É um entre centenas, não tem cérebro mas parece ser inteligente. Não tem corpo próprio, mas vive do corpo dos outros. Oportunista, é microscópico e, apesar da ínfima dimensão, é capaz de parar o mundo, de tirar o sono e, pior, muito pior, de matar. Mais poderoso do que o homem, mais poderoso do planeta, há vários meses que não se fala de outra coisa. O SARS CoV-2 é um desafio. Há muito que se sabe que tamanho não é documento e, mesmo quando tudo à volta parece difícil de encarar, há que guardar um resto de humor, até porque esta não é uma corrida de 200 metros, mas uma maratona sem fim à vista. Tudo porque um vírus deu um salto: passou de uma espécie de animal selvagem para o homem e, desde então, não parou de fazer estragos. Os piores são as mortes e não adianta contar, porque todos os dias, todas as horas, todos os minutos, alguém morre, vítima do SARS CoV-2, o novo coronavírus, com expressão pandémica, relevância global. O minúsculo elemento que, para alguns investigadores, nem chega a merecer o estatuto de ser vivo. Então, se não é um ser vivo e se mata tanto, é o quê?
O virologista Paulo Paixão, professor da Nova Medical School, anda há 30 anos a investigar estes minúsculos mistérios e diz que esta é uma questão mais filosófica do que científica. "Os microorganismos podem ser vírus, bactérias, fungos e parasitas. Logo, os vírus são um subgrupo dos microorganismos ou micróbios. E, curiosamente, os vírus são os menos sofisticados destes microorganismos porque são aqueles que exigem sempre células vivas de outros organismos para se multiplicarem. A grande maioria das bactérias pode-se multiplicar fora de outros organismos vivos, até mesmo em águas por exemplo. E os vírus, como não conseguem subsistir muito tempo fora das células, precisam sempre de ter hospedeiros, normalmente animais". Ou seja, o vírus é alguém que não é por si próprio, é alguém que só é através do outro. O problema é quando o outro somos nós.
"Falo sempre desta questão filosófica com os meus alunos. A natureza existencial dos vírus é muito discutível. Há quem defenda que não podem ser considerados seres vivos porque são demasiado simples e é essa fronteira que pode ser discutida. Mas o que interessa é que os vírus comportam-se como seres vivos", afirma Paulo Paixão. Ou seja, não vale a pena, é uma questão de opinião, então, adiante. E os vírus são inteligentes? "Outra questão complexa. Para manterem a sua subsistência e se replicarem têm algo parecido com inteligência, mas não se pode dizer que sejam inteligentes. E o virologista regressa às origens: "Para Darwin, a capacidade de adaptação é um elemento fundamental para um ser vivo poder sobreviver e os vírus adaptam-se às circunstâncias e o que os define não é algo assim tão distante de nós. São os ácidos nucleicos, a base de toda a vida: o DNA e o RNA." Ou seja, estamos nos antípodas da evolução, mas, na base, até somos próximos. Esta é uma linguagem não científica, da qual o cientista não discorda completamente: "Sim, termos alguma coisa em comum, embora a nossa complexidade seja muito maior."
Mas, sendo os vírus tão simples e a humanidade tão complexa, como foram capazes de parar o mundo? "Os seres humanos são os seres mais complexos do planeta e, por serem tão complexos, são tão frágeis. Os vírus, sendo tão simples, são mais resistentes. Nós temos capacidade de adaptação, mas esta exige-nos esforço." E quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha; nós ou eles? Eles. "No entanto, os vírus estão há muito tempo por cá e há quem coloque a possibilidade de terem evoluído ao mesmo tempo que as bactérias." E quem predomina: vírus ou bactérias. "A questão não é assim que se coloca. o que existe é uma coexistência. E o microbioma veio mostrar que temos muitas mais células bacterianas no nosso organismo do que as nossas próprias células".
Regressemos aos vírus. "Temos menos conhecimento sobre os vírus do que sobre as bactérias. Pensávamos, por exemplo, que só teríamos vírus respiratórios se estivéssemos doentes, mas estamos a aprender que não precisa de ser assim, mas este raciocínio de que podemos coexistir com os vírus sem estarmos doentes ainda é muito recente", explica Paulo Paixão. Diz também que há centenas de vírus que podem impactar o homem (e a mulher) e há mesmo "larguíssimas dezenas que são bastante frequentes". Mas, sobretudo, "há grandes quantidades de vírus ainda desconhecidos". E como se dão a conhecer? Através do salto que dão de hospedeiros, como alguns animais selvagens, onde não são patogénicos, para a espécie humana, onde acabam por despertar a atenção ao causar uma doença.
Como os morcegos, tradicionais reservatórios de vírus. Neste caso, a convivência costuma ser perfeita: o vírus encontra um ambiente para se multiplicar e o morcego leva a sua vida sem maiores impedimentos. Mas, como sempre, este também é o problema. Se os morcegos morressem devido ao contacto com os vírus, a expansão para outras espécies não se daria. Ou seja, este vírus é novo no contato com o homem. E os vírus competem uns com os outros, há vírus predadores de outros vírus? Paulo Paixão duvida, embora admita que teoricamente até é possível. Podemos ter dois vírus distintos a circular em simultâneo? "Sim, podemos, porque vírus distintos ligam-se a distintos receptores celulares e está demonstrado que se pode ser infetado por vários vírus ao mesmo tempo, mas acaba por não ser muito comum porque a resposta do organismo a um vírus nos pode proteger de outros que surjam, embora nem sempre isso funcione muito bem." Mais uma vez, não há certezas nem garantias.
A família dos corona, por ser coroada, merece alguma distinção específica? Até agora, nem por isso. "Até agora, eram como mais uma dezena de vírus respiratórios: os quatro tradicionais e os três novos, que incluem o MERS-CoV do Médio Oriente, de mortalidade elevada, e o SARS-CoV-2." O problema parece estar nos receptores a que se liga o SARS CoV-2, muito presentes nos pulmões e no coração. Mais do que nas vias respiratórias superiores, como acontece em outros vírus. No caso do atual vírus, a taxa de mortalidade é de cerca de 10%, bastante mais baixa do que a da gripe aviária (H5N1), perto de 50% e que também se liga a receptores das vias respiratórias inferiores, ou seja, aos pulmões. Ou o também corona, MERS, com uma taxa de mortalidade de cerca de 30%. "A grande diferença é que estes não são tão contagiosos", explica Paulo Paixão. E é aqui que mora o perigo futuro da humanidade: os vírus muito contagiosos e aqueles que são transmitidos pelos mosquitos.
O campeonato da letalidade é vencido pelo vírus da raiva, que ronda os 100%. O que pesa a favor do homem é que já existe uma vacina, mas que tem de ser administrada imediatamente. "É um caso muito à parte, que mata entre 30 a 40 mil pessoas anualmente em países como a Índia ou o Paquistão", explica o investigador.
A culpa desta expansão viral é dos seres humanos? Da urbanização? "A destruição ambiental é uma questão que tem de ser tida em conta porque nos coloca em contato com espécies selvagens que são reservatórios de vírus. E também é fruto da nossa capacidade de deslocação de um ponto ao outro do planeta", afirma Paulo Paixão. Porque motivo o novo coronavírus apresenta tantas mutações, porque não fica quieto? Porque tem RNA, o que o torna mais mutável do que os formados por DNA. É assim. A cada mês, há cerca de duas mutações. "Já não é um vírus, são vários", diz o especialista. Um vírus pode ficar menos virulento para se manter a circular? "Sim, pode. Mas esta pode ser uma vantagem para ele e também para nós, porque parece que estamos a morrer devido à intensidade da resposta imunitária. Mas o contrário também pode acontecer, ele pode aumentar a sua agressividade, ainda é cedo para saber." Mais uma vez, as certezas são escassas.
Resta a questão fundamental: o que vai vencer este vírus? A resposta já é conhecida, anda a circular há meses: ou é criada a vacina certa ou se conquista a imunidade de grupo. A temperatura mais elevada até poderá ajudar a diminuir a circulação, mas é prudente não contarmos com isto para afastar o novo coronavírus. Para os virologistas, até pode ser uma oportunidade, são estes os seus centros de atenção. "Há três décadas que os estudo e continuo a achá-los fascinantes". Só que não, dizemos nós (Expresso, texto da jornalista Christiana Martins )
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