sábado, agosto 20, 2022

Dívida total do SNS a fornecedores subiu para os 2,3 mil milhões em Junho

Segundo dados do Portal do SNS, este é o valor mais alto dos últimos oito anos. Administração Central do Sistema de Saúde diz que valores de Junho não reflectem o efeito do OE 2022 com transferências de 292,8 milhões. Em Junho deste ano, a dívida total das entidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) a fornecedores externos ascendia a 2,3 mil milhões de euros, segundo dados do Portal do SNS, que tem informação disponível desde 2014. Este é o valor mais alto dos últimos oito anos. A dívida total engloba os valores de compromissos assumidos cujos prazos de pagamento ainda decorrem e a dívida vencida – aquela em que os prazos de pagamento já foram ultrapassados. Aliás, esta última representa 59,4% do total da dívida. Em anos passados, este peso já foi maior. Exemplo disso é Fevereiro de 2018, em que 70,3% da dívida global – nesse mês registou-se uma dívida total de 2,2 mil milhões de euros, a segunda mais elevada no período em análise – eram dívidas vencidas.

A redução de dívida das instituições de saúde, especialmente dos hospitais, tem sido uma preocupação permanente dos últimos governos. No final do ano passado, o Ministério da Saúde anunciou uma injecção de 84 milhões de euros com o objectivo de “aumentar a capacidade de resposta e de produção do SNS e reduzir a dívida”. Mas a tendência que se verifica desde o início do ano é de subida sucessiva dos valores, à semelhança de anos anteriores.

Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), aponta vários “factores importantes” para este aumento. Um deles é a maior actividade assistencial. “No segundo semestre de 2021 e no primeiro semestre deste ano houve um aumento notório de actividade, que está muito relacionado com a necessidade de recuperarmos a actividade que foi protelada durante a pandemia. No segundo semestre de 2021 muitos hospitais bateram recordes de produção e continuam.”

Por outro lado, há a subida dos custos de produção por variadas razões. Enumera a subida de preço dos combustíveis, que “começa a reflectir um aumento de gastos importante e não esperado no orçamento de 2022”, o preço da electricidade que “triplicou desde o ano passado”, os “aumentos de preços significativos em praticamente todos os materiais e consumíveis hospitalares” devido a problemas nas cadeias logísticas como a escassez de matérias-primas e o efeito da inflação, “que não foi acompanhado por variação nos preços dos contratos-programa, e que não estava previsto aquando da elaboração do Orçamento do Estado (OE) de 2022”.

“Os custos de produção aumentaram, mas os preços a que se pagam os hospitais não”, aponta Xavier Barreto, referindo que se os hospitais são pagos abaixo do custo real e a produção é maior, “aumentará naturalmente o défice de exploração e, consequentemente, a dívida”. “É importante que o ministério consiga responder à questão simples de quanto custa cada acto realizado no SNS”, ajustando o pagamento em função disso e “incorporando uma componente de eficiência”.

Ministério acompanha evolução

A trajectória da dívida “não se distancia do padrão de anos anteriores”, diz Xavier Barreto, lembrando que o OE “já previa um défice de cerca de 1000 milhões de euros”. “Os hospitais são subfinanciados, acumulam dívida e essas dívidas são depois pagas no final do ano com injecções extraordinárias de capital”, diz, salientando que a situação prejudica a eficiência. Lamenta não ver, neste momento, uma medida estrutural ou que possa alterar este padrão em que a dívida baixa apenas fruto de injecções de capital.

“O aumento da dívida é abrupto e continuando assim até final do ano, provavelmente atingiremos os valores que tínhamos no período pré-troika, na casa dos 3 mil milhões de dívida total”, diz, recordando que esse foi um dos temas discutido com a troika. “Nessa altura houve um esforço, mas como não aconteceu nada de estrutural, tudo se manteve na mesma”, lamenta, acrescentando que a revisão da carreira de gestor poderá contribuir para o aumento da eficiência e da produtividade.

Ao PÚBLICO a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) diz que os valores da dívida total de Junho “não integram o impacto das receitas previstas” no OE, “em virtude da sua recente aprovação”. “Com a aplicação do OE 2022, em Julho foram actualizados em cerca de 292,8 milhões de euros os montantes transferidos para as entidades do SNS, prevendo-se que este reforço financeiro se reflicta na diminuição da dívida total a Julho”.

“O Ministério da Saúde está a acompanhar a evolução da situação e adoptará as medidas que considerar serem necessárias para a concretização desse objectivo”, diz a ACSS, que recorda que o orçamento afecto ao SNS aumentou cerca de 700 milhões de euros em relação a 2021.

Crescimento dos pagamentos em atraso

Uma das questões que tem merecido especial atenção ao longo dos anos é a dos pagamentos em atraso - valores que estão por pagar há mais de 90 dias para lá da data acordada. Segundo o Portal do SNS, em Junho ascendiam a 611 milhões de euros, o que corresponde a 43,7% do total da dívida vencida. Muitas das injecções de capital têm sido direccionadas para reduzir os pagamentos em atraso.

Aliás, o ano passado terminou com o valor mais baixo registado no Portal do SNS – perto de 110 milhões de euros -, merecendo esse mesmo destaque do Ministério da Saúde, que quando apresentou o orçamento para este ano salientou a descida continuada dos pagamentos em atraso. Contudo, o valor de Junho está em linha com o do período homólogo de 2021 (cifrava-se em 605 milhões de euros).

A este propósito, o economista da saúde Eduardo Costa, salienta “um sinal preocupante, que é o acelerar da acumulação de pagamentos em atraso”. “Em média, nos primeiros seis meses deste ano, os pagamentos em atraso subiram a um ritmo de 84 milhões de euros por mês, face a um crescimento de 76 milhões de euros por mês no mesmo período de 2021”, diz.

O professor da Nova School of Business and Economics salienta os efeitos positivos dos reforços que têm existido nos orçamentos da saúde e que permitiram que nos primeiros semestres dos últimos três anos os pagamentos em atraso estivessem abaixo de todos os anos anteriores. Contudo, nota, a inflação que está prevista para este ano pode “anular” o reforço orçamental, fazendo com que, em termos reais, o orçamento do SNS seja menor.

Já para o também economista da Saúde, Pedro Pita Barros – que calcula em 77 milhões de euros por mês, em média, o ritmo de crescimento de pagamentos em atraso nos primeiros seis meses deste ano - é claro que “não foi ainda em 2022 que se inverteu o ciclo de colocar mais dinheiro, que desaparece sem que haja as transformações necessárias para que se estanque o crescimento dos pagamentos em atraso”. “O ter tido o stock de pagamentos em atraso mais baixo de sempre num final de ano não teve qualquer efeito sobre a dinâmica de crescimento das despesas (e que passam a pagamentos em atraso por parte dos hospitais EPE). Juntando o stock de pagamentos em atraso mais baixo de sempre a um orçamento que aparentava estar, em grande medida, em linha com as despesas previstas (…), torna-se preocupante que nada pareça ter mudado em termos desta dinâmica”, aponta o especialista.

Prazo médio de pagamento

Sobre a persistência dos pagamentos em atraso, Eduardo Costa considera que “sugere problemas de gestão que vão além da suborçamentação”. “A ausência de alterações substanciais nas estruturas de gestão e nos mecanismos de reporte e responsabilização, permite a manutenção de desvios orçamentais significativos em várias unidades hospitalares”, diz. “Para além da correcção de suborçamentações que persistam - teremos que começar a prestar mais atenção à inflação -, quebrar este ciclo implica não só uma maior autonomia das instituições, mas também um aumento da sua responsabilização sobre o cumprimento dos seus orçamentos.”

Está estabelecido na lei que os prazos de pagamento aos fornecedores não podem exceder 60 dias, mas das 56 instituições listadas no Portal do SNS, apenas 11 apresentavam no primeiro trimestre deste ano prazos médios de pagamento inferiores a dois meses. O Hospital de Loures, que transitou no início deste ano de parceria público-privada para gestão pública, não tem informação disponível.

O prazo médio de pagamento das instituições do SNS aos fornecedores situava-se nos 139 dias no primeiro trimestre deste ano, último dado disponível no Portal do SNS. Comparando com o período homólogo do ano passado, em que este prazo médio de pagamento estava nos 124 dias, houve um aumento. No último trimestre de 2021, o prazo médio de pagamento era de 137 dias (Publico, texto da jornalista Ana Maia)

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