Portugal torna a despertar para a pobreza. E se uma região liderasse
todos os rankings de subdesenvolvimento do país ou de toda a UE? Essa região
existe e são os Açores. Quase não há um indicador em que o arquipélago não se
distinga pela negativa. Lisboa assobia para cima, os políticos, intelectuais e
corporações locais assobiam para o lado. Nem os pobres se indignam: não chegam
a saber que são pobres. O paraíso tem verso sombrio. Há uns tempos
perguntaram-me por que razão faço tanta questão que o meu filho, com nascimento
aprazado para este outono, cresça nos Açores, onde nasci e vivo desde 2012.
Ensaiei argumentos numa crónica de jornal — a centralidade da geografia, a
presença do mar, a exuberância da natureza — e até cheguei a aflorar a
importância, para uma avaliação geral, da paleta socioeconómica disponível:
“Porque poderá conhecer uma razoável abundância e todos os géneros de pobreza,
contanto consigamos ajudá-lo a munir-se de curiosidade e de amor.” Mas, agora
que penso nisso com mais cuidado, percebo que deixei o mais importante de fora.
Quero que o meu filho cresça nos Açores porque, à partida, crescerá inserido na classe média. Nenhum outro lugar em Portugal é tão privilegiado para uma família de classe média como os Açores. Entretanto, um rico vive tão bem no arquipélago como — é da sua condição — onde quer que seja. Já um pobre vive pior do que em qualquer outra região do país, em alguns casos até da Europa. E para o percebermos não precisamos de exercer uma motricidade muito fina. Nem sequer de visitar de facto as ilhas: basta-nos abrir o site do Instituto Nacional de Estatística (INE) ou mesmo o da Pordata.
Com regularidade ou em permanência, os Açores lideram virtualmente todos
os rankings nacionais de subdesenvolvimento humano. Lideram, desde logo, na
maior parte das tabelas mais negras da economia: o desemprego (fora flutuações sazonais),
a exclusão social e a desigualdade na distribuição dos rendimentos, a
dependência do rendimento social de inserção (RSI), com o triplo da taxa
nacional, muitas vezes, e a subsidiodependência em geral, o défice de ascensor
social, a taxa de pobreza e a pobreza persistente, para citar apenas as
principais classificações.
Mas a pobreza não se resume aos números da economia e portanto o mesmo
arquipélago lidera nos principais indicadores de fragilidade na educação ou na
má relação dos cidadãos com esta: o abandono escolar (em anos normais,
igualmente com o triplo da taxa nacional, e neste caso também com a maior de
toda a União Europeia), o insucesso escolar, o analfabetismo, etc. Como lidera,
aliás, nas deficiências na saúde: entre outros índices, no da mortalidade e no
da obesidade infantis, no da diabetes e no do alcoolismo, no do suicídio jovem
e, claro, no da baixa esperança média de vida (três anos abaixo da média
nacional e quatro da do continente).
Paradigmaticamente, e em coerência, lidera nas mais variadas assimetrias
políticas: desde logo, na taxa de abstenção e na insuficiência de participação
cívica das mulheres. E lidera, como se torna inevitável tendo com conta todo o
quadro, nas chamadas “violências contra as pessoas”: a violência doméstica e o
abuso sexual, o incesto e a gravidez na adolescência, entre outros rankings.
São números, em muitos casos, do outrora chamado ‘terceiro mundo’. Não
são os únicos a caracterizar as “ilhas de bruma”. Faltam muitas outras coisas
nos Açores: cuidados, serviços, recursos, sofisticações, distrações. Mas isso
já faz parte do compromisso, mesmo quando este exige o sacrifício da mundividência
(isto é, das noções do tamanho e da posição relativa das coisas, da perspetiva,
da profundidade de campo e da concatenação em geral). Viver no paraíso da
classe média é, para a maior parte desta, uma negociação. Já para os pobres não
passa de uma fatalidade. Um pobre dos Açores não pode negociar. Não conhece
sequer os termos do negócio, porque provavelmente nem sabe que é pobre.
ESCOLA O arquipélago lidera nos principais indicadores de fragilidade na
educação ou na má relação dos cidadãos com esta
Olha-se para a sociedade açoriana, toma-se-lhe o pulso,
identificam-se-lhe as rotinas, e a conclusão impõe formulação bíblica: mais
depressa passará um camelo pelo buraco de uma agulha do que um pobre das ilhas
suplantará a condição dos seus pais — mais ainda se crescer num bairro social,
até há pouco tempo (e talvez ainda, embora escasseiem agora os recursos) a
principal política de habitação em vigor. Isto é: lugares onde é ainda mais
provável ouvir de uma criança, perguntando-se-lhe o que quer ser quando for
grande, a resposta: “Quero viver do rendimento.” Ou “do ‘resi’” — o dito RSI.
São “Os que, mesmo nascendo no inverno,/ pouco sabem do frio”, como nos
versos de Hélia Correia. Um terço da população total, no que importa a este
texto: tantos quantos vivem oficialmente abaixo do limiar da pobreza e da
exclusão social. E pouco podem, perante a fúria desse rumo, o Espírito Santo e
a sua exultante partilha, redentores para todos menos para aqueles que a
história empurrou para lá da redenção. Falamos de um arquipélago e — mais
importante do que isso — de um povo a caminho de lado nenhum, pelo menos
enquanto não se inverterem estas tendências. As explicações são variadas,
algumas com raízes tão longínquas que se diluem no tempo. Mas duas são
insofismáveis: a negligência das elites locais — que se confundem com a própria
classe média, como é típico de uma sociedade essencialmente sem ricos e sem
riqueza — e a ausência de escrutínio nacional.
INCÚRIA GENERALIZADA
As razões pelas quais Lisboa há muito deixou de monitorizar os Açores e
as condições de vida dos açorianos, se é que alguma vez o fez, andam entre os
âmbitos da negligência e do cinismo. Por um lado, a Madeira foi presidida
durante tanto tempo por um populista capaz de fazer da palhaçada e da concentração
de atenções uma arma política, que se tornou apaziguador (e depois confortável)
encaixar os Açores no papel de filho não problemático. Por outro, ambos os
arquipélagos sempre custaram dinheiro ao Orçamento do Estado, pelo que foi
muitas vezes tentador resumi-los ao papel de propriedades ultramarinas que num
verão destes até se pode visitar, para tirar fotografias — e, nesse caso, uma
delas ainda mais fotogénica, mais “pura” e grosso modo mais hospitaleira do que
a outra, pelo que adequadíssima ao estatuto de éden pátrio.
A incúria local tem outro dolo, porque a deficiente autonomização da
pessoa também representa uma oportunidade eleitoral que, quando os recursos são
quase todos canalizados pela mesma entidade, se torna facilmente manipulável
pelo poder. Nos Açores, o governo regional é ao mesmo tempo o supremo patrão (a
função pública, de que tutela boa parte, representa a maior força laboral) e o
representante da indústria mais relevante (a da extração de subsídios europeus,
cujas candidaturas é ele a mediar). Mercado, não há. Há em cada ciclo político
um gabinete, às vezes um homem, no controlo de todas as verbas, e que em
tutelas recentes depressa fazia saber em volta o mais importante: aos secretários
regionais acabados de nomear, que estavam ali, em primeiro lugar, para garantir
o prolongamento do ciclo em causa; aos militantes e controleiros do partido no
poder, que em outubro era preciso certificarem-se de que os dependentes de
prestações sociais iam votar, enviando para o quartel-general mais próximo uma
foto do boletim tirada com o telemóvel; e aos recém-chegados com formação ou
ambições, que, nas ilhas, as coisas se faziam “de uma certa maneira”.
Para os impertinentes, como sempre fiz questão de ser — mas nas ilhas
com outro sentido de responsabilidade —, ficava guardada a explicação
historicista: os Açores vinham das próprias caves do tempo, a pobreza
instalara-se há meio milénio e jamais se conseguiria neutralizar da noite para
o dia. Ainda há umas semanas, à margem de um evento público, me detive à
conversa com um autarca com longo percurso na governação regional, que me
voltou a falar do “atraso endémico”, das leis “do morgadio” — enfim, do
costume.
E não me custa concordar com ele. Mas só em parte. Fez-se mais com menos
nos primeiros anos de autonomia, em que foi preciso melhorar e até construir
portos, aeroportos e todo o género de infraestruturas essenciais ao
funcionamento daquilo que, do ponto de vista da administração, é um pequeno
país repartido por nove porções de terra espalhadas por centenas de quilómetros
de mar enfurecido. Entretanto, levamos quase 40 anos com uma torneira de
dinheiro aberta no jardim e, em vez de os índices de desenvolvimento humano dos
açorianos convergirem com as médias nacionais, continuam a milhas delas.
Olha-se para a sociedade açoriana e a conclusão impõe formulação
bíblica: mais depressa passará um camelo pelo buraco de uma agulha do que um
pobre das ilhas suplantará a condição dos seus pais
De vez em quando ainda há uma estatística que melhora um pouco (como até
é o caso, desde 2020, da chamada taxa de risco de pobreza, relativa ao
rendimento disponível) mas, se não é a curva estrutural da economia a contê-la,
então há de ser um alarme conjuntural qualquer: no ano seguinte, no máximo no
outro à frente, já a região está de novo no último lugar desse ranking também.
A classe média, para a qual o sistema e a sua comunicação estão desenhados — e
que os controla, repito —, não se chateia: a pobreza à volta permite-lhe
distinguir-se, o que não é despiciendo. “As pessoas também não têm juízo
nenhum...”, suspiram os mais indulgentes, cada um segundo a sua formulação. E,
se a condescendência se revelar uma opção demasiado obscena, avaliado o
requinte da audiência, ainda lhes resta a gargalhada: “Três anos a menos de
esperança média de vida? O que queriam, com as touradas da Terceira e a
aguardente do Pico?”
Mas a desfaçatez tem perna curta. Basta cruzar os números do INE com os
do PNUD: a taxa de risco de pobreza dos Açores era, em cima do arranque da
pandemia, superior à da Albânia, à da Arménia, à do Bangladesh, à do Brasil, à
da Bulgária ou à do Botsuana — e ainda vamos na letra B. As oscilações
verificadas entretanto são, em termos absolutos, residuais. E distinguir as
consequências das causas, neste caso, sim, é o verdadeiro salto quântico.
O que a elite e a classe média açoriana ignoram é que a Córsega (por
exemplo) também começou desta maneira, com praticamente a mesma complexa
conjugação de recalcamentos históricos, recursos a fundo perdido,
irresponsabilidades políticas e demasiada gente afundada nas dependências.
Hoje, é uma das regiões mais violentas da Europa, um faroeste onde a fraude em
torno do subsídio agrícola nacional ou europeu — ou da ajuda pública em geral —
convive com a extorsão, a corrupção, a assassínio, o tráfico de drogas, a
lavagem de dinheiro, o roubo com violência e o aparelhamento de compras
públicas.
Não perdemos pela demora. Só em 2021, a criminalidade violenta cresceu
nos Açores um total de 71%. Foram vários os homicídios (tentados, concretizados
e até qualificados) ocorridos nos últimos meses, em particular em São Miguel,
e, segundo os últimos dados da polícia, foi apreendido no arquipélago mais de
um terço das novas substâncias psicotrópicas produzidas e/ou traficadas em
Portugal. No próprio dia em que escrevo este texto foi noticiada a detenção, no
concelho do nordeste, de um bando de cinco elementos que assaltou uma
residência da freguesia da Achadinha e manteve o proprietário sequestrado, com
recurso a catanas e a martelos, durante uma noite inteira de terror.
Quem não queira ver nisto uma relação com o facto de ter sido
precisamente pelos Açores que a extrema-direita reentrou no arco do poder em
Portugal, fá-lo por escolha própria. E quem não queira ver uma relação com a
circunstância de um em cada quatro jovens açorianos entre os 15 e os 34 anos
não trabalhar nem estudar, idem.
UM DISCURSO HISTÓRICO
Foi neste contexto que, na última primavera, José Manuel Bolieiro,
presidente do governo regional desde o final de 2020, anunciou a intenção de
concretizar a promessa de pôr “as pessoas primeiro” entregando aos esforços
regionais de convergência social 561 milhões dos €1140 milhões a chegar, no
âmbito da estratégia de mitigação dos efeitos da pandemia, do FEDER e do Fundo
Social Europeu. O anúncio surpreendeu quase toda a gente: enquanto o PS
insistia na falta de €80 milhões para as empresas, era o líder da periclitante
coligação de direita liderada pelo PSD, e aliás apoiada no Parlamento pelo
Chega de André Ventura, a chegar-se à frente não apenas na identificação da
pobreza como problema fulcral do arquipélago, mas a reclamar para si a agenda
da coesão.
Foi talvez o mais importante discurso de um chefe do governo regional no
século XXI: a recolocação de factu dos Açores na rota do desenvolvimento — de
que as ilhas se haviam tornado a tresmalhar, repetindo com o PS (1996-2020) a
eternização no poder, e a consequente degradação na governação, que já
permitira ao PSD (1976-1996) — e, já agora, a de um político de invulgar
low-profile, com inegáveis qualidades humanas mas (ou talvez “e”) capaz de
negociar até com o diabo, no rumo da própria História. Mas também ficou de
imediato claro que, se os parceiros de governo regional (o CDS-PP e o PPM)
estavam a bordo, o mesmo não acontecia com as forças do apoio parlamentar (a
Iniciativa Liberal, o Chega e um deputado independente vindo do desmembramento
deste). O que seria surpreendente se o desprezo pelo tema, salvas oportunidades
eleitoralistas, não fosse transversal à sociedade açoriana.
A começar pelo próprio partido que chefia o governo regional, e a que —
espero conseguir dar relevância à nota pessoal — cheguei a estar ligado.
Moderado de esquerda, ao mesmo tempo apreensivo com a estagnação das minhas
ilhas e convicto das virtudes da alternância democrática, aceitei em 2012
tentar ajudar o PSD a regressar ao poder em 2016, assumindo o papel de
coordenador do seu programa eleitoral e de governo. Dizer que não foi um
sucesso seria um eufemismo: as distâncias ideológicas eram insanáveis, a minha
inclinação para as conveniências de circunstância de um partido político era
nenhuma e, como não podia deixar de ser, os resultados foram desastrosos. Mas
nunca me esqueci de como em todas as filas à minha frente, sempre que subia ao
púlpito e tornava a alertar para a tragédia humana que o agravamento dos nossos
índices de desenvolvimento ia desenhando, havia militantes revirando os olhos.
Não são só as bases do PSD, e também não são só os partidos. Há quase 50
anos, quando os pioneiros da autonomia constitucional transformaram o
arquipélago numa região, fizeram-no com a colaboração de uma série de entidades
e corporações. A Universidade dos Açores disseminou a educação superior, com
despesas reduzidas e currículos adaptados às necessidades locais. A RTP Açores
levou os açorianos às casas uns dos outros, favorecendo um reconhecimento entre
pessoas cuja identidade comum não podia concretizar-se pelo mesmo género de
decreto que determina uma unidade política. Os intelectuais e artistas das
diferentes ilhas, em particular escritores e músicos, empenharam-se em definir
os contornos dessa identidade, construindo todo um edifício estético, plástico
e lexical que se revelaria indispensável no processo de reconhecimento dos
açorianos de si próprios.
Todos eles desmobilizaram, de alguma forma. Constrangida de recursos e
nem sempre dirigida por figuras conscientes do seu papel histórico, a RTP
Açores só nos últimos anos começou a recuperar algumas das obrigações a que
fora renunciando, mas entretanto permanece a braços com a escassez de meios e
de orçamento. Concentrada na sua própria sobrevivência, a Universidade ministra
vários cursos na área social e até chegou a denunciar a ineficiência do
ProSucesso, o programa salvífico com que Carlos César e Vasco Cordeiro tentaram
martelar as estatísticas da educação, mas de resto só recentemente voltou a
conseguir alguma visibilidade para o seu trabalho nos diferentes domínios da
pobreza, quase sempre com assinatura do sociólogo Fernando Diogo. Já os
intelectuais e artistas foram em muitos casos acumulando amarguras com o
esquecimento (uns), deixando-se contentar por reconhecimentos menores (outros)
ou apenas desinteressando-se da res publica (talvez a maior parte), até
sobrarem apenas uns quantos veteranos com intervenção pública regular, quase
sempre sem compromisso político — independente ou mesmo no âmbito dos partidos
—, a par de uma série de jovens já muito mais moldados pela ideia de aldeia
global, e portanto menos inquietos com a realidade regional, e uns quantos
escritores de meia-idade (como será o meu caso) nem sempre de acordo quanto às
principais urgências das ilhas.
Existe um chamado Conselho Económico e Social, que o Governo já prometeu
integrar no processo de decisão estratégica, mas de que muitos se riem (e
liderado por um banqueiro). Como não é difícil de perceber, a opinião pública
não chega a sistematizar uma visão do problema. Nem serão os políticos — ou
nunca o foram, até ao inesperado manifesto de Bolieiro — a sugerir-lhe tal
coisa. Como me disseram tantas vezes no fim daquelas reuniões partidárias que
me deprimiam: “As pessoas não gostam de ouvir essas coisas do incesto, da
violência doméstica e do suicídio jovem. Ficam ofendidas.” É eleitoralmente
estúpido levantar um assunto assim.
E também não serão as elites a fazê-lo, como já percebi. Munido de
estatísticas e preocupações, tentei no início deste ano cativar uma série de
intelectuais públicos e profissionais de relevo para uma monitorização
independente, laica e humanista da situação social das ilhas. Convidei
professores universitários, historiadores, padres, poetas. A resposta mais
eloquente foi: “Outro observatório?” Como se estivéssemos a falar de nova
confraria. A maior parte aceitou o repto, mas apenas por vergonha de dizer que
não — à primeira convocatória, já tinha compromissos inadiáveis.
A OBSESSÃO DOS SENADORES
O que mais depressa ocupa espaço no debate público açoriano, bem vistas
as coisas, são questões como a aprovação de um novo regime jurídico das
atividades aeroespaciais, destinada a pôr a região na rota do espaço. Ou a
criação de incubadoras, ninhos de empresas e bairros digitais, em debate um
pouco por todo o lado, a pensar como sempre nos dinheiros europeus. Ou,
naturalmente, a divulgação do próximo quadro comunitário de apoio, que nunca
mais sai. Ou, na melhor das hipóteses, a redefinição do estatuto
político-administrativo regional, cuja proposta já foi encomendada a Eduardo
Paz Ferreira, com o intuito de propiciar uma reformulação da lei de finanças
regionais e um (e cito) aprofundamento da autonomia.
É o único tema consensual na sociedade açoriana, na verdade: o reforço
dos poderes da autonomia. Indiferentes ao modo como se vive nos muitos bairros
e amontoados sociais espalhados pelas ilhas, os senadores vêm de vez em quando
à janela reclamar novas competências para as autoridades regionais. Logo na
semana seguinte, o partido mais empenhado em fazer um brilharete no Parlamento
propõe a criação de uma comissão para o estudo da matéria. E os restantes
apressam-se a aprovar a ideia por unanimidade: não custa nada, e ao menos isso
os açorianos não detestam ouvir — até gostam.
Também isso aplaudo. Mas, de novo, apenas em parte. Sou um romântico da
autonomia açoriana, embora menos das primeiras conquistas autonómicas do século
XIX, classistas, do que da autonomia constitucional do pós-25 de Abril, exigida
para conter a esquerda, mas concedida com um misto de alívio e — que é o que me
interessa — consciência democrática. Agora, aprofundar acriticamente esta
autonomia, como se a sua fragilidade fosse a escassez de latitude que a lei lhe
confere, parece-me não só uma contradição, mas um risco. Muito antes disso,
impõe-se uma reflexão: o que é que nesta autonomia, ou no modo como a
exercemos, nos deixou neste ponto ao fim de tanto tempo e de tanto dinheiro? Só
uma eficaz resposta a essa pergunta nos permitirá não acumular outros 50 anos
de grave declínio relativo, apesar do sensível progresso absoluto — e ao fim
dos quais talvez já não consigamos mesmo levantar-nos.
Indiferentes ao modo como se vive nos bairros e amontoados sociais
espalhados pelas ilhas, os senadores vêm de vez em quando à janela reclamar
novas competências para as autoridades regionais
De nada serve a autonomia, esta ou outra (mais ou menos expressiva), se
não servir para uma melhoria efetiva das condições de vida da população. Tudo o
mais será reconstruir a casa pelo telhado, para usar uma imagem batida. Posto
em comparação com os Açores e os seus indicadores sociais, económicos e
políticos, o continente português perde-se de vista. Na Madeira, apesar das
bolsas de pobreza, do nepotismo endémico e das flutuações estatísticas, vive-se
estruturalmente melhor e — muito importante — com mais mobilidade social. E, se
para se desfazerem essas assimetrias for preciso equacionar o regresso
transitório à figura do ministro da República, então é por aí que a revisão do
estatuto deve passar: pela contenção temporária da autonomia, e não pela sua
ampliação.
Temos preferido, pelo contrário, sublinhar “o sucesso” que são as
regiões autónomas, para usar a expressão — um tanto paradoxal em quem reconhece
a urgência de se pôr as pessoas primeiro — de José Manuel Bolieiro. Quase todos
os dias nos queixamos de “afrontas centralistas” e, em geral, chamamos “ataque
à autonomia” a qualquer denúncia da pobreza em que tantos açorianos vivem e não
deixarão de viver. Até o federalismo pedimos, à americana — o nosso próprio
estado, nada menos do que isso. É como que uma alucinação coletiva, que mais
uma vez só se justifica porque apenas a classe média — isto é, a elite — tem
acesso aos escassos fóruns de discussão existentes.
Ainda no verão, uma série de ficção televisiva então em gravações para a
Netflix, com guião dos escritores Hugo Gonçalves e João Tordo e do
realizador/criador Augusto Fraga (açoriano, por sinal), foi acusada de preparar
uma visão arquetípica e condescendente de Rabo de Peixe, a freguesia de São
Miguel a que vai buscar o nome. Autarcas, pequenos empresários e demais líderes
de comunidade aproveitaram o simples anúncio da produção para vir esmurrar o
peito em público, capitalizando eleitoral e economicamente. A ideia da verdade,
tanto quanto os benefícios de uma denúncia capaz de catalisar reações
positivas, foi-lhes indiferente — mesmo se Rabo de Peixe, que de facto fez
algum caminho, continua, apesar disso, o supremo paradigma da privação e do
obscurantismo em que se vive nas dezenas de aglomerados de indigência espalhadas
pelas nove ilhas.
E, sempre que é preciso, pois diabolizam-se os próprios pobres. São os
que “não querem trabalhar”. Os que “querem é viver do RSI”. Os que “andam o dia
inteiro pelos cafés porque recebem milhares de euros do Estado” — mesmo quando
se sabe que uma prestação do RSI pode não chegar aos €100.
Não estou isento de responsabilidades: eu mesmo, numa fase inicial,
acreditei que a devolução da dignidade a essas pessoas tinha de começar pela
recuperação do seu sentido de brio e, portanto, da sua relação com o trabalho.
Só que, entretanto, passaram-se dez anos sobre o meu regresso. Neste intervalo,
vi de tudo: preguiça e desespero, basto aproveitamento político e, acima disso
tudo, a ignorância infinita de quem, vítima até nos casos em que abusa, não sabe
sequer que a vida não pode ser de outra maneira — até porque nunca o viu
acontecer.
Que isso possa custar €100 ou €200, a autodeterminação de uma pessoa e a
sua disponibilidade para habitar a escuridão são uma circunstância que me
envergonha ainda mais do que me indigna. E que, como diz o cálculo da OCDE, nas
famílias em que isto acontece — normalmente, mais de 11% nos Açores, por
oposição a menos de 4% a nível nacional — a pobreza esteja destinada a levar
cinco gerações a erradicar só me mostra o quão milagrosa foi a minha própria
salvação, tendo em conta o lugar e o contexto em que nasci.
É nesse lugar que pretendo que o meu filho cresça, apesar de tudo: nove
pedaços de terra deslumbrante, habitada por gente gregária e polvilhada de
tradições cultivadas com gosto e devoção. Mas porque o contexto dele será
diferente, pelo menos enquanto eu conseguir proporcionar-lho. Entretanto,
porém, o tempo continuou a passar. Aos sinais de insegurança, de dia para dia
menos circunscritos ao contexto restrito da família, junta-se agora a ameaça da
gentrificação. Já é comum encontrar em Ponta Delgada apartamentos de média
dimensão a preços superiores aos €300 mil, às vezes €400 mil. Um dia que os
ricos do mundo descubram realmente tal paradeiro, os Açores tornar-se-ão
inabitáveis para qualquer português, quanto mais para um açoriano.
A brandura de costumes esgotou o seu potencial, e esgotou-o a todos níveis. O ataque a que a autonomia açoriana está de facto sujeita, tanto quanto a própria soberania portuguesa sobre o arquipélago, é esse: o da pobreza, da neutralização da pessoa e, a prazo, do esvaziamento de toda uma sociedade. A sua contenção exige de Portugal e dos portugueses, quaisquer que sejam, a mesma responsabilidade e o mesmo escrutínio. Na pior das hipóteses, ainda temos todos as ilhas para onde fugir com as nossas latas de atum. E depois (Expresso, texto do jornalista e escritor, Joel Neto)
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