domingo, abril 02, 2023

“O bordado da Madeira é um legado tremendo que não pode desaparecer”

Chegaram a ser 30 mil bordadeiras, mas no ano passado só 900 mulheres estavam a trabalhar para as fábricas. Esta arte vende-se cara, mas paga mal. Falámos com quem guarda o saber fazer. Não se sabe se serão as cerejeiras ou as bordadeiras a desaparecer primeiro no Jardim da Serra, uma freguesia rural da ilha da Madeira. O discurso da bordadeira Margarida Câmara, que apanhámos há meia hora junto ao Mercado dos Lavradores, no centro do Funchal, depois de mais uma sessão de fisioterapia, é pouco positivo porque já nada é o que era no alto da serra a mais de 800 metros de altura. Fala-se da quebra na produção da cereja, porque talvez seja mais fácil começar pelos problemas da natureza. A culpa não é de ninguém que Margarida conheça. Já não se pode dizer o mesmo sobre a ameaça que paira sobre as mulheres que fazem o famoso bordado da Madeira, porque a ela, quando não está de baixa como agora por causa das mãos dormentes, muito provavelmente devido a uma doença profissional, cabe-lhe fazer a ponte entre o patrão e as bordadeiras. Tal como a sua mãe, que foi agente de uma das casas de bordados mais conhecidas do Funchal, a Bordal, Margarida Câmara ajuda as suas vizinhas a arranjar trabalho.


“O senhor doutor tem de pagar às outras mulheres da casa”, responde Margarida Câmara à roda de bordadeiras que se juntaram para conversar com o Ípsilon. A tagarelice passou a burburinho quando entrou à discussão o pagamento feito às bordadeiras pelo trabalho pago à tarefa. “Quando acabarem estas senhoras de idade, ninguém borda”, comenta Maria Rodrigues Abreu de Jesus, 60 anos, que recebe as vizinhas na sua casa na estrada n.º 3 do Jardim da Serra, com idades entre os 50 e poucos anos e os 70 e muitos. Tem uma toalha de mesa com 2,8 metros no colo e aponta para a zona que promete acabar em breve com ponto “pau grosso”, aplicado normalmente às hastes dos elementos vegetais dos bordados. “Sem olhar para as estrelas, a olhar para o bordado, isto é uma semaninha, porque também tenho de fazer a minha vida.” Já fez um ano com a toalha, dia 7 de Fevereiro. “Penso que para Abril estará acabada.”

Borda-se de segunda a sexta, às tardes — porque “as manhãs é para fazer ervinha e pastorear”, cometa-se na roda. Maria Rodrigues explica que acordou um pagamento de 500 euros pela toalha que lhe vai levar mais de um ano a bordar. “Cada um trabalha com a enxada que aprendeu.”

Todas sabem que toalhas grandes e ricas podem chegar a ser vendidas no Funchal por vários milhares de euros.

Maria Gouveia, 50 anos, levará uma semana a fazer um individual com a forma das folhas das plantas costela-de-adão bordado com o ponto “caseado”, geralmente usado nos rebordos e para contornar o tecido recortado. “Não é para brincar”, comenta, sobre o trabalho que vê pela frente, mas a mais nova das bordadeiras evita revelar quanto lhe pagam.

Workshop de bordado

Na Bordal, já no Funchal, uma fábrica que se espalha por vários andares e inclui um pequeno espaço museológico, dão-nos um pequeno pano para bordar marcado a tinta azul com o desenho de uma flor. A agulha fina está na mão direita; o dedal é para usar no dedo médio da mesma mão; a dedeira ou dedaleira, um dedal sem cabeça, vai parar ao indicador da mão esquerda.

“A agulha entra e sai sempre pelo mesmo buraquinho. A linha é que vai para a direita ou para a esquerda. Isso é a magia do bordado”, diz Salete Aguiar à jornalista do Ípsilon, a única “aluna” deste workshop de bordado.

Na fábrica da Bordal, uma das poucas casas de bordados que sobram no Funchal e que exporta parte da sua produção — já aqui se fez uma colecção de golas para a Chanel —, estamos a tentar aprender o ponto “granitos” ou “garanitos”, um dos mais simples entre as mais de três dezenas que estão registados oficialmente na Madeira. Não acertamos com a agulha, nem com a direcção da linha. “A orientação da agulha é sempre para o lado do coração, para a linha ficar sempre do mesmo lado.”

Mas mesmo com este apelo ao sentimento não há como nos concentrarmos na aula quando a outra visita da fábrica é a rainha da Noruega, que veio ao Funchal numa visita privada para festejar os 85 anos do marido. Sonja, que já tinha estado na véspera na Bordal, há-de levar um conjunto de napperons em forma de folha igual aos bordados no Jardim da Serra.

Salete é responsável pela chamada “recebedoria” da fábrica, a quem cabe receber o trabalho feito pelas bordadeiras e ver se está bem executado. “As bordadeiras trabalham todas em casa. Sempre foi assim.” “Dividiam” — dividem — “a vida entre o bordado e a lida da casa”.

O número de bordadeiras que existem actualmente varia conforme o interlocutor. “Devem ser 1500, mas já chegaram a ser 30 mil quando era uma indústria à séria. Não sou Nostradamus, mas diria que em pouco mais de dez anos a profissão pode extinguir-se. É a crónica de uma morte anunciada”, afirma Teresa Klut, autora do livro Casa de Bordados (2017) e também directora do centro cultural Quinta Magnólia, no Funchal, onde foi inaugurada no início do mês uma exposição dos artistas Ana Vidigal e Hugo Brazão que reflecte sobre o legado do bordado na memória colectiva madeirense.

“A remuneração é baixa. Como as bordadeiras recebem ao ponto, ganham mais ou menos se trabalharem muito. Muitas delas permanecem no activo para descontarem para a Segurança Social e conseguirem uma pequena reforma”, afirma Teresa Klut.

Se no processo de fabrico a bordadeira é a peça principal, há toda uma cadeira de produção com “nomes engraçadíssimos”, continua Teresa Klut, capazes de identificarem a tarefa que as mulheres desempenham. Picotadora, contadora, estampadeira, lavadeira, engomadeira, recortadeira, dobradeira. Começa na desenhadora — que durante muito tempo foi um homem —, que não é uma simples artesã, mas uma artista.” São elas que decidem os pontos a ser aplicados no pano.

Na Bordal, a desenhadora Dina Pinto Gomes, que tem à sua disposição um arquivo com 60 mil desenhos, explica que ainda é possível criar algo de novo. “Todo o desenho é feito à mão. Um cliente pode ter um prato e nós conseguimos adaptar para uma toalha.”

Com um instrumento chamado curvímetro, percorrem-se todas as linhas do desenho e contabilizam-se os pontos em centímetros, explica João Vacas, sócio gerente da fábrica. É o trabalho da contadora. Todos os anos o Governo Regional publica uma tabela com o custo de cada ponto para fazer a equivalência. Um metro de “caseado” é diferente do “Richelieu”, semelhante a uma renda e o que parece mais complexo.

A picotadora faz a picotagem. “O desenho original, metido entre duas folhas vegetais, é todo perfurado.” Cabe à estampadeira passar sobre a cópia com milhares de furinhos uma almofada, uma “boneca” feita com restos de tecido, embebida com uma tinta feita de anil, parafina e petróleo. O pano fica estampado com linhas de azul profundo, uma cor que faz parte do imaginário local ligado ao bordado da Madeira.

Voltemos a Salete, pois é à responsável pela recebedoria que cabe entregar às agentes distribuidoras os panos com os desenhos azuis que seguem para as zonas rurais da ilha para serem bordados pelas mulheres.

“Há cada vez menos bordadeiras”, diz o gestor da Bordal. “O bordado que vamos deixar de ter é o das tolhas mais ricas. É uma toalha cheia em que a pessoa abre e só vê bordado. Ninguém quer ficar sentado a bordar o dia inteiro”, afirma Susana Vacas, que chega agora à conversa, após a saída da rainha da Noruega. “Acho que ainda temos pessoas para mais dez anos de bordado complicado.”

A Bordal tem a trabalhar para a empresa entre 400 a 500 bordadeiras, nem todas em regime exclusivo. “Os aumentos são atribuídos pelo Governo Regional anualmente. Nós premiamos todos os anos a qualidade de algumas bordadeiras, os prazos de entrega. Foi a forma de gerir a empresa que implementámos, cada negócio tem a sua.”

Em 1906, havia 30 mil bordadeiras rurais e duas mil profissionais no Funchal e arredores, que trabalhavam para 60 casas de bordados, contabiliza Teresa Klut no seu livro. As primeiras bordadeiras devem ter chegado logo no início do povoamento da ilha, vindas de várias regiões do continente, encontrando-se a primeira referência ao bordado da Madeira no século XVI. Mas o desenvolvimento desta indústria artesanal no século XIX ficou a dever-se primeiro ao mercado britânico e depois ao alemão, com os respectivos nacionais a controlaram a produção e exportação durante muito tempo.

“A adesão da população feminina a este sistema artesanal, tendo por base a venda do seu bordado às fábricas, deve ser vista à luz das dificuldades do camponês do século XIX”, escreve Klut. “O escasso rendimento do agregado familiar era, assim, completado, sem serem alterados os padrões culturais vigentes, uma vez que a mulher continuou em casa a bordar, enquanto zelava pela família e, simultaneamente, pelos afazeres domésticos.”

Já no início do século XX passou a dominar o mercado norte-americano, registando-se a existência 100 casas comerciais em 1923, com 70 mil pessoas. Foi o pico do período áureo do bordado da Madeira. Os comerciantes estrangeiros foram sendo substituídos por portugueses. Uma menor procura externa, conclui o capítulo dedicado à história do bordado, resultou numa diminuição dos lucros e na redução do pagamento às bordadeiras.

“Não encontrei nenhuma fotografia das bordadeiras profissionais a saírem das fábricas. Havia duas categorias de bordadeiras, as profissionais e as de casa”, explica-nos Teresa Klut no seu gabinete na Quinta Magnólia, rodeada por desenhos antigos e material que usou para fazer o livro.

“Hoje, as casas que restam vão substituindo os pontos mais difíceis por outros mais simples para baixar os custos. Se quiserem manter esta artesania, é preciso investir na formação e na continuidade da arte”, continua na conversa com o Ípsilon. A formação deve ser dirigida a pessoas na casa dos 40 ou 50 anos: “Tem de ser pessoas que já tenham o bordado na sua experiência de vida. Terem visto as mães, as avós, as tias e as vizinhas nessa actividade. É preciso tentar aliciá-las, pelo menos, com um ordenado mínimo e algum bónus.”

Só 11 casas no activo

Num prédio também no centro do Funchal, é através do cheiro de petróleo tão típico da tinta para marcar o desenho nos panos que identificamos o andar onde está instalada a Gês Bordados. A empresa trabalha com designers de moda como Joana Duarte e também com o mercado externo. Neste momento, têm em mãos uma encomenda para os Estados Unidos onde está a ser aplicada a palavra “Love”, através da sobreposição de tecidos, recorrendo ao ponto francês.

Ilídio Gonçalves, um dos sócios-gerentes, exibe aquilo que considera ser uma relíquia, uma toalha que levou uns três anos a fazer na Ribeira Brava. “Já existe pouca gente que faz isto. Tem quase todos os pontos. Esta riqueza não é qualquer pessoa que a pode comprar. Seria sete a oito mil euros para sair.” Há 20 anos, era possível vender por ano cerca de 20 ou 30 das toalhas que levam um ano fazer. “Agora serão duas, três, no máximo seis.”

Na fábrica de Luís Sousa, muda-se o cenário, mas a conversa do sócio-gerente José Barreto, que só trabalha para exportação, é a mesma: “O nosso problema agora são as bordadeiras. Vão-se reformando.”

A fábrica trabalha com cerca de 15 agentes. Cada uma entrega e recolhe trabalho junto de dez, 20 ou 30 bordadeiras. Já nem todas sabem fazer caseado. A conversa torna-se vaga quando queremos saber como se distribuem as melhores bordadeiras pela ilha, porque o segredo, em tempo de escassez, é a alma do negócio. “Quem ganha com isto são os nossos clientes, que revendem por três vezes mais.”

Na sala de selagem e certificação do Instituto do Vinho, Bordado e Artesanato da Madeira estão a chegar toalhas de banho bordadas na Gês Bordados para serem autenticadas e ganharem um certificado. Não há bordado da Madeira que possa ser vendido sem o selo holográfico aqui colocado depois de cada peça ser inspeccionada.

“O papel do instituto é guardar o saber fazer”, afirma Paulo Bairos, responsável pela divisão de autenticação, um papel que cumprem desde que o Estado Novo criou o Grémio dos Industriais de Bordados da Madeira, que passou ter a função de fiscalizar a produção de um sector que durante mais de um século funcionou de forma liberal. “O artesanato como design foi uma barreira que quebrámos em 1935, porque já nessa altura era obrigatório a existência nas fábricas de bordados de um departamento de desenhos em que o topo da carreira era o desenhador criador.”

O instituto guarda três dossiers com amostras da execução dos padrões recolhidos junto das bordadeiras, bem como um largo conjunto de desenhos, muitos das fábricas que entretanto foram fechando.

Os técnicos do instituto analisam 50 mil peças por ano, mas nos anos 80 facilmente atingiam as 200 mil. “Há uma redução, mas há um apuramento do cliente final. O bordado da Madeira não vai desaparecer, mas vai ser mais restrito e bem pago. Arranjar gente nova que queira trabalhar nas condições actuais será difícil. Os produtores também têm que estar disponíveis para tornar o produto mais atractivo.”

Hoje, restam 11 casas de bordados no activo. No ano passado, foram 960 as bordadeiras que apresentaram trabalho através das fábricas, mas a bolsa do instituto tem cerca de 1200 bordadeiras registadas. “O bordado não se pode limitar à peça de guarnição. É preciso olhar para o bordado como obra de arte. A óptica será a de um bom têxtil que é também uma obra de arte. O trabalho oficinal tem de evoluir para trabalho de artista e essa conceptualização esteve sempre aqui através da presença do desenhador criador. O bordado da Madeira é um legado tremendo que não pode desaparecer. O desenhador criador é o compositor e a bordadeira é uma intérprete — é uma simbiose.”

A solução para o futuro não se faz por decreto, defende Paulo Bairos. “Terá o contributo das três partes: produtores, instituto e bordadeiras. Aos produtores caberá melhorar as condições de trabalho da profissão; ao instituto valorizar e promover a arte de bordar; às bordadeiras acreditar na sua profissão e nas suas capacidades.” (Publico, texto da jornalista Isabel Salema que viajou a convite da Associação de Promoção da Madeira e fotos de Paulo Sá)

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