segunda-feira, outubro 26, 2020

Quando é que uma pandemia acaba?

Sabemos que a Covid-19 está a propagar-se por todo o mundo desde 11 de março de 2020. Já decretar o seu fim pode ser bem mais complicado

“Quando é que a pandemia acaba? Vai ser muito parecido àqueles filmes em que, depois da palavra ‘fim’, ainda demora uma série de tempo até passarem todos os créditos…”. A imagem que nos é revelada por Carlos Matias Dias, médico de saúde pública e coordenador do departamento de epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge –INSA, representa na perfeição a resposta à pergunta que ecoa nas nossas cabeças há algum tempo. Perante uma doença infecciosa que se dissemina por todo o mundo, saber quando é que uma pandemia acaba é a resposta que todos procuram. Os exemplos da história dão uma ajuda, mas…

Sabemos, antes de mais, que nem vale a pena pensar que já dura há uma eternidade, sobretudo quando a realidade insiste em devolver-nos um retrato pior a cada dia. O mais avisado, repetem-nos especialistas e indicadores matemáticos, é prepararmo-nos para pelo menos mais ano e meio de máscaras, álcool-gel e distanciamento social. Já os menos otimistas apostam que, ao ritmo atual de infeções, arriscamo-nos a ter pandemia para os próximos dez anos. 

A grande questão é que, agora tal como ao longo dos tempos, foi sempre muito mais rápido e fácil determinar quando se está perante um agente infecioso que se espalha por todo o mundo. Declarar o seu fim, isso, pode ser bem mais complicado. As dúvidas são mais do que muitas. Isto acaba quando o vírus perder força ou será só quando houver vacina? E se isso não chegar a acontecer? 

Diz que é uma espécie de terrorismo sanitário

Há anos que a OMS, e outros especialistas e interessados no tema, como Bill Gates, avisavam para o cenário de uma pandemia, um inimigo que o filantropo comparava a um tipo de terrorismo que, se negligenciado, seria muito mais difícil de deter. Um aviso não foi propriamente levado a sério – ou pelo menos foi menos escutado do que poderíamos imaginar. Agora que a Covid-19 já cá está, oficialmente, há sete meses, e as populações começam a acusar a fadiga de viver com restrições constantes, a pergunta ainda sem resposta começa a fazer um eco constante e regular. Afinal, quando é que isto acaba? 

Oficialmente, há duas maneiras de descrever o fim de uma pandemia. Uma é a erradicação clara, permanente e completa de um agente infeccioso – mas nisso poucos acreditam, como o médico de saúde pública do INSA. “Provavelmente, vai tornar-se sazonal, tal como aconteceu com outros coronavírus conhecidos”, acrescenta Carlos Matias Dias, a lembrar que, segundo esta definição, uma pandemia termina quando o vírus já não é predominante em todo o mundo – ou em múltiplos países. 

A outra, a tão almejada imunidade de grupo, essa, obriga a um processo que é bem mais moroso e complicado. “Sabemos que há imunidade quando uma boa percentagem da população já não desenvolve – nem transmite doença”, segue o especialista, sublinhando que é também por isso que damos tanta atenção ao valor do Rt, como se tornou, entretanto, conhecido o risco de transmissibilidade – e aí, remata, “o ideal é que esteja abaixo de 1. Neste momento, por exemplo, há regiões do país com um Rt de 1.3, muito perto do 1.4”.  

Valores certos sobre a percentagem da população que já contactou com o vírus ainda ninguém sabe ao certo. Uma perspetiva muito otimista foi anunciada há uns meses – segundo o modelo matemático de Gabriela Gomes, epidemiologista na Liverpool School of Tropical Medicine, a imunidade de grupo atinge-se quando 10% da população tiver sido infetada. Agora, o valor mais consensual entre especialistas situa-se entre os 40 e os 60%, embora haja quem considere que é preciso que o vírus chegue a 75% da população… E nós, como acrescenta ainda Ricardo Mexia, o epidemiologista que é também presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública, estamos ainda nos 3%, segundo os dados dos testes serológicos já realizados.   

10 anos também é manifestamente exagerado

Alcançar a imunidade de grupo para fazer corta-mato e decretar o fim da Covid-19 mais rapidamente foi, alegou-se já por diversas vezes, a estratégia de países como a Suécia, em que o vírus circulou de uma forma mais livre. Mas perante o receio de um colapso sucessivo dos sistemas de saúde, concordam os especialistas, o mais razoável será aguentar a respiração mais um bocadinho (e não deixar o vírus alastrar à sua vontade…) até chegar a dita vacina. Anunciada já para o final de 2020, início de 2021, esta terá, ainda assim, mais uma série de obstáculos a ultrapassar. 

“Por exemplo, mesmo meses depois, ainda podemos estar longe do fim da pandemia. O mais expectável é que haja uma eliminação – ou redução de atividade – progressiva”, considera Carlos Matias Dias, que lembra o caso da varíola, a última doença pandémica considerada erradicada pela humanidade há 40 anos. A última pessoa a contraí-la foi um cozinheiro de um hospital na Somália em 1977, mas só em 1980 se considerou o seu fim. “Vai parecer muito aqueles filmes em que, depois da palavra ‘Fim’, ainda demora uma série de tempo até acabar o genérico…”, compara aquele epidemiologista – não falando da ironia de o tal cozinheiro, de seu nome Ali Maow Maalin (com direito a página na Wikipédia e tudo), depois de recuperado por completo, ter acabado por morrer de malária em 2013, com perto de 60 anos. 

É que, a dificultar ainda mais o processo, há ainda a já conhecida mutação periódica deste tipo de coronavírus, o que pode obrigar a que a vacina também tenha de ser regularmente atualizada. E será que depois as pessoas aderem à vacinação? Esse é mais um receio de quem estuda estes processos – afinal, o crescendo de movimentos anti-vacinas não é propriamente despiciente. “Veja-se o caso da gripe. Nem nesse caso, relativamente pacífico, a população adere em massa”,  remata Matias Dias, o que explica as campanhas públicas anuais a apelar à vacinação. Agora também deduzir disto tudo que nem daqui a dez anos nos livramos do SARS-CoV-2 é, aos olhos daquele médico de saúde pública, “algo manifestamente exagerado” (revista Visão)

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