domingo, maio 03, 2020

Hospitais defendem redução da resposta à covid-19

Equipas e camas desviadas para a infeção fazem falta para tratar os outros doentes. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) volta a prestar cuidados a todos os portugueses, mas pouco será como antes. Os administradores hospitalares avisam que para retomar consultas, exames, tratamentos, cirurgias e a demais assistência são precisos profissionais e meios que antes tinham, mas que foram alocados ao combate à pandemia. Na prática, o SNS terá de funcionar a duas velocidades para que o que sobra na covid-19 não falte à restante população. “Já apelei para a necessidade de um plano nacional para um SNS dual. Temos de ter uma rede preparada e flexível para picos da infeção — que vamos ter de certeza — e uma rede de cuidados gerais, que só existirá depois de estar definido o plano covid”, afirma Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares. E dá exemplos: “Não faz sentido um hospital ter internamento covid-19 quando tem três doentes ou ter camas de intensivos que comprometem toda a atividade. Os doentes devem ser transferidos para os hospitais centrais, com mais meios e experiência.”

Esta semana, o secretário de Estado da Saúde, António Sales, fez saber que o SNS só entrará em rutura se for necessário hospitalizar quatro mil doentes covid-19 e que a medicina intensiva mantém camas livres: neste momento tem apenas 54% de ocupação. O dado alarmou os médicos. “O SNS teve sempre falta de camas de intensivos e dizem-me que continuam a faltar para doentes gravíssimos, quando há camas vazias para a covid”, critica o bastonário da Ordem dos Médicos (OM), Miguel Guimarães. “Para operar um doente grave é preciso ter vaga nos intensivos ou não é operado. Se vamos reativar as cirurgias, vamos precisar de camas vagas e de recursos que estão alocados à covid.”
O bastonário avisa que “é preciso passar da gestão covid para a gestão global” e deixa um recado ao Governo: “Os grandes ventiladores do SNS são os profissionais. Com o atual capital humano não vamos conseguir dar resposta à pandemia, aos restantes doentes e ainda recuperar quase dois meses de atraso.” O mesmo alerta é feito por quem tem de gerir as unidades. “Não podemos acreditar que, sem contratar mais pessoas, o SNS volte a ter o mesmo ritmo de atividade e recuperar tudo o que ficou em espera — entre 15 de março e 15 de abril tivemos uma redução de 75% na atividade cirúrgica. Três em cada quatro cirurgias não se realizaram, ficaram por fazer muito mais de 20 mil”, afirma Alexandre Lourenço.
Os administradores hospitalares insistem que “o planeamento de recursos é obrigatório e pode ser feito em poucos dias”. Tem é de existir um plano para todo o SNS. “Não se pode cair no desleixo de deixar que seja feito por cada hospital. Temos o exemplo recente dos stocks de equipamentos de proteção individual ou de autarquias a comprar ventiladores para hospitais de Misericórdias, sem capacidade para ventilar doentes. Correu mal precisamente pela falta de centralização”, explica Alexandre Lourenço. “Se o planeamento não for feito entramos em colapso. Basta imaginar como serão as Urgências quando tivermos a covid e a gripe. Corremos o risco de não termos camas para os doentes não infetados.”
Ao gabinete da ministra da Saúde, Marta Temido, têm chegado contributos de vários grupos profissionais sobre o que consideram ser essencial para a reabertura dos centros de saúde e hospitais a toda a atividade assistencial. No geral, têm em comum a proteção contra a infeção, a redistribuição de recursos, o reforço de profissionais e a antevisão de que o SNS não voltará a ser como era.
60% DE TELECONSULTAS
No capítulo da proteção, é referida a manutenção dos circuitos covid-19, testes em todos os serviços de Urgência, despiste prévio da infeção na prestação de vários cuidados ou análises de rotina aos profissionais. A assistência deverá ser feita sem grandes concentrações e com a menor permanência, escalonando os atos e aumentando as teleconsultas, 60% devem ser à distância”, diz o administrador. A OM está já a analisar quais são os procedimentos que podem ser prestados com segurança sem presença física.
É no reforço de profissionais e na estratégia para recuperar a paralisação da atividade programada que as propostas são mais reivindicativas. “É necessária a reconversão dos contratos de quatro meses dos enfermeiros contratados no âmbito covid e contratar mais. Não podemos esquecer que os centros de saúde perderam enfermeiros, mobilizados para os hospitais”, salienta Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros.
O mesmo apelo para reforço de equipas é feito por Miguel Guimarães, que avança também um plano para responder a quem ficou à espera. “Será preciso criar um mecanismo fora do horário de trabalho e o ministério terá garantir medidas compensadoras.” E compensação é o próximo passo que o Governo deve dar a quem está nas áreas covid. Os administradores hospitalares afirmam que as equipas dedicadas à infeção devem ser mantidas, as necessárias, e recompensadas pelo esforço adicional. “Estes profissionais têm de ter mais descanso, equipas para os revezar, mais dias de férias e uma remuneração mais elevada”, propõe Alexandre Lourenço.
Marta Temido tem-se reunido com os responsáveis das unidades do SNS e mantém a ideia de delegar o planea­mento ao invés do que defendem os administradores hospitalares. Nos últimos dias, a ministra tem reconhecido que “a recuperação da atividade suspensa vai ser muito penosa”. É convicção da governante que “o processo tem de ser aferido em função do contexto específico”, pois “o país tem riscos distintos”. Segundo o Governo, as unidades da Beira Baixa e do Norte Alentejano “têm maior facilidade numa retoma precoce da atividade”. No caso dos maiores hospitais, como São João, Coimbra ou Santa Maria, a assistência já está a ser ‘reativada’.
A ministra promete todo o empenho na resposta do SNS, mas avisa que o esforço não vai evitar sequelas. “É evidente que não podemos sair de uma situação como a que estamos a viver sem marcas e cicatrizes.”
LIMITE
- 4000 camas para infetados é a capacidade máxima do SNS, acima da qual entrará em rutura
- 54% é a taxa atual de ocupação nos cuidados intensivos, dando margem para mais doentes graves
PROTEÇÃO EXTRA
• Criar uma reserva estratégica de equipamentos de proteção individual para a covid-19
• Impor o uso de máscara para utentes e profissionais em todas as unidades de saúde, com stocks adequados para distribuição
• Testar todos os doentes no internamento, à semelhança do que já é feito em cirurgia, e profissionais de saúde com muita regularidade
• Marcar consultas, exames, sessões de hospital de dia e outros atos clínicos com intervalos e limitar os acompanhantes, para evitar a concentração de utentes
• Reforçar a telessaúde e a prescrição eletrónica de medicamentos
• Manter os circuitos exclusivos à covid-19 nos centros de saúde e hospitais e testes nas urgências (Expresso, texto da jornalista VERA LÚCIA ARREIGOSO)

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