domingo, abril 02, 2023

Madeira: Quando o desenho é feito com agulhas e alfinetes


O bordado da Madeira entrou na galeria de arte. Artistas visuais reflectem sobre uma arte embrenhada na memória colectiva das ilhas. Há futuro para uma artesania que tem tanto de beleza quanto de dor? Ana Vidigal tem o dobro da idade de Hugo Brazão. A primeira é uma veterana da arte contemporânea, lisboeta, com uma longa carreira; o segundo será um jovem artista com um trabalho promissor, nascido na Madeira e londrino até há pouco tempo. A idade é uma das diferenças que saltam à vista na inauguração da exposição Forrado que juntou, no início do mês na Quinta Magnólia — um centro cultural que já foi um distinto clube inglês —, tutti quanti da sociedade do Funchal, desde Miguel Albuquerque, presidente do Governo Regional da Madeira, a vários militares fardados, passando pela gente ligada à cultura.

É Ana Vidigal, que começou a expor uma década antes de Hugo Brazão nascer, que chama a atenção para a diferença de idades quando visitamos esta exposição conjunta que interroga o lugar do bordado da Madeira na contemporaneidade, mas também a presença, cada vez mais constante, da mão, do trabalho manual, na produção artística actual. “O grande exercício que fiz foi pensar como é que iria adaptar-me à obra do Hugo. Acho que aprendi mais com o ele do que ele comigo”, diz a artista ao Ípsilon ainda durante a montagem da exposição, que poderá ser vista até ao final do ano.


Ela vê-se como uma pintora que gosta de expandir a sua prática para outros meios e que, através do bordado, regressa aqui ao trabalho sobre as memórias de infância e o lugar da mulher na sociedade; ele como um artista multimédia que tem dado uma atenção especial ao têxtil nos últimos anos e pesquisou, pela primeira vez, uma arte tradicional da ilha em que nasceu e que, até agora, não tinha dado grande atenção.

Mas, além da idade e naturalidade, há muitas diferenças a assinalar se entrarmos no jogo “Descubra as Diferenças”, um dos passatempos que em tempos eram obrigatórios nas páginas dos jornais e que Ana Vidigal convocou para abrir esta exposição. É na primeira sala do centro cultural que encontramos os recortes deste passatempo dedicado às diferenças que podemos descobrir entre dois desenhos aparentemente iguais.

Os recortes dos jornais apresentam-se presos com alfinetes a um pano de cozinha cuidadosamente bordado. Compõem uma colagem, técnica com origem na pintura a que a artista recorre regularmente. Ana Vidigal encontrou em casa dos pais um conjunto de panos da cozinha — em que a avó materna bordou os dias da semana acompanhados por figuras femininas —, que aparentemente nunca ninguém usara. “Trouxe-os quando desmanchei a casa dos meus pais. Estavam lá em casa há 60 anos. Eram tão bonitos que ninguém usou.”

Fazem parte da série a que deu o nome Semana Inglesa (2020), em que vemos igualmente colados aos panos vários desenhos com modelos para bordados copiados de revistas femininas pela avó. “São tudo coisas que a minha avó bordava. Eram desenhos que ela usava para bordar no bastidor; não eram bordados da Madeira. Ela copiava com papel vegetal das revistas e depois punha em cima do pano e voltava a passar com lápis. Ficava desenhado no pano por decalque. Ainda me lembro disso. Este mostra um ‘A’ de ‘Ana’.”

É uma obra ambígua em que a artista evoca a memória de um gosto familiar mais antigo pelo desenho, mas em que essa prática surge ligada aos chamados “lavores femininos”, a que não se dava muita importância. Bordava-se em casa; pintava-se — como a avó paterna — “para ela”. Na família de Ana Vidigal, nenhuma destas práticas artísticas chegaram a ter uma expressão no espaço público ou se transformaram numa profissão para as suas avós.

O que é, afinal, o desenho feito com agulha e linha sobre têxtil? — poderia ser também o mote desta exposição. Quais são as diferenças entre os vários tipos de expressão artística?

O bordado e o trabalho artesanal é o centro da grande instalação site specific Petit (2023) que Ana Vidigal fez para a exposição. Uma pintora que aqui decidiu prescindir dos pincéis e das telas — mas não totalmente da pintura — para melhor poder dialogar com o trabalho têxtil de Hugo Brazão.

A relação com o legado da família de Vidigal está igualmente presente nesta obra composta por mais de 40 guardanapos e napperons, estes, sim, feitos com bordado da Madeira. Presos também por alfinetes, erguem uma parede na sala principal do centro cultural profusamente iluminada pela luz que entra pelas janelas de sacada que dão para o exótico jardim da Quinta Magnólia.

Os guardanapos mantêm as dobras com que foram primorosamente engomados há décadas. A instalação como que nos engana: parece feita de papel, como se fosse um enorme origami. É o momento em que o bordado da Madeira está, de facto, mais visível e onde, mais de perto, conseguimos observar a minúcia desta artesania que está em vias de extinção no arquipélago.

A denúncia deste bordado, ou o luto pelo bordado, chega com Praia Formosa (2023), a peça de Ana Vidigal que fecha a exposição, onde a artista regressa à pintura mas não aos pincéis. Trata-se de um acrílico pintado sobre um lençol com bordado da Madeira em que a tinta preta é aplicada através de spray ou com os próprios dedos da artista. O negro oculta todo esse desenho tradicional feito com recurso à agulha e à linha pelas mãos das bordadeiras da Madeira.

“Estas instalações falam da exploração horrível daquelas senhoras que faziam o bordado da Madeira. É preciso ter consciência do que acontecia”, comenta Ana Vidigal, acrescentando que o trabalho das mulheres que bordam continua ainda a ser mal pago.

A pintura sobre o lençol é uma reflexão sobre o lugar do trabalho feminino, como é habitual no trabalho de Vidigal, mas também uma homenagem a outra artesania do arquipélago, desta vez a calçada da Madeira feita com seixo rolado da praia. “Há quem lhe chame bordado de pedra a preto e branco.”

O duplo sentido de Forrado

Se as cores naturais estão muito presentes no trabalho de Vidigal, são notórias as diferenças que os dois artistas fazem da cor na exposição. “No Hugo, a paleta de cores é absolutamente forte”, aponta Ana Vidigal. Verde, azul, amarelo, vermelho, rosa, laranja, vários tons da mesma cor, no caso de Hugo Brazão; branco e preto, com variações de transparências, no de Ana Vidigal. E, como às vezes a vida imita a arte, o mesmo gosto cromático contrastante foi visível nas toilettes com que ambos se apresentaram na inauguração da Quinta da Magnólia: Hugo Brazão opondo o azulão da camisa ao verde vivo das calças; Ana Vidigal mais neutra.

Chegamos, então, ao diálogo mais activo e, porque não, às semelhanças entre os trabalhos apresentados pelos dois artistas nesta exposição a que deram o título Forrado.

O termo é uma referência directa aos tecidos que ficam escondidos e que têm como função reforçar, no interior, uma peça de roupa. Nas instalações em tecido de Hugo Brazão, o verso acaba por ser tão importante como a frente. Permite-nos descobrir o lado mais oculto e caótico da costura, seja à mão, seja à máquina.

Cold Feet (2023), uma instalação têxtil quase com quatro metros de altura, é a obra mais espectacular apresentada por Hugo Brazão na Quinta Magnólia. Vemos um par de pernas e pés escaparem do plano vertical de tecido para se atravessarem à nossa frente e ganharem uma presença escultórica.

“Foi um dia em que ia a caminho do atelier e estava a chover. Tinha os pés frios e comecei a pensar na expressão inglesa cold feet, que significa cancelar os planos à última hora. Ando a pé para todo o lado. Ajuda-me a pensar”, diz a propósito dos quilómetros que faz todos os dias a andar a pé, agora em Lisboa, cidade onde se instalou no ano passado depois de uma década em Londres.

O “forrado” em que Brazão está mais interessado nada tem que ver com tecidos. Na Madeira, o termo, que é um regionalismo, refere-se a um estado de tempo nubloso. O trabalho do artista vive muito desse deslocamento de significados. Mas se os madeirenses e os restantes humanos vivem obcecados com o tempo — seguem agora o percurso das nuvens através do telemóvel, como podemos constatar na instalação Ombrophobia (2023) —, não parecem tão preocupados com as alterações climáticas. “Os humanos são os únicos animais que têm o poder de alterar o tempo, mas, embora tenham essa possibilidade, nunca se comprometem a longo prazo.”

Se andar a pé o liberta e ajuda a desenvolver os próximos passos de um projecto, o mesmo diz do acto de coser, da minucia da costura. “Entra-se ali num estado mental quase terapêutico.”

Hugo Brazão é um artista que faz parte de uma geração nascida no final dos anos 80 que já não tem memória de ver alguém a bordar nos serões de família. Mas, antes de começar a desenvolver o projecto da exposição, quis visitar as casas de bordados, as fábricas, que ainda trabalham na Madeira.

“Tendo crescido na Madeira, o bordado é uma coisa que quase nos impõem gostar. A história mais social, o facto de o trabalho ser mal pago, isso já tinha lido e sabia. Socialmente é um trabalho desqualificado, é visto como uma coisa antiquada.”

O que descobriu foi a parte mais técnica. “Gostei muito daquela máquina de picotar e daquela cor azul.” Como se faz a cópia dos desenhos guardados nos arquivos das fábricas para o tecido através da picotagem; como a cor é aplicada no pano através da passagem de uma boneca embebida em tinta que percorre o desenho picotado numa folha de papel vegetal e permite a passagem do azul anil. “É muito interessante ver como ainda é feito da mesma forma.” Numa das suas peças, Hail Cannon, o picotado que introduziu na base de madeira oculta no verso da obra ajudou-o a transferir o desenho pespontado que surge na frente sobre o tecido acolchoado.

Hugo Brazão ainda está a tentar descobrir por que razão quis ver as bordadeiras da ilha a trabalhar. “Talvez por a parte manual ser tão importante no meu trabalho. Interessou-me ver o tempo que elas podem dedicar a um trabalho manual, repetitivo.” Para fazerem uma colcha ricamente bordada podem levar mais de um ano.

“O resultado final do meu trabalho é um têxtil, mas comecei com vários esboços. Depois tenho que fazer os moldes, arranjar os tecidos, cortar os moldes, cortar os tecidos e coser tudo. Passar a ferro cada bocadinho de tecido. Sem contar com o tempo do desenho, é uma coisa que leva imenso tempo. Porque é que estou a fazer aquilo? Podia tirar uma fotografia e imprimir.”

O regresso da mão nas práticas actuais dos artistas, concordam os dois, é bastante visível na produção actual. “Acho que é uma forma de questionar essa cultura do instantâneo”, diz Hugo Brazão.

"É quase como o regresso à pintura nos anos 80", acrescenta Ana Vidigal. “É cíclico, passaram-se 40 anos e voltamos ao princípio. Gosto que haja um regresso da mão, mas que a mão acompanhe sempre a cabeça. Porque artistas só de mão há centenas e não interessam nada.”

Beleza e dor

Lourdes Castro, a mais conhecida artista visual madeirense, que morreu no ano passado, uma das grandes referências da arte contemporânea portuguesa, interessou-se pelo bordado da Madeira e trouxe-o para dentro da sua obra.

São célebres os lençóis bordados à mão como as Sombras Deitadas, que fez nas décadas de 60 e 70. É possível encontrar várias destas obras — tal como várias outras em que também recorre ao bordado, como Lusíadas, um livro em plexiglass de 1971 — na exposição Como Uma Ilha sobre o Mar: Lourdes Castro, no Mudas — Museu de Arte Contemporânea da Madeira, situado na Calheta. Está igualmente presente uma caixa de costura da artista, onde a artista guardava, entre agulhas e linhas, o paninho com matrizes de exercício dos pontos do bordado da Madeira.

“Na ilha há uma tradição muito enraizada desta linguagem, deste exercício da mão feminina, através do bordar”, explica Márcia de Sousa, curadora da exposição que inaugurou um ano após a sua morte e que é possível ver até final de Maio. “Não tenho informação sobre essa aprendizagem da Lourdes de Castro, desse dote, mas é comum à época que parte da formação das meninas incluísse aprender a bordar. Ela refere várias vezes o bordado como elemento da sua infância. Tendo essa formação, ela vai incorporá-lo no seu processo artístico e fazer muitas vezes referências a esta linguagem através dos lençóis, dos panos de parede, das almofadas, destes suportes que vemos aqui menos comuns no trabalho dela.”

Ao contrário das artesãs, uma artista como Lourdes Castro não produz um desenho já feito a partir de uma padronização. “As matrizes que conhecemos do bordado da Madeira são quase sempre sequenciais. Aplicamos determinado ponto a determinada forma. A Lourdes Castro, recorrendo a uma técnica tradicional, retira-lhe a padronização e aplica esses pontos a outros suportes, a outras linguagens, a outros temas, criando inovação.” Usa tanto o ponto corda, mais corrido, mais rápido de execução, como o ponto francês, que normalmente se usa para cerzir.

O fotógrafo R. L. Hilgering captou-a a bordar na abertura de uma exposição na Galeria 111, em Lisboa, nos anos 70 em que os convites foram bordados pela própria Lourdes quase em formato performativo. “É uma fotografia bastante interessante, ele é um belíssimo fotógrafo, que reporta este exercício performativo do acto de bordar ou de produzir um desenho através da linha.”

Contemporâneos a Lourdes Castro, Márcia de Sousa diz que não há na Madeira outros artistas que tenham usado o bordado com esta mestria. “Capaz de transpor suportes e materiais e de desenhar sobre o tecido através do bordado. No seu todo, ela é incomparável.”

No próximo ano, a directora do museu de arte contemporânea conta ter um projecto de Dayana Lucas (Caracas, 1987), outra jovem artista com ligações à Madeira, na sua programação. “Ela trabalha a linha de uma forma muito depurada. Dá um passo em frente e vai mergulhar de cabeça nesta ideia do feminino, na manualidade, no universo de uma profissão que está em extinção, que nunca foi muito bem acarinhada. O produto final é um misto entre a dor e o exercício da beleza" (Publico, texto da jornalista Isabel Salema que viajou a convite da Associação de Promoção da Madeira)

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