Ao ar livre não há problema, o encontro será na esplanada, na praia e os amigos não estão infetados, neste bairro não se vê ninguém doente. E, de mão em mão, vai passando o telemóvel, o copo, o cigarro, e quase sem reparar, todos enfiam os dedos no saco para buscar mais uma batata frita. Não há risco, afinal, ninguém tem sintomas, todos se conhecem, são saudáveis. Estes são os argumentos dos jovens com comportamentos de risco no quotidiano. Uma população mais nova que preocupa os médicos que veem chegar aos hospitais doentes com idades mais baixas e, nem por isso, com manifestações menos graves de covid-19.
“Estes jovens associaram a ideia de desconfinamento a que já estava tudo bem e era possível relaxar nos cuidados. Os que nos estão a chegar não se contaminaram em grandes festas; foram infetados no dia a dia. Parecem achar que a doença só é transmitida por quem tem sintomas, o que está profundamente errado. Estou muito preocupada com a abertura dos centros comerciais, cafés e com o fim das aulas”, explica Sandra Braz, coordenadora da Unidade de Internamento de Contingência de Infeção Viral Emergente. Sandra é a responsável pelas enfermarias onde são internados os doentes com covid-19 no maior hospital do país. Um trabalho difícil que partilha com Fábio Cota Medeiros, infecciologista, e envolve outros 50 médicos, além dos enfermeiros e auxiliares. “Só é possível lidar com esta situação em equipa”, sublinha.
O terceiro piso do edifício principal tem espaço para 63 camas e, na última quinta-feira, 44 estavam ocupadas por doentes entre os 21 e os 99 anos. Havia ainda oito pessoas que aguardavam os resultados dos exames de diagnóstico para saber se seriam, ou não, internadas. No total, 52 potenciais e efetivos doentes: apenas menos nove do que o limite máximo da unidade. Há cinco semanas, 60 camas estavam ocupadas, o máximo até agora. “Todos os dias chega mais um doente”, explica Sandra Braz, numa tarde de intensa movimentação. “Aqui não há rotina”, avisa a profissional de Medicina Interna, que reconhece o enorme desafio trazido pela pandemia. Um desafio que começou a 16 de março e que a médica reconhece ainda não dar sinais de abrandamento. Por ali já passaram 408 doentes. Ontem, do total de internados, 34% tinham menos de 35 anos. Em todo o país, de acordo com o boletim epidemiológico da Direção-Geral da Saúde de quinta-feira, 5425 infetados tinham até 30 anos, mais 1759 do que um mês antes.
DAS FÉRIAS NA NEVE DE ITÁLIA ÀS ESPLANADAS DE LISBOA
“Na primeira fase tivemos os doentes que chegaram infetados porque trabalhavam fora do país ou tinham saído de Portugal em férias, na neve em Itália. Tinham entre 30 e 50 anos. E, logo a seguir, os familiares infetados por eles, entre 60 e 70 anos. Casos com gravidade”, recorda Sandra Braz. Depois, descreve, “vieram os infetados dos lares”. Trabalhadores e idosos, “num elevado número de internamentos, mas não especialmente graves”.
Agora, na terceira fase, chegaram os doentes mais jovens e nem por isso menos complexos. “São os infetados do pós-confinamento, que se contagiaram porque saíram de casa.” Alguns fazem parte de franjas populacionais mais expostas, trabalhadores da construção civil, cuidadores de idosos a domicílio, imigrantes de países africanos, paquistaneses e brasileiros. Mas também, jovens saudáveis, que não fazem parte de classes sociais desfavorecidas, mas com comportamentos de risco. Alguns têm de ser transferidos para os cuidados intensivos devido ao agravamento do estado clínico.
“Temos jovens em situação muito crítica e durante mais tempo nos cuidados intensivos devido à reação do sistema imunitário”
“São jovens que organizam jantares em casa e que parecem pensar que por ser em casa não há perigo. Jovens que no trabalho usam máscara e desinfetam as mãos, mas à noite reúnem-se em grupo e não usam proteção. Alguns foram visitar amigos que estavam infetados e não se protegeram. Parecem viver numa adolescência prolongada, em que não cabe a responsabilidade, associada a um sentimento de desafio ao risco e a uma necessidade de pertença ao grupo, em que quem não acompanha a maioria pode ser excluído”, explica Sandra Braz, com base na experiência recolhida junto dos doentes que chegam à unidade.
Assumindo que os profissionais de saúde ainda não sabem tudo sobre a covid-19, a médica conta que, ao contrário do que se poderia imaginar, muitos dos doentes mais velhos que passam pelos cuidados intensivos saem de lá mais rapidamente do que os mais novos. “Temos jovens que se mantêm em situação muito crítica e durante mais tempo nos cuidados intensivos e, daquilo que conhecemos da infeção, isso ocorre devido à reação do sistema imunitário destes doentes mais novos, que é muito mais intensa do que a dos mais velhos, podendo causar uma reação inflamatória multiorgânica que pode descompensar o organismo e ser muito grave”, explica a médica.
ACONTECE A TODOS
Doentes que desenvolvem problemas cardíacos, como Luís, 20 anos, que vive na margem Sul, esteve internado 15 dias no Hospital de Santa Maria e terá de esperar pelo menos seis meses até ter a certeza de que não ficará com sequelas para o resto da vida.
A recuperar em casa, onde vive com os pais, conta pelo telefone que enfrentar a doença não foi fácil, mesmo para quem praticava regularmente kickboxing e muaythai. “Sempre fui saudável e só quem passa por isto sabe o quanto é mau.” Luís nega qualquer comportamento de risco. Diz que ficava em casa e “só saía à noite para correr e fazer exercício, sempre sozinho”. Mas, então, como se terá infetado? “Talvez porque ao correr e exercitar-me, suava muito e punha a mão na cara, mesmo que antes tivesse colocado as mãos no chão para fazer flexões.” Pois, talvez. Mas não saía mesmo nunca? “Às vezes, à noite, ia às bombas de gasolina tomar café, mas ficava pouco tempo.” Pois, talvez.
E se, sobre a forma de contágio, não desenvolve a conversa, Luís já não se importa de falar da dureza da experiência. “Dormia mal, estava sempre preocupado, a solidão foi complicada, senti falta da família, dos amigos”, reconhece. E não se despede sem deixar uma mensagem aos jovens como ele: “Eu costumava dizer aos meus amigos que não ia apanhar o vírus e, afinal, aconteceu-me.” (Expresso, texto da jornalista CHRISTIANA MARTINS)
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