O primeiro-ministro procurou confirmar que aumento de
casos em Lisboa e Vale do Tejo se deve a aumento de testes. Epidemiologistas
retiraram força a essa tese, salvaguardaram que isso não explica toda a
realidade e disseram que o problema é real. Hipótese de segunda onda de
contágios existe. O que está confirmado é que começou a luta política a
propósito da pandemia. António Costa apareceu na reunião quinzenal do Infarmed,
que junta especialistas, destacadas figuras de Estado e líderes partidários,
disposto a provar a tese de que o aumento de casos na região de Lisboa e Vale
do Tejo se devia ao aumento da capacidade de testagem, um argumento que o
Governo, a diversas vozes, tem usado para criticar as reservas levantadas por
outros países europeus. Mas os epidemiologistas presentes levantaram reservas
em relação a esse argumento: o aumento de testes não justifica todos os casos.
O problema é real, o número médio de internados aumentou, o número de pessoas
em cuidados intensivos também e a região pode estar a iniciar uma segunda onda
de contágios.
No fim da reunião, o que se percebeu é que começou um
novo momento político: a pandemia e os próprios dados passaram a ser motivo de
luta partidária: PSD, CDS, Bloco e PAN fizeram críticas no final, com um
discurso de tom diferente do Presidente da República em relação ao conteúdo da
reunião. Marcelo Rebelo de Sousa é que manteve a linha que traçou, sem descolar
do Governo: no topo do poder não pode haver divergências públicas sobre a
pandemia, é a tese que prevalece em Belém.
“Os especialistas acabaram por desmentir o
primeiro-ministro. De forma elegante, mas fizeram-no”, conta ao Expresso fonte
que esteve presente na reunião. “O ambiente não foi o melhor depois das
intervenções de Baltazar Nunes [Escola Nacional de Saúde Pública] e Rita Sá
Machado [Direção-Geral de Saúde]”, nota outra fonte. “Tentou colocar a
hipótese, de forma quase afirmativa. Mas acabou contrariado”, diz outro dos
participantes.
A tese defendida pelo Governo (e subscrita, em parte,
por Marcelo Rebelo de Sousa) acabou assim por perder alguma força. E há um
dado, apresentado nesta mesma reunião, muito relevante: por cada 28 testes
realizados Portugal regista um caso positivo, o que coloca o país entre os
piores da Europa a 27. Ou seja, existe de facto um problema de contágio e mais:
desde maio, existe um aumento médio constante de internamentos e de
internamentos em cuidados intensivos na região.
Houve uma outra questão assumida pelos
epidemiologistas: existiu, de facto, uma diminuição do número de testes
realizados nos últimos 15 dias, que os especialistas atribuíram ao período dos
feriados. Um dado que reforça a notícia avançada terça-feira pelo Jornal de
Negócios: segundo os dados oficiais divulgados pelas autoridades de saúde o
número médio de testes de diagnóstico de covid-19 realizados diariamente caiu
24% desde o início da reabertura da economia, a 4 de maio. Mais: Portugal está,
neste momento, a fazer um média de um teste por cada mil habitantes, mas a 18
de maio estava a fazer 1,5 testes por cada mil habitantes.
O primeiro-ministro não escondeu, aliás, algum
desagrado com a falta de dados disponíveis e chegou mesmo a criticar informação
sobre testagem, nomeadamente o facto de o Instituto Ricardo Jorge só compilar
dados do SNS e não dos laboratórios privados - a que muitas empresas sobretudo
de construção civil tinham recorrido.
À saída da reunião, Marcelo Rebelo de Sousa tentou
desdramatizar a situação. O Presidente da República não só garantiu que a
situação estava controlada, como justificou o número de infectados com o
aumento de testes. "Temos adotado a metodologia da verdade. Não escondemos
números”, disse. Na reunião, o Presidente da República perguntou se os novos
casos podem ser de população trabalhadora que nunca chegou a confinar e que a
situação só se conheceu por causa dos testes entretanto realizados. Costa
acompanhou a ideia do Presidente, mas só com mais estudos será possível apurar
melhor o que se passou - uma resposta que foi um eixo central do discurso do
Presidente à saída.
Quando acabou a reunião, Ricardo Baptista Leite (PSD),
Moisés Ferreira (BE) e Francisco Rodrigues dos Santos (CDS) alinhariam pela
explicação dada pelos especialistas: o aumento de testes não justifica por si
só o fenómeno que se regista em Lisboa e Vale do Tejo; é preciso reconhecer o
problema e adotar medidas para travar um aumento exponencial de casos. Também
PAN, Verdes, Iniciativa Liberal e Chega apontaram criticas ao Governo.
JOVENS NÃO SÃO O PRINCIPAL PROBLEMA, MAS DESCONHECIMENTO
É GRANDE
A região de Lisboa e Vale do Tejo continua a ser o
foco da maior preocupação com o surgimento de mais surtos e isso refletiu-se na
discussão desta quarta-feira. Em termos globais o R situa-se em 1,08, com
algumas variações, o que, isoladamente, não seria um fator alarmante. Mas, a
verdade, é que nem mesmo os técnicos de saúde ouvidos pelo Governo e líderes
partidários souberam avançar com explicações concretas sobre o aumento de
contágios registado.
Na reunião, no entanto, foi retirada alguma carga ao
comportamento dos jovens como principal fator de transmissão. A coabitação, os
locais de trabalho e as situações sociais dos doentes foram apontadas como as
principais razões do aumento de casos, pelo que dificilmente as festas ilegais
- que levaram o Governo a prometer mão pesada para os prevaricadores - podem
ser usadas como catalisadores determinantes. Nas freguesias da Grande Lisboa
assinaladas pelas autoridades, o mais lógico, assumiram os especialistas, é que
o aumento de casos esteja relacionado com as condições de habitação e de
trabalho.
Marcelo Rebelo de Sousa teve preocupação de abordar a
intenção de articular o discurso público e todos acabaram por concordaram com a
hipótese de se afinar a articulação do discurso político com marketing social
para passar mensagens à população ou subpopulações tendo em conta fatores
específicos, fazendo um discurso direcionado.
A esse respeito, Manuel Carmo Gomes, professor de
Epidemiologia da Universidade de Lisboa e um dos conselheiros de António Costa,
defendeu que medidas gerais serão mais ineficazes do que as mais dirigidas.
António Costa voltou a pedir explicações mais concretas sobre o surto, mas não
se avançou com medidas concretas.
Foi reconhecido que existe já alguma pressão sobre os
hospitais, mas o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, por
exemplo, só tem um taxa de ocupação de 25% para doentes Covid-19, pelo que há
margem de resposta. A situação, como afirmou Marcelo, não está “descontrolada”,
mas é preciso travar a progressão do vírus na região sob pena de tudo se
precipitar (Expresso, texto dos jornalistas Miguel Santos Carrapatoso, MarianaLima Cunha e Liliana Coelho)
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