"Na
última quinta-feira, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa,
fez-se uma descoberta curiosa: a de que este Governo não tem legitimidade. E
não tem porquê? A resposta dos circunstantes, com Mário Soares em destaque,
baseia-se em três pontos essenciais: porque é detestado, mesmo odiado, pelo
povo; porque faz o contrário do que prometeu e porque não cumpre a Constituição.
Vamos ver cada ponto.
O Governo é
provavelmente odiado ou detestado pelo povo. Mas isso não lhe retira legitimidade.
Os Governos legítimos são os que têm apoio no Parlamento e não os que são
adorados pelo povo. Se a legitimidade dependesse do facto de não existirem
manifestações de desagrado, a maioria dos Governos (e sobretudo os de Soares)
teria caído a meio dos mandatos.
Perguntar-se-á:
e o Parlamento não é suposto representar o povo? É! Mas por um mandato de
quatro anos. A existência de mandatos é o que distingue a democracia
representativa (aquela em que vivemos) da democracia direta, na qual a vontade
instantânea se sobrepõe à dos representantes. Ora, os representantes
democraticamente eleitos no Parlamento têm apoiado o Governo, aprovando-lhes o
Orçamento e derrotando moções de censura. O Governo mantém portanto a mais
importante das fontes de legitimidade: ser apoiado pela Assembleia da
República.
Quanto ao
facto de não cumprir a Constituição, o argumento é manhoso. Na verdade, o
Governo faz propostas que se revelam inconstitucionais, mas depois de o
Tribunal competente se pronunciar, retira essas propostas. Isto aconteceu com
todos os Governos, não é novo. O que é diferente é o facto de neste Governo se
assistir a essa querela com maior intensidade. Porém, recordo que Cavaco Silva
já apelidara o TC de "força de bloqueio", o que mostra bem que esta questão
é antiga.
Sobre não
fazer o que prometeu, sejamos sérios: quem o fez?
Resta o que
pode fazer o Presidente. E aqui digamos que o Chefe do Estado não pode, por
lei, demitir o Governo, salvo para assegurar o regular funcionamento das
instituições. E pode, isso sim, dissolver o Parlamento e convocar novas
eleições. Mas é ele - e mais ninguém - que tem de estar convencido disso. Ora,
poderia fazê-lo, dadas as relações do Governo com o Tribunal Constitucional, ou
a ausência de diálogo frutuoso com o Parlamento (entendido como com os outros
partidos, que não os da coligação). Mas de nada lhe serviria se das eleições
não viesse uma solução política radicalmente diferente. E sublinhe-se que umas
eleições neste momento colocariam os nossos indicadores económicos ainda sob
maior pressão.
A legitimidade
do Governo é um assunto sério, que não deve vir à baila por mero oportunismo
político. Foi invocado por um ex-chefe do Estado que sabe bem que a
ilegitimidade do Governo permite que outras forças que fazem parte dos
equilíbrios nacionais - tribunais, forças militares, forças de segurança, atuem
na defesa da Constituição e, portanto, contra um governo usurpador.
É para mim
triste que estes pensamentos básicos (não gosto do Governo, não gosto do
Presidente, logo isto é tudo ilegítimo e tem de ser derrubado) sejam expendidos
por quem, no passado, foi como primeiro-ministro detestado. E que detestava o
Presidente da República de então.
Há muita gente
de cabeça perdida, muita gente com razões para isso face ao desespero que os
sacrifícios lhes têm provocado. Mas detesto ver quem conhece as regras, quem
sabe quais são os problemas, aproveitar-se desse desespero para iludir e
enganar.
Eu não ficava
nada triste se este Governo saísse (embora não espere nenhum substancialmente
diferente, acho que haver mais diálogo e coesão nos fazia muito bem). Mas nunca
poderei - porque é mentira - dizer que ele não é legítimo.
É mau, mas é
legítimo e foi eleito livremente pelos cidadãos" (texto de Henrique
Monteiro, Expresso com a devida vénia)