi em 2016 com 23,3%, mais do que
nos anos do resgate
A desigualdade crescente nas próprias economias desenvolvidas tornou-se
um tópico político escaldante, nomeadamente na atual campanha eleitoral para
as presidenciais nos EUA em 2020. Entre os economistas, o tema ganhou projeção,
de novo, após a publicação do mais recente livro de Piketty em França, “Capital
et Idéologie”, a que o Expresso já se referiu, e além-Atlântico a obra de “The
Triumph of Injustice: How the Rich Dodge Taxes and How to Make Them Pay”, dos
economistas franceses Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, da Universidade da
Califórnia em Berkeley, está a influenciar os candidatos mais à esquerda nas
presidências norte-americanas. Saez e Zucman fazem parte do projeto WID. Em
Portugal, a desigualdade regressou à ribalta com o debate sobre a política de
rendimentos do trabalho, em mais uma ronda de negociações na concertação
social, e com a polémica acerca da política fiscal no quadro do Orçamento de
Estado para 2020. Políticas como a progressividade nas taxas de impostos e
englobamento de todos os tipos de rendimento de modo a tributar efetivamente a
riqueza têm estado no centro das propostas de Piketty, Saez e Zucman.
Apesar da recuperação salarial e de emprego, os mais pobres ainda estão
5% abaixo do rendimento que tinham em 2009
“Durante o período da crise portuguesa tivemos, de facto, uma situação
muito particular. O rendimento em todos os grupos desceu bastante, mas no caso
dos 20% mais pobres desceu muito mais do que no resto”, diz Carlos Farinha
Rodrigues, coordenador do projeto Portugal Desigual.
O académico sublinha, depois, que “o que marcou aquele período foi uma
queda global dos rendimentos na ordem de 14%, mas o rendimento dos de baixo
caiu muito mais, entre 15% até 29%, nos mais pobres dos pobres”. E acrescenta:
“O aumento brutal do desemprego afetou sobretudo a parte inferior da
distribuição do rendimento. O congelamento do salário mínimo, a redução do
Rendimento Social de Inserção e a contenção nas prestações sociais
desempenharam, também, o seu papel.” “A bateria de medidas de política adotadas
pela troika e pelo governo PSD-CDS foi muito eficaz a embaratecer o fator
trabalho, o tal processo de desvalorização interna, e, por causa disso, a
desequilibrar a distribuição do rendimento”, sublinha, por seu lado, Alexandre
Abreu, também professor do ISEG.
Melhoria depois do fim do resgate
A situação melhorou depois da saída do resgate. Os três grupos dos
rendimentos mais baixos recuperaram, até 2017, entre 15% e 35%, enquanto a
média global registou um ganho de 10%, acentua Farinha Rodrigues. “A
recuperação de emprego, a subida do salário mínimo, o aumento das prestações
sociais e a devolução de rendimentos foram determinantes”, refere. No entanto,
apesar de tudo isso, em 2017, os mais pobres dos mais pobres ainda estavam 5%
abaixo do rendimento que tinham em 2009, de acordo com os dados de Farinha
Rodrigues.
Outra das tendências de longo prazo que se acentuou com a crise recente
foi a queda do peso dos rendimentos do trabalho no Produto Interno Bruto (PIB)
português, refere Alexandre Abreu. O economista escolheu a série da Comissão
Europeia comparando os rendimentos do trabalho em relação ao PIB a custo de
fatores para salientar que atingiram em 2016 um mínimo desde os anos 60 do
século passado (ver gráfico nesta página). O peso caiu para 59% do PIB, um
nível tão baixo jamais atingido nos últimos 60 anos, a tal ponto que o peso
atual é muito inferior ao da última década da ditadura. Desde o início do
século XXI foi a quinta maior queda entre 180 países abrangidos pelas
estatísticas da Organização Internacional do Trabalho. “Isso deveu-se sobretudo
às sucessivas alterações à legislação laboral no sentido da fragilização da
posição negocial dos trabalhadores”, sublinha o académico. A trajetória inverteu-se, entretanto, e o peso deverá atingir 60,8% no
final deste ano, segundo as projeções da Comissão Europeia, mesmo assim a larga
distância dos 67,2% de 1960 (Textos Jorge Nascimento Rodrigues e Sónia M.Lourenço do Expresso)
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