Segundo
a RTP, num texto do jornalista António Louçã, "as imagens de
Soares a abraçar Álvaro Cunhal no 1º de Maio de 1974 e o registo do discurso
proferido nessa data pelo mesmo Soares, homenageando os comunistas pela sua
luta contra a ditadura, deixaram para a posteridade a imagem de uma revolução
que começava sob o signo da unidade. Os documentos secretos divulgados na
semana passada pela plataforma digital Wikileaks relativizam fortemente essa
imagem. Uma
versão corrente da sequência dos acontecimentos situa o agravamento das tensões
entre socialistas e comunistas já depois do golpe spinolista falhado em 28 de
setembro, e especialmente depois da polémica sobre a unicidade sindical, no
início de 1975. A mão estendida por Soares aos comunistas na tribuna do Estádio 1º de Maio simbolizava
eloquentemente a euforia unitária que nessa primeira semana de revolução
parecia marcar ainda a vida política. Os documentos secretos conhecidos como The Kissinger Cables, divulgados na semana
passada pela Wikileaks, mostram no entanto que já então se desenhava por trás
dos bastidores uma luta surda entre as duas forças de esquerda. Esta é uma das
conclusões que saltam à vista a partir de uma primeira leitura, necessariamente
ainda muito fragmentária, dos milhares de telegramas e mensagens que constituem
esse valioso acervo do Departamento de Estado norte-americano.
Uma conversa de Callaghan com Soares Entre eles destaca-se, logo em 7 de maio
de 1974, um telegrama do chefe da diplomacia britânica, James Callaghan, ao seu
homólogo norte-americano, Henry Kissinger, relatando uma conversa que acabara
de manter com o secretário-geral do PS, Mário Soares Aí afirma Callaghan que
Soares considera ser sua principal tarefa a preparação de eleições, que
deveriam ter lugar no prazo de um ano (e nisso a previsão de Soares foi, como
se sabe, absolutamente exacta). Tendo em conta esta prioridade, Soares terá
comunicado a Callaghan que tencionava preparar as eleições na sua função de dirigente
partidário ou, em alternativa, no cargo de primeiro-ministro. Na conversa, o
líder socialista terá sido categórico: "Deixou claro que o único cargo que
o Partido Socialista português aceitaria é o de primeiro-ministro. Ele próprio
certamente recusaria o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros". Como
se sabe, isto não foi confirmado pelos acontecimentos: Soares em breve
sobraçava a pasta do MNE e conduzia as negociações que culminaram nos Acordos
de Alvor. Mas na conversa com Callaghan, Soares ainda considerava que,
"como ministro dos Negócios Estrangeiros, estaria fora do país com
demasiada frequência".
Ora,
Soares terá pedido logo então o apoio britânico com o argumento de que "vê
o PS como a única força no país capaz de resistir aos comunistas que, acredita,
têm todo o apoio da União Soviética". E terá manifestado um vívido
interesse em pedir também o apoio norte-americano: "Ele está ansioso por
encontrar-se consigo [Kissinger] e por visitar os EUA e a ONU tão cedo quanto
possível". Kissinger
sem agenda para SoaresComo a visita não se concretizou devido a impedimentos de
Kissinger, a questão volta a ser discutida no final do mês de maio, como refere
uma outra mensagem, desta vez do Departamento de Estado para a Embaixada
norte-americana em Lisboa. Aí se relata um contacto de Hall Themido, o
embaixador português em Washington, com aquele Departamento. Entretanto Soares
encontra-se já no cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros e mandou
transmitir pelo embaixador a sua insistência em realizar um encontro com
Kissinger.
A
oportunidade parece estar ao alcance da mão, numa conferência da NATO a
realizar em Otava, no Canadá, onde ambos, Soares e Kissinger, deverão estar
presentes. Uma outra hipótese seria agendar o encontro para Nova Iorque, por
ocasião de uma visita de Soares à sede da ONU, que tanto poderia ser antes como
depois da conferência de Otava. Apesar da abertura demonstrada pela parte
portuguesa, a Revolução dos Cravos não parece encontrar-se ainda entre as
grandes dores de cabeça de Kissinger. Stabler, o funcionário que recebe
Themido, responde-lhe portanto que "não temos ideia da futura agenda do
secretário [Kissinger] mas, se Soares decidir ir a Nova Iorque, esperamos que
Themido nos dê conhecimento disso com antecedência". As
dificuldades de relacionamento entre Soares e Kissinger começam cedo. Neste
caso, os documentos revelados por Wikileaks não vêm lançar uma luz nova
sobre os acontecimentos nem contradizer versões correntes até aqui. Vêm apenas
confirmar o que se sabia sobre as divergências entre ambos em 1975: Kissinger a
dar Portugal por perdido como "a Cuba da Europa" e a defender que se
deixasse correr ao fracasso um putativo socialismo português, instrumental para
"vacinar" o resto da Europa; Soares, pelo contrário, a fazer o
caminho conducente à Fonte Luminosa e ao 25 de Novembro. Um telefonema do
embaixador dos EUA a CunhalPor seu lado, o PCP não perderá muito tempo e em
breve se relacionará com os diplomatas norte-americanos colocados em Lisboa.
Neste caso a iniciativa partiu do embaixador, Stuart Nash Scott, que telefonou
a Álvaro Cunhal e, em 11 de junho, relatou esse contacto ao Departamento de
Estado.
Mesmo
sem ter tomado a iniciativa, Cunhal logo aproveitou a oportunidade para dar ao
embaixador duas notícias, uma má e uma boa, do ponto de vista deste. Acontece
que a má notícia nada tinha de novo para Scott: a de que a "opinião
pessoal" (!) do dirigente comunista ia contra a permanência de bases
estrangeiras, como a das Lajes, em território português. A boa notícia, pelo
contrário, era que Cunhal "não pensava que este fosse o momento para
realizar tais negociações [sobre a retirada da base das Lajes] e que elas
deviam ser adiadas até o assunto poder ser tratado no contexto mais amplo da
détente entre Leste e Ocidente". E nisto, notou Scott, ia o dirigente
comunista ao encontro da orientação norte-americana, embora com motivos
substancialmente diferentes. É também interessante a impressão que o embaixador
transmite sobre Cunhal neste primeiro contacto, por telefone, entre ambos:
"Trata-se de um homem impressionante e atraente. Afirma com veemência não
ser um diplomata e falar francamente, e parece fazê-lo. Em excelente francês,
ele fala com sensatez, com cuidado e em tom contido (...) Na minha inocência,
ele deixou-me a impressão de um homem com quem se pode tratar franca e directamente
do outro lado da mesa". A Embaixada, o PCP e as greves Naturalmente, a
Embaixada não fazia o seu juízo apenas a partir de impressões recolhidas numa
conversa telefónica e observava atentamente o comportamento do PCP, ao tempo a
mais importante força política no terreno, perante a efervescente realidade
social do país.
E
também aí recolhia indícios que achava abonatórios. Assim, uma outra mensagem
enviada ao Departamento de Estado pelo mesmo Scott em 23 de Maio, pouco mais de
duas semanas antes da conversa com Cunhal, afirmava que "os esforços do
PCP para parecer respeitável levam-no a tentar arrefecer a presente
hiperactividade laboral". Scott relata a este respeito a primeira
conferência de imprensa do PCP na legalidade, referindo jocosamente o retrato
traçado por Cunhal sobre a situação dos trabalhadores no tempo do fascismo -
"uma recitação melancólica" de factos, seguida por uma
"homilia" sobre a justeza das reivindicações operárias e, finalmente,
por um ataque à extrema-esquerda, segundo Scott rotulada por Cunhal como o
"inimigo fundamental". Temos portanto umas primeiras semanas da
revolução ricas em paradoxos: euforia unitária nas ruas e guerrilha partidária
nos bastidores; Soares relegado para a sala de espera de Kissinger e Cunhal
solicitado pelo embaixador norte-americano. Mas, na realidade vertiginosamente
dinâmica da revolução, esses paradoxos rapidamente iriam transformar-se no seu
contrário, em boa ilustração da dialéctica helgeliana".