segunda-feira, dezembro 09, 2019

Utilidade Marginal: Os impostos da vizinha

O velho dizer popular que assegura que “quem não tem dinheiro não tem vícios” tem raízes antigas mas não deve ser levado demasiado à letra. Pode dar-se o caso de, quem dinheiro não tem, arranjar forma de o encontrar e, assim, sustentar os seus vícios. Se for um país que quer atrair multinacionais basta oferecer-lhes uma série de benesses e pagá-las com o dinheiro dos outros. Dito assim até pode parecer forte, mas é o que acontece sempre que a Irlanda ou outros países europeus dão benefícios fiscais com dinheiro que não têm e deixam a fatura para a vizinhança pagar. Quando vários países europeus chumbam, como aconteceu na semana passada, uma diretiva para tornar mais transparentes as operações das multinacionais na Europa, é disso que estamos a falar. De um grupo de países que não quer que se saiba o que andam a fazer. ‘Roubar’ diariamente milhões de euros em impostos aos vizinhos é muito rentável e não dá para todos. Não vale a pena esconderem-se atrás de expressões cifradas como “preços de transferência”, “royalties” e outras que tais, que, na prática, são verdadeiros vistos gold para os lucros circularem livremente na Europa e escapar à tributação.

A Europa tem um gigantesco elefante na sala: os lucros das multinacionais que fogem aos impostos com ajuda de alguns países.
É como se existisse uma espécie de variante da lei da atração universal, em que, quase misteriosamente, os lucros são atraídos por aqueles países onde pagam pouco ou nenhum imposto. Como foi possível que Einstein deixasse escapar algo tão óbvio? É só comparar o volume de negócios de gigantes como a Google, o Facebook ou outros semelhantes em Portugal com os impostos que pagam para se perceber a dimensão do esquema. Claro que o Estado português também não está isento de truques. Também tem o regime de residentes não habituais, que tanto tem desagradado a vários dos nossos parceiros europeus. Mas achar que umas centenas de reformados são o mesmo que milhares de milhões de euros a fugir todos os anos é não (querer) ver o elefante que está bem no meio da Europa.
Em 2016, quando a Comissão Europeia obrigou a Apple a devolver benefícios fiscais de vários anos à Irlanda, o paquiderme pesava 13 mil milhões de euros. Praticamente, o equivalente a um ano de IRS ou IVA em Portugal. Claro que Dublin não o queria receber. Talvez por ter bem consciência de que o dinheiro não era seu. Na verdade, segundo contas avançadas então pelo “Financial Times”, o valor que Bruxelas estava a obrigar a empresa americana a pagar — uma decisão que o CEO da empresa, Tim Cook, chamou “political crap” (porcaria política) e motivou uma carta de mais de 100 empresários americanos desagradados — correspondia a 38 vezes o total pago no conjunto dos restantes países da União Europeia. Em relação aos impostos pagos pela empresa em Portugal, é o equivalente a 7647 anos de cobrança. É caso para dizer que, ao contrário da atração dos lucros pelos paraísos fiscais que devia ser estudada pela astrofísica, a análise à receita do Fisco português com estas empresas é mais do ramo da Física Quântica. E o caso da Apple é apenas uma pequena parte do problema. Há muitas mais empresas a fazer o mesmo.
Perguntar-se-á o leitor: o que ganham então os países com estas políticas se chegam até a não cobrar impostos em alguns casos? No caso da Apple, a resposta tem meras quatro letras: Cork. Foi a primeira sede da empresa fora dos EUA, é lá que funciona a Apple Sales International, que fatura tudo o que se vende fora do mercado americano, e é lá que a empresa tem mais de 3000 trabalhadores. Parece pouco para uma fatura de 13 mil milhões de euros? Nem por isso. É até bastante barato. Desde que seja com os impostos da vizinha (texto de opinião do jornalista do Expresso, João Silvestre)


P.S.: A Web Summit, com quem o Estado português gasta milhões, continua sem apresentar contas. Onde está a sede da empresa que a organiza? Aceitam-se apostas.

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