domingo, dezembro 29, 2019

De milhões a “tostões”: como o património do BES foi vendido ao desbarato

Os ativos do Grupo Espírito Santo foram vendidos pelo Novo Banco e pela Rioforte como se nada valessem. Fundos abutres pagaram ninharias por hotéis, seguradoras e imóveis. Lucraram milhões, em negócios da China que prejudicaram acionistas e lesados do BES, enquanto o Novo Banco continua a sorver dinheiro público.
Tinham passado cinco meses da queda do Banco Espírito Santo (BES), quando a seguradora Tranquilidade foi vendida ao grupo norte-americano Apollo por 44 milhões de euros, em janeiro de 2015. Um ano depois, em 2016, dois hotéis Tivoli no Brasil e 12 hotéis do mesmo grupo em Portugal, incluindo o Tivoli Avenida, foram vendidos ao grupo Minor por 194 milhões de euros. Se a história terminasse aqui, o mais provável é que se fizesse as contas e se pensasse que nem os hotéis nem a seguradora, que faziam parte do império Espírito Santo, valiam grande coisa.
Mas façamos outro exercício e andemos com o calendário para trás e para a frente. A mesma Tranquilidade que foi vendida pelo Novo Banco por 44 milhões de euros, em 2015, fora avaliada em 2014 pelo valor de 700 milhões de euros, no âmbito de uma análise encomendada pelo Banco de Portugal aos principais grupos económicos devedores à banca.

Segundo palavras do próprio supervisor bancário, essa avaliação – conhecida como ETRICC 2, e que começou por ser pedida em setembro de 2013 – foi desenvolvida “com base numa metodologia particularmente exigente” que questionou “em profundidade os planos de negócio” desses grupos económicos, “de modo a confirmar que os mesmos assentavam em pressupostos robustos”. Entre um momento e outro, esfumaram-se 656 milhões de euros da Tranquilidade, numa série de operações desastrosas que já iremos detalhar.
Andemos, para já, um pouco para a frente. Ainda se lembra que a Tranquilidade foi vendida à Apollo por €44 milhões? Pois bem: se valia tão pouco, como se explica que o grupo norte-americano tenha encaixado, logo de seguida, cerca de três vezes mais só com a venda de 86 imóveis desta companhia de seguros?
E os lucros da gestora de fundos de private equity não terminaram aqui: a Apollo vendeu outros edifícios da Tranquilidade, incluindo a sede da seguradora na Avenida da Liberdade, em Lisboa, encaixando 180 milhões de euros só com a alienação do portefólio imobiliário.
Vendeu também as participações na Advance Care, na Europe Assistance, na GNB Seguros e na Tranquilidade Angola, fazendo mais-valias de 152 milhões de euros. E o melhor de todos os negócios ainda estava para vir: já em 2019, a Apollo vendeu o grupo Seguradoras Unidas (que juntava a Tranquilidade e a Açoreana) à italiana Generali por 600 milhões de euros. Ou seja, 13 vezes mais do que pagou pelo grupo Tranquilidade em janeiro de 2015, numa altura em que a seguradora ainda tinha todos aqueles edifícios na sua carteira de imóveis.
Feitas as contas a todas as operações de compra e venda, parece que a Apollo foi para a Tranquilidade uma espécie de rei Midas: tocou-lhe e transformou €44 milhões em ouro.
O caso dos hotéis também impressiona. O Tivoli Hotels & Resorts era, em 2014, o quarto maior operador hoteleiro em Portugal, gerindo 12 hotéis de quatro e cinco estrelas. A estes, o Grupo Espírito Santo somava mais duas unidades da mesma marca, no Brasil. Ao contrário do que aconteceu com a Tranquilidade, estes 14 hotéis não foram vendidos logo na ressaca da queda do BES e do GES (a 3 de agosto de 2014). A Rioforte, empresa que geria as empresas do ramo não financeiro do GES, entrou em insolvência após o colapso e, por arrasto, também a cadeia de hotéis entrou num Processo Especial de Revitalização (PER).
Foi já um ano e meio depois, em fevereiro de 2016, que o grupo Minor International comprou os 14 hotéis Tivoli, por 294 milhões de euros. E, de novo, também o tailandês Minor parece ter usado um toque de Midas. Em junho de 2019, o novo dono da cadeia hoteleira ganhou mais com a venda de três Tivoli em Lisboa do que gastou na compra dos 14. Ao certo, conseguiu €313 milhões com a alienação do Tivoli Avenida, do Tivoli Oriente e do Tivoli Avani (antigo Tivoli Jardim). Os outros 11 continuam em sua posse.
Olhando para estes números, é difícil acreditar que os hotéis ou a companhia de seguros valiam mesmo aqueles preços de saldos, permitindo depois aos grupos estrangeiros arrecadarem milhões em mais-valias. A ponto de muitos conhecedores do processo se interrogarem: e se se tivesse esperado pelo melhor momento e encaixado este dinheiro para ajudar a saldar os prejuízos de antigos acionistas e lesados do Banco Espírito Santo?
“Não se compreende porque a administração do Novo Banco não propôs ao Banco de Portugal a compra das ações da Tranquilidade, por exemplo, pela BES Vida, que tinha recursos para o fazer. Teria evitado um negócio ruinoso e ajudado a reembolsar o remanescente do papel comercial”, diz à VISÃO um antigo acionista do BES.
A venda do grupo Tranquilidade concretizou-se quando Eduardo Stock da Cunha estava ao comando do Novo Banco, embora o processo tenha tido início ainda na gestão de Vítor Bento, durante a fase do banco de transição. Até hoje, enquanto os fundos de investimento vão lucrando milhões com esta desordenada alienação de ativos, o Fundo de Resolução, com recurso a uma parte de financiamento prestada pelo Estado, já foi obrigado a injetar mais de 2,6 mil milhões de euros no Novo Banco. O mecanismo de capital contingente, criado na sequência da queda do BES, permite que o novo dono do Novo Banco, o fundo Lone Star, tenha ainda à sua disposição uma rede de segurança de cerca de mil milhões de euros oriunda deste Fundo de Resolução (num misto de esforço do Estado e contribuições do setor bancário) até 2026.
Já o Banco de Portugal, que precipitou a venda destes ativos com a imposição do famoso ring fencing – que obrigava a separar o BES do GES – e teve um papel relevante na destruição de valor da Tranquilidade, por razões que já iremos detalhar, respondeu que não lhe cabe “gerir os ativos dos bancos que supervisiona, nem decidir sobre a oportunidade ou sobre os termos da sua aquisição ou alienação”, que tais decisões “só os respetivos gestores estarão em posição de explicar” e que a valorização ou desvalorização dos ativos “depende da evolução do contexto dos mercados e da capacidade dos compradores” para os otimizar.
Já sobre a avaliação de ativos no âmbito do ETRICC 2 – exercício que, recorde-se, avaliou a Tranquilidade em 700 milhões de euros –, o supervisor bancário usa dois tipos de argumentos: que as avaliações foram feitas “com total independência por auditores externos competentes” e que estas não podem “ser descontextualizadas da situação da economia portuguesa”.
Tranquilidade: do 80 ao 8 e ao 80
Estávamos no outono de 2013 quando este exercício de nome difícil, o ETRICC 2, pedido pelo Banco de Portugal ao Grupo Espírito Santo mas também a uma série de outros devedores para perceber a sua capacidade de pagar os créditos concedidos pelos bancos, destapou o enorme buraco no GES. Descobria-se então que a Espírito Santo International (ESI), a holding que agregava a Rioforte (que reunia os ativos imobiliários) e a ESFG (que detinha o BES), tinha uma dívida acumulada de 5,6 mil milhões de euros e um passivo oculto de €1 300 milhões nas suas contas. Começava aí uma correria desenfreada de reuniões entre Ricardo Salgado e o supervisor bancário, com o regulador a exigir uma separação radical entre o BES e o GES, para que o banco estivesse em condições de reembolsar os clientes do retalho que tinham comprado papel comercial da falida ESI.
A 9 de dezembro de 2013, o então presidente do BES apresentou um plano alternativo ao Banco de Portugal que deveria ser cumprido em cinco anos e que passava, entre outras coisas, pela venda do grupo Tranquilidade por 350 milhões de euros.
A 14 de março de 2014, o exercício ETRICC 2, conduzido pela auditora PriceWaterhouseCoopers (PWC), validou que a Tranquilidade valia o dobro: 700 milhões de euros. Só que a seguir tudo se precipitou. Com o cerco do ring fencing, a certa altura o Banco de Portugal terá exigido que as ações da Tranquilidade fossem dadas ao BES como garantia de uma linha de crédito de 48,5 milhões de euros, usada para liquidar papel comercial da Rioforte entre 1 e 15 de julho de 2014. Ou seja, as ações da Tranquilidade, avaliadas em 700 milhões de euros uns meses antes, passaram a ser a garantia de que o empréstimo de 48,5 milhões de euros seria efetivamente pago. Para piorar tudo, em caso de incumprimento, o BES tinha um mandato de venda direto dessas ações. Mandato esse que, depois da resolução de 3 de agosto de 2014, passou para o Novo Banco. Assim, quando o Novo Banco começa a operar, a nova equipa de gestão encontra uma linha de crédito por liquidar. No meio do caos, ninguém olha para o que está por detrás: um grupo de seguradoras avaliado num valor 14 vezes superior ao daquela dívida. Supostamente, não haveria tempo para valorizar o ativo, apenas para tapar o buraco e recuperar o montante do crédito. É depois desta decisão que, entre um momento e outro, se esfumam mais de 650 milhões de euros da Tranquilidade, numa destruição de valor que prejudicaria os acionistas do BES e os lesados do GES e viria a ser um presente para o fundo Apollo.
Para agravar ainda mais o cenário, nos dias que antecederam a queda do BES, e perante a pressão para liquidar papel comercial, a ESFG pediu um empréstimo à Tranquilidade, no valor de 150 milhões de euros. O Instituto de Seguros de Portugal, presidido por José Almaça, não queria acreditar que a seguradora estava a financiar o GES. A 20 de julho de 2014, toma uma medida drástica e ameaça revogar a autorização que permitia à Tranquilidade continuar a operar. A Apollo entra imediatamente em cena: estava disposta a injetar esses 150 milhões de euros na seguradora e a apresentar uma proposta de compra pelas ações penhoradas da Tranquilidade. Não há evidências de que, mesmo depois da concretização do negócio, a seguradora tenha precisado, de facto, de ser recapitalizada.
O que se sabe é que o Novo Banco decidiu alterar retroativamente a metodologia de contabilização das participações financeiras que tinha sido aceite no ETRICC 2. Consequentemente, essa alteração levou a uma diminuição brutal dos capitais próprios da Tranquilidade. Em vez de uma margem de solvência de 236% (68,6 milhões de euros), a seguradora fechava as contas com uma margem de solvência de apenas 53%, o que equivalia a insuficiências de 24 milhões de euros. A Apollo aproveitou a confusão e as mudanças de modelos contabilísticos e comprou a seguradora pelo mínimo, num negócio que, depois da venda de edifícios, da alienação de participações e do despedimento de pessoal, viria a render-lhe milhões.
Os imóveis e a Lone Star
Como se estes desastres de gestão não chegassem, depois da polémica em torno de o Novo Banco ser asssessorado na gestão de 9 mil imóveis pela Hudson Advisers, empresa que tinha como acionista precisamente a Lone Star (dona de 75% do Novo Banco), segundo revelou o “Público” – embora as transacções entre as duas entidades estivesse proibida, explicou na altura o Novo Banco -, a verdade é que o banco herdeiro do BES anunciou em Agosto deste ano a venda de carteiras de imóveis e crédito malparado com um desconto de 67%. Em concreto, só uma uma carteira de ativos imobiliários, com um valor bruto contabilístico de 487,8 milhões de euros, foi vendida à Cerberus Capital Management por cerca de três vezes menos: 159 milhões de euros. 
A venda de imóveis e da carteira de crédito malparado do Novo Banco, que deveria ajudar a limpar os ativos tóxicos da instituição financeira, tem, pelo contrário, sido uma desgraça com impactos negativos nas contas. A ponto de o Governo ter encomendado uma auditoria ao Novo Banco, para avaliar os atos de gestão que levaram às injeções do Fundo de Resolução que ascenderam a quase 2 mil milhões de euros só em 2017 e em 2018. A proposta do Orçamento do Estado para 2020 prevê mais uma injecção de 600 milhões de euros no próximo ano para recapitalizar o Novo Banco através do Fundo de Resolução.
A ideia é que a auditoria encomendada à Deloitte investigue a fundo vários atos de gestão tomados por Ricardo Salgado, Vítor Bento, Stock da Cunha e António Ramalho. Serão passadas a pente fino as decisões de alienação de ativos e também as vendas das carteiras de imobiliário e de crédito malparado que resultaram em perdas enormes para o Novo Banco. Resta saber se também estes créditos e imóveis serão transformados com um toque de Midas pelos fundos de investimento que os compraram, enquanto o dinheiro público continua a sustentar as perdas e as vendas a saldo do Novo Banco.
3 números impressionantes
€44 milhões - Mal se deu a queda do BES e do GES, o fundo norte-americano Apollo percebeu a oportunidade e começou a negociar a compra do grupo Tranquilidade. Após um impasse de meses, devido a uns processos judiciais, em 2015 a Apollo comprou a seguradora por menos de €50 milhões
€180 milhões - Ainda antes de vender a Tranquilidade e a Açoreana (transformadas no grupo Seguradoras Unidas) por 600 milhões de euros, já a Apollo tinha recuperado o investimento de €44 milhões. Só na venda dos edifícios da Tranquilidade ganhou quatro vezes mais do que investiu.
€313 milhões - Os tailandeses do grupo Minor compraram em 2016 a joia hoteleira do império Espírito Santo: os hotéis Tivoli. Adquiriram 14 unidades por €294 milhões e, aproveitando o preço de saldos e o boom imobiliário em Portugal, venderam apenas três, em 2019, por mais do que isso (€313 milhões) (Artigo publicado na VISÃO 1395 de 28 de novembro e atualizado a 29 de dezembro com informação fornecida pelo Novo Banco)

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